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Doping olímpico: estratégia, falha ou embuste?

Wagner Xavier de Camargo 13 de fevereiro de 2022

Acaba de ser noticiado nos últimos dias um escândalo de doping envolvendo a atleta russa Kamila Valiela, uma patinadora artística que participa dos Jogos de Inverno de Beijing e que testou positivo para trimetazidina, uma substância proibida na lista da Agência Mundial Antidoping (WADA, em inglês).

O doping em competições olímpicas não é, notadamente, uma novidade. O caso de Valieva é significativo porque ela tem apenas 15 anos, apesar de competir na categoria adulta.

Estamos, então, diante de uma dupla corrupção esportiva, isto é, um caso de doping “de menor” e, possivelmente, de especialização precoce – esse aspecto sabido, ao menos, desde Nadia Comăneci, nos anos 1970.

A Federação Russa, por sua vez, tem um histórico nebuloso quanto à dopagem de atletas. Vale lembrar da polêmica recente no atletismo e da proibição à participação de atletas russos/as nesta modalidade nas últimas edições olímpicas de verão.

As substâncias que “dopam” tiveram seu uso intensificado desde meados dos anos 1900. Há várias delas em uso, como estimulantes, narcóticos, diuréticos, injeções de sangue (do próprio indivíduo), betabloqueadores, e uma infinidade de outras. Suas escolhas dependem da modalidade esportiva em questão.

De modo geral, duas razões podem explicar o interesse pelo doping: o profissionalismo no esporte, que se intensificou ao longo do século passado, e as descobertas bioquímicas e farmacológicas. O capitalismo, regime que saiu vitorioso da Guerra Fria, foi a pedra de toque da consolidação do doping e de seu modo de operar.

O resto foi decorrente da ação humana, que passou a valorizar a vitória nas modalidades esportivas, a premiar com altas somas de dinheiro em algumas modalidades (golfe, tênis, ciclismo, fórmula 1, futebol, por exemplo), a agregar marcas e recordes, e a enfatizar um único tipo de desempenho.

Minha primeira decepção relativa ao doping aconteceu em 1988, nos Jogos de Seul. Com 14 anos, meu “herói esportivo” da vez era Ben Johnson, um canadense que pulverizou o recorde mundial com a marca de 9s79 nos 100 m rasos. Três dias depois do feito teve que devolver a medalha a Carl Lewis.

Ben Johnson
Foto: reprodução

Na categoria das mulheres, minha “heroína” era Florence Griffith-Joyner, que ostentou uma campanha bem-sucedida nas provas de velocidade dos mesmos Jogos. Meses após as medalhas conquistadas, Florence faleceu de vítima de uma convulsão – possivelmente uma consequência do uso excessivo de drogas proibidas.

Posso dizer que Seul resultou no marco da maturidade de um garoto que, gostando de esportes, nem sabia o que era doping. E, numa só tacada, não apenas entendeu que doping era uma “prática desonesta”, como deixou de acreditar que existiam “heróis” e “heroínas” olímpicos/as.

O Brasil entrou no rol dos países com atletas dopados também nos anos 1980. Salviano Domingues usou nandrolona para aumentar musculatura e foi pego na antidopagem num Meeting Internacional de Atletismo em São Paulo.

O caso mais emblemático, no entanto, foi o de Sueli Pereira dos Santos, uma lançadora de dardo que estava entre as melhores do mundo e acabou suspensa 4 anos devido ao uso de substância dopante. Isso ocorreu em 1995, nos Jogos Pan-americanos de Mar del Plata, Argentina.

Nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos (de verão ou inverno), ou ainda em competições de outras naturezas, o uso de doping instaura uma dimensão moral sobre ética, comprometimento coletivo, sentidos do esporte e mesmo acerca do valor da vida.

Com o passar do tempo, tal temática transpôs os limites das pesquisas científicas e hoje está em filmes, documentários e livros. Cito dois exemplos recentes que merecem destaque: o livro Virada Olímpica, que narra a versão da ex-nadadora Receba Gusmão, e o documentário Ícaro, sobre doping no ciclismo internacional.

Ícaro
Fonte: divulgação

Quanto ao doping em si, e depois de observar casos e ler sobre eles, fico em dúvida: seria uma estratégia sem a qual o esporte de alto nível não sobrevive? Ou é uma falha no (des)controle das federações e confederações em relação à ação de seus/suas atletas e treinadores/as? Ou ainda seria um embuste proposital, que independente dos meios utilizados, visam fins laureáveis?

Talvez o doping não seja nada disso, ou seja tudo isso e algo mais. Uma única e invariável certeza nos assola, no entanto: o doping faz (e continuará fazendo por um bom tempo) parte deste imenso e glamoroso universo dos espetáculos esportivos e seus atores.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Doping olímpico: estratégia, falha ou embuste?. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 15, 2022.
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