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Do fosso ao selfie

Arlei Sander Damo 3 de novembro de 2017

Já se escreveu muito sobre a atualização dos estádios brasileiros a partir do “padrão FIFA”, a favor e contra. Não seria despropositado pensar que também aqui estamos diante de um debate entre apocalípticos e integrados. Os integrados hegemonizaram a refrega no período pré-Copa e como os estádios foram remodelados seguindo o “padrão FIFA” não há dúvida de que venceram o primeiro round. Mas a batalha continua, porque às poucas vozes quase inaudíveis que ousaram questionar o tal padrão, somam-se agora movimentos de torcedores organizados. Eles constituem uma espécie de vanguarda que procura resgatar os espaços subtraídos às massas e certos modos de torcer extirpados das arenas. Avançar nesta discussão é de algum modo perscrutar a economia política das experiências torcedoras, um tema que está longe de ser esgotado.

Como já havia sugerido na crônica anterior, há muito a ser dito sobre a transição dos modelos de governamentalidade a partir da introdução desse novo padrão a que chamamos de FIFA, mas que precisa ser analisado para além desta instituição. O “padrão FIFA” é um conjunto de recomendações endereçados aos países sedes das competições organizadas em parceria com esta entidade – as Copas do Mundo de futebol masculino, sobretudo – e boa parte delas estão dirigidas aos estádios. Todavia, é uma ilusão imaginar que seus efeitos sejam limitados aos eventos FIFA, pois tais recomendações acabam performando o futebol de espetáculo como um todo. A preocupação com segurança, conforto e rentabilidade (este item não é tão explícito no tal Caderno de Encargos) dos estádios, como se sabe, norteia as recomendações. Seguindo o texto do mês passado, vou me ater ao item “segurança” e mirar um de seus dispositivos: o fosso ou, preferindo-se, a trincheira que separa(va) as arquibancadas (“Geral”, “Popular”, “Coreia”, etc) do campo. Na próxima sessão falarei do selfie – assim mesmo, no singular – e espero persuadi-los de que este não é um ato isolado, pois vem acompanhado de uma atitude ou disposição que tem muito a dizer sobre a sensibilidade do público desejado nas arenas.

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O Maracanã sem o fosso após a reforma para a Copa de 2014. Foto: Danilo Borges/Portal da Copa.

Para começo de conversa, é importante destacar que o fosso era um dispositivo recomendado pelo padrão FIFA até o final da década de 1990. A pergunta, então, é pelas razões de sua obsolescência. O assunto mereceria uma investigação sistemática, mas não dispondo desta possibilidade vou arriscar uma espécie de bricolagem, recorrendo à memória pessoal, a alguns trabalhos sobre estádios e a fotografias acessadas via internet. Embora esteja consciente do risco, espero não cometer nenhum erro muito grotesco que comprometa o essencial da hipótese. Que me lembre, nenhum dos tantos trabalhos acadêmicos sobre reforma e construção de estádios tratou o fosso de maneira pormenorizada. Eu mesmo já escrevi sobre os estádios de Grêmio e Internacional, de Porto Alegre, mas o fosso jamais me despertou atenção, talvez porque o tivesse naturalizado.

É importante olhar para o fosso em diacronia, pois assim se pode ter uma ideia mais precisa do que significa a sua emergência e evanescência. Um olhar sobre a trajetória do fosso revela seu componente político; sua função mais óbvia e elementar: a contenção do público, de um certo perfil de público. E para que fique bem claro, o fosso não é uma invenção do futebol, pois este tipo de trincheira é tão arcaico quanto a guerra. O fosso não chegou com o futebol ao Brasil. Os primeiros grounds já dispunham, desde o início do século XX, de algum dispositivo visando separar os jogadores e a arbitragem do público, como também exibiam seus pavilhões para distinguir os notáveis dos reles associados, enquanto os representantes do povo, que mais tarde constituiriam as massas, empoleiram-se nos telhados, nas árvores e nos morros para espreitar os jogos. Como agora, a “base da pirâmide” estava excluída da festa.

Os primeiros dispositivos de segurança foram cercas de madeira, com sarrafos horizontais, cuja função era mais simbólica do que prática, pois aquilo jamais impediria quem quer que fosse de invadir o field. Servia como uma segunda linha do campo, sinalizando onde o público deveria, civilizadamente, permanecer.  Os alambrados, feitos de tela de arame liso, vieram na sequência, e eles já sinalizam uma transição de público e dos modos de torcer. Embora frágeis para conter uma massa enfurecida, os alambrados indicam, claramente, a necessidade de aumentar a vigilância. Eles parecem ter sido suficientes durante algumas décadas, como revelam os dois principais estádios construídos nos anos de 1930 e 1940, respectivamente, o São Januário (privado), no Rio de Janeiro, e o Pacaembu (público), em São Paulo. Ao que tudo indica, é o Maracanã, inaugurado em 1950, que apresenta o dispositivo inovador, certamente com algum atraso, pois o Centenário, de Montevidéu, construído para a Copa de 1930, já dispunha de trincheira. Aliás, este é um caso paradigmático, pois os fossos do Centenário localizam-se apenas atrás das goleiras, imediatamente à frente das arquibancadas destinadas aos torcedores originários das classes populares. À propósito, esta é uma pista valiosa: o fosso é um dispositivo que acompanha o processo de popularização do futebol.

A partir do Maracanã, portanto, o fosso haverá de se tornar uma presença indispensável nos novos estádios nacionais, fossem eles públicos, como o Mineirão – cujo fosso possuía aproximadamente 4 metros de profundidade –, o Castelão e o Serra Dourada; ou privados, como o Morumbi, o Beira-Rio e o Arruda. O Olímpico, antigo estádio do Grêmio, é um caso emblemático, pois no projeto original, datado da década de 1940, não constava referência ao fosso. Quando inaugurado, em 1954, o Olímpico não estava completo – apenas uma parte das arquibancadas superiores havia sido concluída – e não havia fosso separando as arquibancadas da pista atlética e do gramado. No entanto, em 1974, o alambrado foi considerado insuficiente e cavou-se, então, uma trincheira, para adequar o estádio ao “padrão Maracanã”, em voga na época. Não menos interessante é observar o caso da Arena da Baixada, o ponto de partida no processo de arenização dos estádios brasileiros. Seguindo o padrão FIFA, o estádio inaugurado em 1999 possuía fosso, agora desaparecido em razão da atualização para a Copa de 2014. O novo padrão FIFA faculta e desaconselha o fosso, embora algumas das novas arenas o tenham mantido – caso do Grêmio, por exemplo. Os dispositivos de segurança recomendados agora são outros: vigilantes humanos, câmeras – elas não impedem o acesso, mas possibilitam punições – e os alambrados de vidro temperado, recorrentes em muitos estádios brasileiros.

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Arena da Baixada após a reforma para atender ao padrão FIFA. Foto: Danilo Borges/Portal da Copa.

Poder-se-ia imaginar que os dispositivos que substituem o fosso são menos contundentes, porque o público foi abruptamente civilizado. A asserção é correta, mas não a razão. Como dito anteriormente, a aparição do fosso pode ser tomada como um índice denotando a ascensão dos processos de espetacularização e popularização do futebol. E o seu ocaso, o que significaria? A reconfiguração do espetáculo e o fim da popularização. Antes de seguir com esta hipótese é preciso dizer duas ou três coisas – bem genéricas, mas essenciais – sobre espetacularização e popularização, a começar pelo fato de que ambos são processos e não eventos pontuais.

Espetáculo é tudo aquilo que é digno de ser visto, apreciado. A espetacularização do futebol é coetânea da sua invenção moderna e não à midiatização, como por vezes este processo é tratado. No entanto, é notável o impacto do rádio – iniciado por volta dos anos de 1930 – e mais tarde da televisão – a partir da década de 1960. Essas mídias expandiram o espetáculo e, por extensão, o público, criando novas possibilidades de comercialização. Elas também reconfiguraram o espetáculo, atribuindo-lhe novos discursos e significados. Há uma extensa bibliografia a este respeito, muito embora ela falhe, seguidamente, por separar o espetáculo ao vivo do espetáculo midiatizado. O mais correto seria pensar nas conexões, seja na conformação do público dos espetáculos – os jornais e as rádios contribuíram, sobremaneira, para encher os estádios, ao passo que as transmissões televisivas tenderam a esvaziá-los –  seja na moldara de suas sensibilidades. Para não perder tempo com obviedades, basta dizer que a arenização dos estádios acompanha o processo de midiatização da sociedade, que agora já não se restringe ao rádio e à televisão.

Até pouco tempo era comum ver torcedores com cartazes nos estádios pedindo para serem filmados, para terem um segundo de sua imagem ampliada pela televisão. Com os smartphones este tipo de mendicância por projeção tende ao desaparecimento. Desde que as arenas tenham conectividade, cada torcedor pode irradiar sua presença. Desta constatação depreende-se que os torcedores – nem todos, por certo – talvez estejam agora menos centrados no que acontece dentro de campo ou nos bastidores do jogo e mais atentos a si e aos bastidores de si, ou seja, às redes nas quais suas imagens são veiculadas para fins de curtição. Não seria exagero, pois, sugerir que esta hipersensibilidade em relação a si, à curtição do eu, esteja reconfigurando a sensibilidade do público que acorre aos estádios, de maneira que nas novas arenas tenhamos um público híbrido formado por torcedores e curtidores.

Antes de abstrair outras implicações atinentes às mudanças de comportamento e dos desdobramentos em termos de dispositivos de segurança é preciso fazer um parêntesis para falar sobre a popularização do futebol, processo muitas vezes confundido com a diáspora – prefiro tratá-los como distintos, embora imbricados. A diáspora diz respeito a expansão do futebol, a partir da Inglaterra em direção a outros países e continentes, seguida pela disseminação deste esporte dos grandes centros urbanos em direção às periferias – salvo algumas nuances, como mostrou Gilmar Mascarenhas em relação ao Rio Grande do Sul. A popularização compreenderia um outro processo, concernente a apropriação do futebol pelas classes populares, considerando-se que, via de regra, a diáspora foi agenciada pelas classes altas.

No caso do Brasil, especificamente, a popularização é concomitante à diáspora, mas ela recebeu um impulso notável na década de 1930. Por um lado, temos as transmissões radiofônicas, que irradiam e hiperbolizam os eventos, ao mesmo tempo que é feita uma adequação terminológica, aproximando o jogo do grande público – é nesta época que a nomenclatura do jogo é aportuguesada. Outro flanco importante da popularização ocorre com a aproximação do Estado, paralelamente à ascensão nacionalista, característica das décadas de 1920 e 1930. No Brasil este processo é mais claro a partir do Estado Novo (1937) e se estende até o final da Ditadura Militar, na década de 1980. A construção de estádios com recursos públicos – e o suporte público para construção de estádios privados – é a prova de que a popularização do futebol era de interesse do Estado, cujos governos pautavam-se pelo ideário nacionalista e desenvolvimentista. Aliás, é justamente este ideário que fez com que os estádios fossem projetados para acolher não apenas públicos numerosos senão que diversificados. O Maracanã é a referência deste modelo; a concretização de uma sociedade imaginada pelos governos de então, e suas formas de pensar as políticas de cidadania.

A razão pela qual os arquitetos da época decidiram manter o povo mais próximo do campo teria de ser investigada, mas a hipótese mais provável é de tal disposição seja o desdobramento de uma valoração topográfica desigual, segundo a qual o alto prepondera em relação ao baixo, razão pela qual as elites não poderiam ficar abaixo do povo. Os estádios demasiadamente grandes criavam, por certo, um problema aos arquitetos, pois se a lógica topográfica fosse aplicada de forma mecânica, caberia às elites as partes tão altas e tão distantes do campo que o espetáculo se tornaria desinteressante. Nos estádios com três anéis a tendência era posicionar as frações mais elitizadas na parte intermediária. Todavia, o povo deveria ficar embaixo e a ralé poderia até ser (mal)acomodada em espaços ainda mais abaixo, tão abaixo que seus horizontes visuais fossem a linha do gramado. Em todo o caso, o povo estava lá, porque não poderia deixar de estar, caso os estádios desejassem cumprir a função metonímica de representar a nação. Este propósito cumpriu-se tão satisfatoriamente que os próprios torcedores de clubes passaram a se imaginar como uma nação, algo que dificilmente ocorreria se os estádios de outrora fossem como as arenas atuais, que simplesmente excluem uma fração da população.

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Protótipo da cobertura do fosso do estádio do Morumbi. Foto: São Paulo FC/Divulgação.

O fosso é sem dúvida um dispositivo grotesco, cuja anatomia lembra as trincheiras de guerra. Uma entidade dessa natureza não poderia ser invenção senão do Estado, a instituição responsável pelos negócios da guerra no período moderno – ou ao menos, que detém o seu monopólio. A sua finalidade é escancarada: conter a fúria das massas, dessa gente incivilizada que o próprio Estado alocou nos estádios. O desaparecimento desse dispositivo, como se pode notar na arenização, é também um indicativo de que o Estado já não é mais o agenciador dos espetáculos. Desde que as próprias instituições esportivas chamaram para si a responsabilidade de governar a população que vai aos jogos – e o relatório Taylor é um marco importante dessa transição – trataram de criar outras estratégias de contenção, no que foram auxiliados por experts de diferentes áreas. Segmentaram os espaços para reduzir a mobilidade do público, introduziram câmaras para monitorar o comportamento, colocaram seguranças (privados) dentro de campo e afastaram o público que supostamente necessitava ser contido pelo fosso.

O fosso se tornou obsoleto, e a razão principal talvez não se deva ao fato de que o reposicionamento do público aproximou do campo uma classe civilizada. Vou especular, na próxima sessão, o quanto a extinção do fosso pode revelar sobre as formas de torcer e de como o marketing tem responsabilidade sobre tais agenciamentos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Arlei Sander Damo

Professor PPG Antropologia Social/UFRGS. Autor de Futebol e Identidade Social e Do dom à profissão. Co-autor de Cultura y Fútbol e Megaeventos esportivos no Brasil.

Como citar

DAMO, Arlei Sander. Do fosso ao selfie. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 3, 2017.
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