Nos últimos dias a imprensa noticiou a oposição que parte da torcida do Clube Atlético Mineiro exerceu em relação à contratação do técnico Cuca. O motivo é a condenação que ele recebeu depois de ser acusado de participar de um estupro coletivo de uma menina de 13 anos, Sandra Pfäffli, em Berna, Suíça. O ano era 1987 e ele era jogador profissional do Grêmio de Football Porto-alegrense, clube em que ele recém chegara, vindo do Esporte Clube Juventude, de Caxias do Sul. O julgamento de Cuca e de mais três jovens adultos do mesmo time aconteceu em 1989, resultando em condenações a diferentes penas, conforme a participação que cada um teria tido no crime. O processo prescreveu em 2004.

Cuca Grêmio
Cuca nos tempos de jogador, com a camisa do Grêmio.

A situação fez emergir na rede mundial de computadores um conjunto de matérias jornalísticas da época, entre elas a cobertura da Placar, veículo pelo qual eu acompanhei os acontecimentos há tantos anos atrás. Mas, também a da Veja, bem como a que mais me chamou a atenção, a do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, que na ocasião enviou um repórter para cobrir os acontecimentos na Europa. Enquanto os rapazes eram mantidos presos, o Tricolor seguiu em excursão pelo continente. Ainda era uma época em que as equipes brasileiras costumavam participar de partidas e torneios amistosos na pré-temporada europeia, no verão do Hemisfério Norte.

Há, como costuma acontecer nesses casos, uma guerra de narrativas. Segundo se lê, os jogadores teriam dito que a coisa aconteceu de maneira consensual, com eles imaginando que a menina tivesse mais anos do que realmente tinha. Segundo o depoimento dela, no entanto, a história seria diferente, teria sido detida por uns, enquanto outros consumavam o estupro, depois de seus dois acompanhantes serem expulsos do quarto de hotel onde tudo acontecera. O objetivo do trio visitante era obter lembranças do time brasileiro.

No início da semana, Cuca gravou um depoimento para o blog de Marília Ruiz, do Universo Online (UOL) , em que nega que tenha cometido qualquer crime, afirmando que a condenação se deu pela presença da menina no quarto dos rapazes e que ele teria sido julgado à revelia, o que o advogado gremista à época, Luiz Carlos Pereira Silveira Martins, desmente. Segundo ele, tudo foi feito dentro do rito judicial correto. Cacalo, como é conhecido, destaca que apenas um deles teria tido relações – consentidas – com a suíça, mas que os demais também foram condenados por estarem presentes ao ato. Considerando o que diz o advogado, eu perguntaria ainda se a condenação foi porque, estando lá, nada teriam feito para que o aconteceu não acontecesse. A condenação se deu, finalmente, porque manter ou favorecer relações sexuais com uma moça daquela idade, sendo os rapazes adultos, configura-se, de qualquer forma, como crime.

Além de Cuca, dois dos outros jogadores implicados no episódio desenvolveram carreiras importantes no futebol. O goleiro Chico, cujo nome de batismo é Eduardo Henrique Hamester, e segundo o qual tudo teria sido “invenção da menina” (Placar, 16.03.1990), chegaria a ser ídolo no Ceará Sporting Club, alcançando o vice-campeonato da Copa do Brasil em 1994. Nas quartas-de-final, contra o Palmeiras, defendeu uma cobrança de pênalti de Evair, um especialista na jogada. Henrique, por sua vez, atuou durante vários anos no Corinthians na década de 1990, onde conquistou títulos. Ambos foram, ademais, campeões mundiais de juniores pela seleção em 1983, na União Soviética, em uma equipe que contava ainda com Silas, Müller e Taffarel, e da qual Romário fora cortado por indisciplina. Fechando o quarteto estava Fernando Castoldi, que, chamado de Fernando Gaúcho, atuou pelo Figueirense em 1991.

Nenhum dos quatro costuma se pronunciar sobre o assunto, ao menos não publicamente, e é o espírito do nosso tempo que fez emergir a exigência de uma declaração por parte de Cuca. Ele foi genérico e apelou para a própria biografia para defender-se das acusações, sem especificá-las com clareza. É que não se trata de discutir se ele é “do bem”, como bem destacou Milly Lacombe, em seu ótimo texto sobre o tema . Ela teria conhecido o treinador em 2006, e diz que “Em nenhum momento ele me tratou com paternalismo, ou foi arrogante ou tentou me explicar coisas a respeito do futebol como quem fala com uma criança – atitude comum a muitos homens que dialogam com uma mulher sobre o jogo. Guardo desse nosso encontro a melhor impressão possível”. Ela lembra que, no entanto, que “(…) o machismo é um suco que a gente toma na mamadeira e que está nas nossas correntes sanguíneas: na de homens, na de mulheres, na de crianças. É bastante difícil a gente se deseducar dele, e a atitude requer atenção, esforço e disciplina”.

Milly aponta a questão central: o quanto o machismo está naturalizado. É possível que Cuca não se dê conta do problema em toda sua extensão, o que não o isenta da responsabilidade sobre o que aconteceu há mais de três décadas, tampouco de sua atual falta de autorreflexão. Mas o problema é de todos nós. Em agosto do ano passado, Carmen Rial, minha colega na UFSC, concedeu uma importante entrevista à Folha de S. Paulo em que retoma o caso dos quatro gremistas em Berna, comentando como no Brasil se recebeu a condenação em primeira instância (depois confirmada em segunda) do jogador Robinho, por estupro coletivo na Itália. Carmen se refere às mudanças na imprensa, destacando o quanto ela se mostrou, no Rio Grande do Sul, machista em 1987. Na ocasião ela escreveu com Miriam Grossi, também da UFSC, um artigo para o Mulherio em que mostra como os jogadores foram louvados como machos, isentados porque teriam feito uma travessura e mostrados como perseguidos pela Justiça da Suíça. Terminam categoricamente, reunindo citações da imprensa gaúcha. Sugiro a leitura do texto, bem como conhecer a interessante publicação que foi aquele jornal feminista .

No mais, não esquecer é sempre um bom recurso para que o mal não se repita. Isso vale também para aquele que em nós encontra abrigo.

Ilha de Santa Catarina, março de 2021.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Do machismo entre nós – 1987, 2021. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 11, 2021.
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