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Divino: a escrita da vida de um artista da bola

Nas últimas décadas, o mercado editorial brasileiro tem sido inundado por uma verdadeira enxurrada de livros memorialísticos – biografias, autobiografias, perfis e reportagens – sobre jogadores do futebol brasileiro. Se, por um lado, encontramos obras como Neymar: conversa entre pai e filho (2013), de Ivan Moré, O planeta Neymar (um perfil) (2014), de Paulo Vinícius Coelho, ou Neymar: o último poeta do futebol (2014), de Luca Caioli, que relatam sobre o craque da Seleção Brasileira e do Paris Saint Germain, portanto, ainda em atividade, o que ocorre também com outros craques estrangeiros como Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, por outro, a maioria dos livros memorialísticos sobre jogadores brasileiros dedicam-se à vida e à carreira de craques que já “penduraram as chuteiras”, e mesmo daqueles que já não se encontram mais entre nós.

Ademir da Guia, em treino da seleção brasileira na Copa do Mundo da Alemanha, 1 jul. 1974. Foto: Wikipedia.

Dentre um vasto conjunto de obras, selecionamos um livro que versa sobre um autêntico craque do futebol brasileiro que brilhou nos anos 1960 e 1970: Divino – a vida e a arte de Ademir da Guia, de autoria do maestro e escritor Kleber Mazziero de Souza, publicada em 2003 pela Editora Gryphus, do Rio de Janeiro. Trata-se de uma obra que intercala relatos do autor e depoimentos do próprio jogador, filho de outro grande craque dos anos 1930 e 1940 no Brasil: Domingos da Guia. Como é relativamente comum em livros memorialísticos, o autor contou com uma equipe de pesquisa, composta por Angélica Adamo, Daniel Moraes Barbieri e Maria Tereza Mazziero de Souza, bem como com um revisor do texto, Antonio Galdino Grillo. O livro também apresenta outros paratextos, como várias fotografias e tabelas de jogos e temporadas. Kleber Mazziero de Souza dedicou o livro a Gilberto Cipullo, torcedor e dirigente do Palmeiras, e ao craque Zizinho (Tomás Soares da Silva), o “Mestre Ziza”, como também era chamado. Além disso, Divino conta também com um ilustre paratexto, o “Prefácio”, escritor por outro grande mestre da bola: o saudoso Sócrates. Nele, o “Doutor” destaca os méritos de Ademir da Guia:

[…] O futebol brasileiro, em toda a sua trajetória, nos ofereceu centenas de grandes bailarinos que com suas coreografias encantaram o mundo. Da Guia foi um deles. Talvez o maior neste quesito. A colocação impecável, a fronte eternamente erguida, a calma irritante, o passe perfeito, a simplicidade dos gestos, o alcance dos passos, a lentidão veloz e o raciocínio implacável ficaram definitivamente em nossa memória. Ademir representou para uma geração – à qual me incluo – o vértice da serenidade e da competência. Sua postura sempre foi respeitosa e altaneira. Passeava pelos gramados como um cisne, encantando a todos que o acompanhavam. (SÓCRATES, 2003, p. XVI).

A história de Ademir da Guia se confunde com a da Sociedade Esportiva Palmeiras, clube que defendeu no período de 1962 a 1977, com o impressionante número de 901 jogos pelo alviverde, e também teve atuações pela Seleção Brasileira no período de 1965 a 1976 (KFOURI; COELHO, 2010, p. 21), tendo disputado uma única partida na Copa do Mundo de 1974 na Alemanha, justamente na disputa pelo terceiro lugar contra a Seleção da Polônia, numa derrota de 1 x 0, com gol assinalado pelo ponteiro direito polonês Lato. Para André Kfouri e Paulo Vinicius Coelho, aliás, além der ser “o gênio que só jogou uma partida de Copa do Mundo na vida”, Ademir da Guia também teria “a palavra ‘injustiçado’ como continuação do nome”, “vítima do ‘azar’ de ser contemporâneo de astros que, na opinião de quem escolhia, brilhavam mais” (KFOURI; COELHO, 2010, p. 21).

Ademir da Guia, o terceiro, da direita para a esquerda, na Seleção Brasileira que decidiu o terceiro lugar contra a Polônia na Copa do Mundo de 1974. Foto: Wikipedia.

Não obstante tal injustiça, o craque palmeirense, que havia iniciado sua carreira no Bangu, do Rio de Janeiro, onde atuou de 1960 a 1961, teve a honra de ter um busto de bronze na sede da Sociedade Esportiva Palmeiras, e de ser decantado pelo poeta João Cabral de Melo Neto no famoso poema que leva o seu nome – “Ademir da Guia”, publicado em 1975 no livro Museu de tudo, no qual destaca-se o ritmo lento do jogador:

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
(MELO NETO, 1994, p. 383).

Em um de seus depoimentos concedidos ao escritor Kleber Mazziero de Souza, Ademir da Guia aponta, em tom memorialístico, para tal ritmo: “Muita gente dizia que eu era lento. Até mesmo eu dizia. Em 1965, uma frase que eu havia dito transformou-se em manchete no caderno de esportes de um jornal: ‘Sou lento, mas não vou mudar’.” (Ademir da Guia, in: SOUZA, 2003, p. 86). E o craque justificava tal ritmo como algo decorrente de suas origens no futebol do Rio de Janeiro: “Eu vim do futebol carioca que era jogado de maneira mais compassada. Tinha de correr também, mas menos do que no futebol paulista. Para mim, que tinha um jeito de jogar mais cadenciado, parecia uma guerra.” (Ademir da Guia, in: SOUZA, 2003, p. 86). Para André Kfouri e Paulo Vinícius Coelho, tal postura em campo fez de Ademir da Guia “[u]m mestre do tempo e do espaço de uma partida de futebol” (KFOURI; COELHO, 2010, p. 21).

Ademir da Guia, o Divino, em campo. Foto: Reprodução/YouTube.

No meio de campo, Ademir contava com um companheiro à altura, que formaria uma parceria vitoriosa por anos a fio: Dudu, Olegário Tolói de Oliveira, que chegaria ao Palmeiras no final de março de 1964, na véspera do golpe, vindo da Ferroviária de Araraquara. Em relato narrado a Kleber Mazziero de Souza, Dudu assim descreveu o espírito de liderança do “Divino” na “Academia”:

[…] O Ademir nasceu para comandar, mas comandar do jeito dele: calmo, calado. Ele era um líder do tipo que impõe naturalmente sua liderança sem precisar falar, sem ser temido ou apenas respeitado. Não, é aquele líder que, por suas ações, se faz admirado e desperta em todos o desejo de ser seguido, copiado. Sua incrível técnica, calma, domínio de bola e das situações eram uma bandeira que ficava constantemente hasteada para que pudéssemos nos mirar nela. (Olegário Tolói de Oliveira, in: SOUZA, 2003, p.103-104).

Por sua vez, o biógrafo do craque dá uma dimensão do significado de Ademir da Guia para o futebol e, em especial, para o Palmeiras da era da chamada “Academia”:

Ademir veio, viu e venceu. Logo no início de sua longa e duradoura permanência no Palmeiras, encantou a todos com seu futebol límpido, compassado, clássico. Sua personalidade introspectiva mesclada ao indefinível tamanho de seu talento fascinavam [sic] os torcedores de seu time, os amantes da arte de jogar futebol e até mesmo os não envolvidos com o esporte. (SOUZA, 2003, p. 91)

E outro jogador da seleta galeria de craques do futebol brasileiro lhe teria atribuído um epíteto para a eternidade: “Sua majestosa presença em campo e a hereditariedade de seu nome inspiraram o lateral-direito, bicampeão mundial, Djalma Santos. Ademir ganhou de Djalma mais do que um apelido, uma definição: ‘Divino’.” (SOUZA, 2003, p. 91). Dessa forma, Ademir assumia um epíteto que aludia ao de seu pai, chamado de “Divino Mestre”, o qual também mereceu uma biografia: Domingos da Guia – o Divino Mestre, de Aidan Hamilton, publicada em 2005 pela Editora Gryphus. Logo no primeiro capítulo de Divino, intitulado “A saga do clã dos da Guia”, Kleber Mazziero de Souza destaca a nobre linhagem futebolística à qual Ademir e seu pai pertenciam:

Se há uma família a quem a cultura brasileira muito deva, essa família é a que deu ao futebol Luis Antônio, Ladislau, Médio, Domingos, Ademir e Neném. A linhagem e descendência nobre dos Da Guia percorre a história do esporte e, portanto, da cultura brasileira desde o início do século XX, quando o futebol ainda era amador, até a segunda metade da década de 70 e aponta para o futuro, no século XXI. (SOUZA, 2003, p. 3)

E tal aspecto foi atestado pelo próprio patriarca do clã Da Guia, o lavrador Antonio José da Guia, que “achava Domingos ‘bom de bola, mas craque mesmo, era o Luís Antonio.’ Certo dia, sentenciou: ‘Esse negócio de futebol na minha família é coisa pra lá do ano 2000’.” (SOUZA, 2003, p. 43). Memorável no histórico da família foi a atuação de três irmãos na equipe do Clube de Regatas do Flamengo em 1936: o lateral esquerdo Médio da Guia, o zagueiro Domingos da Guia e o atacante Ladislau da Guia, o “Tijolo Quente”, apelido que herdara dos tempos em que atuou no América, nos anos 1920, por seu potente chute. E todos iniciaram suas carreiras no Bangu Atlético Clube, do Rio de Janeiro, incluindo o Divino.

 

Ademir e Domingos da Guia, filho e pai, respectivamente, de uma família que tanto contribuiu ao futebol brasileiro. Foto: Reprodução/Internet.

“Poeta”, “bailarino”, “mago” e “artista” são alguns termos atribuídos a craques como Ademir da Guia, no intuito de se traduzir em palavras aquilo que é da ordem do corpóreo: a performance corporal do futebol em seu estilo que assume traços de “arte”. E o mito do “futebol arte” se consolidou no Brasil justamente no período em que Ademir da Guia surgiu e atuou. Talvez, possamos eleger como marcos temporais desse “futebol arte”, ou, pelo menos, do discurso que o edificou, os anos de 1938, não só pela excelente campanha da Seleção Brasileira na Copa da França, onde obtivera o terceiro lugar na competição, mas também pela famosa crônica de Gilberto Freyre, intitulada “Football mulato”, e de 1970, da conquista do tricampeonato mundial no México, após as conquistas memoráveis de 1958 na Suécia e de 1962, no Chile. Inclusive, em janeiro de 1971, surgiria outro texto que, por vias indiretas, caracterizava o futebol latino-americano e, em especial, o futebol brasileiro como dotado de arte: o artigo “Il calcio ‘ê’ un linguaggio con i suoi poeti e prosatori”, do poeta, escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. O “foot-ball mulato” e “dionisíaco” propalado por Gilberto Freyre no final dos anos 1930 alçaria ao plano do “futebol de poesia” com Pasolini, um apaixonado pelo futebol, no início dos anos 1970, ainda sob os efeitos da Copa do México e da grande final reunindo a Seleção Brasileira, considerada a melhor de todos os tempos, e a Squadra Azzurra (CORNELSEN, 2006, p. 171-172).

Sem dúvida, a “arte” atribuída ao modo de jogar do “divino”, enquanto discurso, faz jus ao futebol de um jogador que, conforme destacado por Sócrates, com sua serenidade e elegância, encantou a muitos que tiveram o prazer e o privilégio de vê-lo atuar nos gramados, independente de terem sido ou não torcedores do “alviverde imponente”. Para André Kfouri e Paulo Vinicius Coelho, o legado de Ademir da Guia seria a “arte com a bola nos pés” (KFOURI; COELHO, 2010, p. 22). O livro do maestro Kleber Mazziero de Souza, por inspiração musical e poética, é uma espécie de “ode” a essa “arte”, dedicada àquele que “é mais do que craque do século e titular absoluto na seleção de todos os tempos do time do Palmeiras” (SOUZA, 2003, p. 215).

Referências

CORNELSEN, Elcio Loureiro. A “linguagem do futebol” segundo Pasolini: “futebol de prosa” e “futebol de poesia”. Caligrama. Belo Horizonte, v. 11, p. 171-199, 2006. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/view/202/155. Acesso em: 02 out. 2019.

FREYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. Diário de Pernambuco. 17 jun. 1938, p. 4.

KFOURI, André; COELHO, Paulo Vinicius. Ademir da Guia. In: KFOURI, André; COELHO, Paulo Vinícius. Os 100 melhores jogadores brasileiros de todos os tempos. Rio de Janeiro: PocketOuro, 2010, p. 20-22.

MELO NETO, João Cabral de. Ademir da Guia. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 383.

PASOLINI, Pier Paolo. Il caleio ‘ê’ unlinguaggio con i suai poeti e prosatori, ln: PASOLINI, Pier Paolo. Saggi sulla letteratura e sul! ‘arte, VoI. II, Milano: Meridiani Mondadori, 1999, p.2545-2551.

SÓCRATES. Prefácio. In: SOUZA, Kleber Mazziero de. Divino: a vida e a arte de Ademir da Guia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003, p. XV-XVI.

SOUZA, Kleber Mazziero de. Divino: a vida e a arte de Ademir da Guia. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.

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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Divino: a escrita da vida de um artista da bola. Ludopédio, São Paulo, v. 124, n. 4, 2019.
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