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Dois futebóis, um fenômeno

Marcel Diego Tonini 7 de fevereiro de 2019

Quem acompanha minimamente o noticiário esportivo sabia que o último domingo era dia de Super Bowl, o LIII da história. Mesmo aqueles que não gostam ou entendem pouco as regras deste jogo já ouviram dizer que este é o evento esportivo mais valioso do mundo, aquele mais adorado e assistido pelos norte-americanos[1]. Não deixa de ser intrigante, aliás, como ele, apesar do extremo sucesso nacional, não conseguiu conquistar outros países. O texto de hoje, porém, não tratará deste jogo em si – nem tenho conhecimento para tal. Abordarei uma realidade sua que se tornou notória nos últimos tempos e traçarei paralelos com aspectos encontrados em esporte homônimo, só que jogado com os pés e bola redonda.

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Em 2016, um jogador de nome comprido e cabelo black power causou ao ficar sentado ou ajoelhar-se durante a execução do hino nacional norte-americano antes do início dos jogos de seu clube, o San Francisco 49ers. Seu nome é Colin Kaepernick e seu protesto era contra a opressão social sofrida por negros, em referência à injustiça racial e à brutalidade de policiais brancos contra afro-americanos[2]. Recusando-se a ficar de pé e demonstrar orgulho pela bandeira dos Estados Unidos, em um momento tão tradicional quanto patriótico neste esporte, o fato político por ele manifestado tomou proporções nacionais, recebendo tanto apoio quanto crítica de personalidades. Se o maior astro do basquete mundial, Lebron James, aprovou sua atitude, o então candidato republicano, Donald Trump, aproveitou-se do “antipatriotismo” do quarterback em benefício próprio na campanha presidencial[3].

Kaepernick caiu no ostracismo. Ao término daquela temporada, seu contrato com os 49ers se encerrou e ele não foi procurado por outra franquia para um novo acordo. Em novembro de 2017, o atleta entrou com uma ação contra a NFL, acusando os proprietários de conluio para bani-lo da liga por suas declarações políticas, não por seu desempenho profissional em campo[4]. Ao longo de 2018, o quarterback continuou sem atuar. Em setembro, no entanto, firmou contrato milionário com a Nike para o trigésimo aniversário da campanha publicitária Just do It, cujo slogan escolhido foi, em tradução livre: “Acredite em alguma coisa. Mesmo que isso signifique sacrificar tudo.”. A fornecedora de material esportivo, do mesmo modo, foi elogiada por muitos e criticada por outros tantos. Nas redes sociais, inclusive, muitos destes propuseram boicotar a empresa, divulgando imagens de tênis jogados no lixo, meias com o logo cortado e camisetas queimadas[5]. Por sua vez, o comissário da liga, Roger Goodell, anunciou no início do ano passado que puniria clubes e jogadores que não ficassem em pé ou desrespeitassem a execução do hino nacional, possibilitando aos descontentes a ida ao vestiário nesse momento solene[6].

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Não bastasse toda a controvérsia com o caso envolvendo Kaepernick, outro fato chamou a atenção do noticiário esportivo internacional na virada de 2018 para 2019: a demissão de cinco técnicos negros no futebol americano, após o término da temporada regular[7]. Agora, dentre trinta e duas franquias, há apenas dois negros empregados, o que coloca em xeque a política de diversidade proposta pela entidade. Cabe lembrar que, desde 2003, a NFL adota a Rooney Rule, a qual exige das equipes que ao menos um candidato pertencente às minorias seja entrevistado para cargos vagos de técnico e dirigente (a partir de 2007, de acordo com a nova regulamentação), sendo necessário documentar quem foram os entrevistados[8].

Ela entrou em vigor, aliás, como reação à demissão de dois treinadores negros, mesmo após ambos terem obtido sucesso. Tony Dungy foi o primeiro técnico com recorde de vitórias a ser demitido pelo Tampa Bay Buccaneers. Já Dennis Green foi mandado embora do Minessota Vikings após a primeira temporada com recorde de derrotas em dez anos como treinador principal. Apesar dos acontecimentos atuais, um simples dado mostra a importância desse tipo de regulamentação. Entre a contratação de Fritz Pollard nos anos 1920 e a implementação dessa regra no século XXI, registram-se apenas sete treinadores oriundos de grupos minoritários. Com o estabelecimento da Rooney Rule, dezoito deles ocuparam tal cargo, considerando tanto os efetivos quanto os interinos[9]. Em 2012, contudo, nenhum dos contratados era de minorias, o que fez com que muitos sugerissem a revisão da regra.

Tony Dungy. Foto: Flickr.

A estrada a percorrer, sem dúvida, é longa, e a luta tem de ser constante. Os dois únicos técnicos negros atuais – Mike Tomlin, do Pittsburgh Steelers, e Antony Lynn, do Los Angeles Chargers – contrastam com a porcentagem de 70% de negros entre os atletas da NFL. Se não bastasse eles estarem sub-representados, ainda persiste a atuação deles mais em times defensivos do que ofensivos. Qual o motivo? Negros não seriam bons estrategistas? Destacam-se apenas por características físicas ou, em outras palavras, biológicas? Esta também seria a razão para vermos tão poucos atletas negros enquanto quarterbacks em contrapartida aos inúmeros tackles e wide receivers? Ou seja, negros não servem para pensar jogadas, mas para correr e para bater cabeças e sofrer concussões eles são os melhores?

Essa barreira racial que os negros têm de enfrentar no futebol americano também é encontrada no futebol, o que eles chamam de soccer. Trata-se de um esporte praticado oficialmente em sua maioria por negros – no Brasil, mormente, isso é inquestionável. Historicamente, ocuparam mais posições de ataque e pelos lados do campo do que propriamente de armadores, defensores e goleiros – sem dúvida, isso vem mudando nas últimas décadas. Os estereótipos sempre levantados seriam igualmente de ordem racial: eles não seriam confiáveis para ocupar posições tão importantes nem teriam capacidade intelectual para organizar jogadas. O “frango eterno” escrito por Nelson Rodrigues, acerca do gol sofrido pelo goleiro Barbosa na “final” da Copa do Mundo de 1950, é um registro histórico que não pode ser apagado[10]. Para aqueles que acham que isso é coisa do passado, basta lembrarmo-nos do que Fernandinho sofreu na última Copa do Mundo, quando o Brasil foi eliminado pela Bélgica[11].

Fernandinho em entrevista coletiva pela seleção brasileira. Foto: Mowa Press.

Subindo a hierarquia da estrutura do futebol, são raríssimos os negros que conseguem galgar patamares e ocupar outras posições que não a de roupeiros, massagistas e atletas. Como técnicos de quadros inferiores, até os vemos com alguma frequência. Enquanto auxiliares e interinos, menos, mas ainda os vemos. Já como treinadores de times principais, não passam da terceira derrota, vide as experiências de Andrade, Jayme de Almeida, Cristóvão Borges e, mais recentemente, Roger Machado e Jair Ventura. No posto de árbitro, temos bem mais hoje do que tivemos num passado recente, mas as situações vividas por José Aparecido de Oliveira e Márcio Chagas da Silva devem sempre ser lembradas. Enquanto dirigentes, não os encontramos nem com lupa, nem mesmo com a profissionalização de alguns cargos. Como jornalistas e comentaristas esportivos, também são raros, sendo que os ex-atletas têm tido cada vez mais espaço nos programas esportivos. Será que os diretores de jornalismo não os veem capacitados para articular meia dúzia de frases ou não gostam mesmo é da imagem deles? Afinal, de um universo tão grande de ex-atletas, onde os negros são maioria, são chamados apenas Junior, Denílson, Grafite e César Sampaio[12]?

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O racismo está presente em ambos os esportes, seja no futebol jogado com as mãos, seja no seu primo jogado com os pés. Apesar das características próprias de cada um, novas pesquisas, quantitativa e qualitativamente, devem ser feitas diante dos fatos que se reproduzem aos montes todos os anos. Não é mais possível fecharmos os olhos para esse fenômeno nos esportes achando que isso faz parte do jogo. A reprodução deles dentro e fora dos gramados interfere diretamente na sociedade, independente das particularidades do racismo nos Estados Unidos, no Brasil ou onde quer que seja. Enquanto a academia pode e deve estudar mais, cabe à mídia, igualmente, reportar os fatos e cobrar das autoridades. O que as respectivas federações esportivas têm feito para combater o racismo[13]? As medidas têm sido suficientes? Quais outras alternativas? Ao final, resta a pergunta: quantos Super Bowls, Brasileirões ou Copas do Mundo serão necessários para encontrarmos outro cenário para os negros em ambos os esportes?


[1] Disponível em: <https://forbes.com.br/listas/2015/10/10-eventos-esportivos-mais-valiosos-do-mundo/#foto1>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[2] Disponível em: <http://www.nfl.com/news/story/0ap3000000691077/article/colin-kaepernick-explains-why-he-sat-during-national-anthem>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[3] Disponível em: <https://esporte.uol.com.br/reportagens-especiais/nfl-espelho-da-america-o-lado-conservador-do-futebol-americano/index.htm#o-gesto-que-dividiu-a-nfl-e-o-pais>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[4] Disponível em: <https://abcnews.go.com/Sports/qb-colin-kaepernick-files-grievance-collusion-nfl-owners/story?id=50499785>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[5] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2018/09/campanha-da-nike-com-atleta-polemico-da-nfl-gera-protestos-nos-eua.shtml>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[6] Disponível em: <http://www.nfl.com/news/story/0ap3000000933962/article/roger-goodells-statement-on-national-anthem-policy>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[7] Disponível em: <https://esporte.uol.com.br/ultimas-noticias/2019/01/02/nfl-fica-sob-pressao-apos-demissao-de-cinco-tecnicos-negros.htm>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[8] Disponível em: <https://www.newyorker.com/sports/sporting-scene/what-work-remains-for-the-rooney-rule>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[9] Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Rooney_Rule>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[10] Cf. RODRIGUES, Nelson. A pátria em chuteiras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 74. Poderia ter citado ainda inúmeros trechos do livro escrito por Mario Filho (O negro no futebol brasileiro. 4. ed.), como a suposta “borrada” de Barbosa na estreia pela seleção brasileira (p. 290), ou a charge de Nássara (JAL; GUAL. A história do futebol brasileiro através do cartum. 2004, p. 41), em que retratou o fatídico lance em preto e branco e com um frango no lugar da bola.

[11] Disponível em: <https://esporte.uol.com.br/futebol/copa-do-mundo/2018/noticias/2018/07/07/fernandinho-e-alvo-de-ofensas-racistas-na-web-apos-eliminacao-do-brasil.htm>. Acesso em: 5 fev. 2019.

[12] O cenário na televisão norte-americana, aliás, parece dar muito mais espaço para os negros em contrapartida ao que vemos, por exemplo, no Brasil.

[13] Nesse sentido, a “Regra Rooney” da NFL, embora deva ser criticada e mereça revisão, mostra-se indubitavelmente uma medida antirracista muito mais eficaz do que as protocolares campanhas da FIFA, Conmebol, CBF ou FPF.

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Marcel Diego Tonini

É doutor (2016) e mestre (2010) em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo também bacharel (2006) e licenciado (2005) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP - Campus de Araraquara). Integra o Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO-USP) e o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP). Tem experiência nas áreas de Ciências Sociais e História, com ênfase em Sociologia do Esporte, Relações Étnico-raciais, História Oral e História Sociocultural do Futebol, trabalhando principalmente com os seguintes temas: futebol, racismo, xenofobia, migração, memória e identidade.

Como citar

TONINI, Marcel Diego. Dois futebóis, um fenômeno. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 7, 2019.
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