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Disputa no campo esportivo: a proibição de venda de cerveja na Copa do Mundo do Catar

Regis Fernando Freitas da Silva 7 de dezembro de 2022

O presente texto busca fazer uma reflexão acerca da proibição da venda de cerveja na Copa do Mundo do Catar e as disputas econômicas no esporte. Os aspectos apresentados estão relacionados a autonomia esportiva na organização normativa, bem como os eventos promovidos pela FIFA e sua relação com os países sede.

Nesse sentido tanto a organização internacional esportiva (FIFA) e o país que vai sediar a Copa do Mundo se tornam parceiros na promoção do evento esportivo, porém existem exigências que a FIFA faz para que o país sede deve acatar para receber a competição. Aqui que é um conflito entre a autonomia esportiva e a soberania nacional no campo esportivo.

Porém, a Copa do Mundo de 2022 teve uma particularidade, pois houve a proibição de venda de bebidas alcoólicas dentro dos estádios no Catar, lembrando que a maior patrocinadora do evento é uma marca de cerveja. Esse fato trouxe uma disputa entre o Catar e a FIFA de fazer valer as condições divergentes sobre a venda de bebidas alcoólicas, que de um lado está uma organização privada e um Estado.

Copa Qatar
Fonte: Wikipédia

Autonomia esportiva na organização das competições

Inicialmente é necessário analisar como o esporte é organizado, pois através da autonomia é que as organizações esportivas mantêm o monopólio para organizar os eventos esportivos, uma vez que acabam criando um ambiente exclusivo e hegemônico, que está imbricado com o aspecto econômico do esporte, ou seja sua função econômica.

Assim, se busca apontar como está estabelecida a organização esportiva, além do caráter regulatório autônomo que é capaz de manter a hegemonia da produção normativa esportiva. Salienta-se que são as entidades de organização esportiva que tem o condão de normatizar e regular o esporte mundial face essa autonomia e também o caráter associativo tanto das entidades que administram o esporte, bem como as entidades que praticam a modalidade esportiva (SILVA, 2021).

Essas organizações esportivas – entidade que organizam/administram o esporte – são associações jurídicas de direito privado, constituídas e regidas por um sistema universal normativo – que se entende como internacionalização da norma esportiva – na medida que desenvolvem suas atividades para além da limitada extensão territorial de suas sedes (SILVA, 2021). Importante trazer que essa relação entre as entidades que organizam e as entidades que praticam o esporte tem uma celebração de contrato vinculativo, no caso a FIFA, celebra contratos vinculativos com os países que são selecionados para sediar a Copa do Mundo, bem como a federação nacional do país sede do evento. (PENTEADO, 2016).

Ainda, mesmo diante de um Estado soberano, é evidente que a autonomia desportiva não significa a total independência das entidades esportivas do alcance estatal, pois as competências e os poderes restritos à insurgência do ordenamento jurídico, pois seu alcance de direitos não podem ser ilimitados e absolutos, mas atribuindo uma certa discricionariedade às entidades na condução de sua organização e ação interna. (SILVA, 2021).

Após, essa construção teórica sobre a autonomia desportiva, fica mais bem compreendida a forma de abrangência da norma esportiva, como já dito, a sua internacionalização normativa esportiva, uma vez que essa autonomia consegue alcançar diversas culturas que se imbricam com a construção esportiva, devido ao caráter universal de prática esportiva (DA SILVA, 2020).  Mas com suas limitações, já que há a própria soberania nacional tem seus aspectos históricos e culturais, pois em alguma medida pode estar em conflito entre as entidades de organização e esportiva e o país sede.

A soberania do país sede e a organização do evento esportivo face a proibição de bebidas alcoólicas

Agora é necessário demonstrar essa disputa entre organização e esportiva e o país sede, pois ela se depara com a existência um campo esportivo, ou seja, existe um sistema de instituições e agentes vinculados ao esporte, que funciona dentro da sua perspectiva teórica de campo. Na medida que isso possibilita pensar que o esporte tem um campo determinado, e se relaciona com a autonomia que esse campo apresenta. (SILVA, 2021)

Sinale-se que não se pode compreender os fenômenos esportivos desassociando de um contexto histórico ou social, pois há uma relação direta com as condições econômicas e sociais das sociedades, até porque a história do esporte é de alguma medida autônoma ainda que, mesmo se articulando com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, além de sua cronologia específica. (BOURDIEU, 1983).

Aqui que há o conflito, pois o Catar tem sua construção histórica, econômica e social, e a FIFA da mesma forma, ainda que seja uma entidade privada. Mesmo que existe um contrato vinculativo entre as duas partes, há um contexto histórico distinto que dentro do campo esportivo tem disposições diferentes, assim desencadeando a disputa no campo.

Na Copa do Mundo de 2022 no Catar uma das disputas entre o país sede e a FIFA foi a comercialização de bebidas alcoólicas dentro dos estádios da competição. Salienta-se que o maior patrocinador da competição esportiva é uma marca de cerveja, que não pode ter seu produto a venda dentro dos estádios.

Em um caráter comparativo na Copa do Mundo do Brasil em 2014, havia previsão de proibição de venda de bebidas alcoólicas nos estádios por meio do Estatuto do Torcedor, mas a FIFA impôs ao Brasil que fosse permitida a venda de cerveja apenas no período da Copa do Mundo em caráter de exceção, pedido que foi atendido pelo estado brasileiro.

Já o estado catari não cedeu aos pedidos e tentativas de imposição FIFA para a venda de bebidas alcoólicas e a decisão dessa proibição foi feita as vésperas do início da competição. Inclusive a FIFA em seu site divulgou a informação:

“Depois de discussões entre as autoridades locais e a Fifa, foi decidido que a venda de bebidas alcoólicas será restrita à Fifa Fan Festival e a outros lugares licenciados destinados aos fãs, retirando os pontos de venda de cerveja do perímetro dos estádios da Copa do Mundo de 2022. Não haverá impacto na venda de Bud Zero, que vai continuar disponível em todos os estádios do Qatar. As autoridades do país sede e a Fifa vão continuar garantindo que os estádios e o seu entorno tenham uma área divertida, respeitosa e prazerosa para todos os torcedores. A organização do torneio aprecia a compreensão da InBev e o suporte contínuo ao nosso objetivo de atender a todos durante a Copa de 2022”

O trecho da nota acima mostra como a autonomia esportiva é relativa, quando um estado não permite que tenha normas de caráter de exceção no período do evento. Isso mostra que há um importante fator que envolve capital político e capital econômico nessa relação. O Catar também alterou a data da competição, pois normalmente a Copa do Mundo é disputada em junho/julho e no ano de 2022 está sendo disputada em novembro/dezembro.

Outro fator importante é que o Catar tem investido no futebol internacional, pois suas empresas estatais vêm patrocinando diversos times pelo mundo. Isso pode ser mais um elemento que coloca o Catar em uma posição de maior força no campo esportivo, pois o esporte ao longo dos anos tem na função econômica o grande motor do seu funcionamento.

Qatar
Fonte: divulgação

O Catar tem buscado através do patrocínio de grandes clubes internacional associar a imagem de seu país com times de sucesso, assim investe no Barcelona e o Paris Saint-Germain (PSG). A forma de investimento do Catar com os times de futebol se deu em virtude da agência Qatar Sports Investments (QSI), um ramo de investimentos no esporte da Qatar Investment Authority, um fundo soberano do país (DRUMOND, 2018).

Justamente nesse contexto que possibilitou ao Catar ter espaço para disputa em não permitir a venda de bebidas alcoólicas, uma vez que o esporte está cada vez mais permeado pela sua função econômica e há um grande investimento estatal do Catar no futebol. Essa dinâmica que o esporte está sedimentado permite que países com forte posição econômica no campo esportivo tenham condições de barganhar como e de que forma a competição será em seu território.

Sendo assim, o texto mostrou alguns elementos que se apresentam no campo esportivo e que estão em disputa, pois são diversos interesses econômicos que estão envolvidos. Já que o esporte está alicerçado na função econômica, o capital econômico acaba sendo muito relevante no campo esportivo. Mostrando que os eventos esportivos nem sempre são realizados apenas em conformidade com a entidade esportivos, mas sim de acordo com quem se está em melhor posição no campo esportivo.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In: O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1983.

DRUMOND, Maurício. Muito além de Neymar: o Catar e o investimento no Paris Saint-Germain como forma de projeção internacional. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 28, 2018.

MKTESPORTIVO. Catar proíbe venda de cerveja no entorno de todos os estádios da Copa do Mundo. Disponível em: https://www.mktesportivo.com/2022/11/catar-proibe-venda-de-cerveja-em-todos-os-estadios-da-copa-do-mundo. Acesso em 02 dez. 2022.

SILVA, Regis Fernando Freitas. Atletas transexuais nos regulamentos esportivos: desestabilizando a organização esportiva e a linearidade de gênero no esporte e no direito. 2021. 114 f. Dissertação (mestrado em Direito) – Universidade La Salle, Canoas, 2021. Disponível em: http://hdl.handle.net/11690/2237.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Regis Fernando Freitas da Silva

Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2013) e pós-graduação em Direito Desportivo e Gestão no Esporte pela FBT/Ineje (2019). Mestre em Direito pela Universidade La Salle(2021). Professor, pesquisador e advogado de Direito Desportivo.

Como citar

SILVA, Regis Fernando Freitas da. Disputa no campo esportivo: a proibição de venda de cerveja na Copa do Mundo do Catar. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 6, 2022.
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