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Driblando a exclusão: futebolistas trans negros

Wagner Xavier de Camargo 15 de novembro de 2020

Do ponto de vista do “lugar de fala”, não tenho o direito de me expressar por um atleta negro. Afinal, nem que queira dizer que tenho raízes africanas e indígenas na família, em vista de ser branco, pouca gente acreditaria. Além disso, nunca sofri racismo ou fui marcado pela cor da pele. Sequer posso me colocar no lugar de uma pessoa transgênero ou intersexo, principalmente por ser homem cisgênero, alguém que concorda com o gênero a mim imposto no nascimento. Ainda como gay também nem penso em “defender-lhes” de discriminações, pois isso seria algo colonialista. Como aliado, tento entender a negritude, transgeneridade e a intersexualidade sem passar por elas na carne, mas reconhecendo a importância de suas existências.

Daí entra em cena meu lugar de antropólogo, onde penso em me acomodar. Um local de ser/estar que observa analiticamente o social e sua alteridade, de onde se pode fazer algumas inferências, sempre tendo a consciência de que é um lugar marcado, pois sou homem, branco, cisgênero, posições de privilégio na sociedade atual. A crítica ao etnocentrismo (ou à própria raça/etnia como mais importante) vem desde os tempos de nascimento da Antropologia e marca parte de sua história.

Há certo tempo tenho pesquisado o campo das sexualidades dissidentes no esporte porque penso que é necessária uma problematização no modo como corpos são classificados, categorizados e mesmo autorizados neste espaço. Para nossa sorte, há muitas pessoas empenhadas em se mostrarem corporal e esportivamente e isso é um bom mote propulsor. As velhas categorias “masculina” e “feminina”, que ainda organizam as modalidades, não dão conta das múltiplas e variadas possibilidades de “corpes, corpas e corpos” (como diz o transativista e professor Kaio Lemos), que jogam, nadam, correm e lutam por meio delas.

Em minhas pesquisas atuais sobre futebol LGBTQIA+, uma expressão esportiva que vem crescendo e se redimensionando na atualidade brasileira, tenho observado cada vez mais pessoas pretas e pardas engajadas em jogar futebol, particularmente atletas trans negros (ou negres, para neutralizar a marca de gênero). São pessoas que praticam a modalidade como forma de socialização para encontrar iguais, mas também como plataforma política de resistência, engajando-se num movimento de reivindicação de um lugar no social.

Porém, nesse “futebol LGBTQIA+” (aspas nessa longa e complexa sigla), nem todas as oportunidades são equivalentes para todes, todas e todos. No cômputo desse futebol, alguns poucos “times gays” se tornaram negócios, angariando patrocínios e parcerias; outros (talvez a maioria), possuem realidades bastante difíceis e muitas vezes lançam mão de estratégias, como rifas, “vakinhas virtuais”, vendas de camisetas, etc., para subsistirem. São formas de arrecadar fundos através de contribuições ou doações, que os ajudam a comprar material esportivo, a pagar lanches em dias de jogos e mesmo permitem ajudar alguém do grupo, que necessita de algo emergencial. Notadamente, jogadores trans negres sofrem com suas situações de exclusão social e são os mais vulneráveis na bacia de letras, porque passam por discriminações que envolvem classe social, gênero e raça/etnia, fatores que os afetam diretamente no cotidiano.

Por isso, importante tratar desta problemática neste futebol emergente de modo interseccional, para usar um conceito que tem figurado nas pautas do movimento feminista de mulheres negras, visto que foram elas que, por primeira vez, registraram que não era possível não se atentar para os fatores que as colocavam no último posto da agenda social. As realidades de atletas negres transmasculines são umas das mais duras, pois carregam estigmas sociais da cor da pele, do estrato social, da condição de pobreza, do abandono ou rejeição familiar por conta do não alinhamento à heterossexualidade e da condição de não-bináries (ou de corpos que estão em transição e apresentam elementos julgados “de homem” e “de mulher” ao mesmo tempo).

Meninos Bons de Bola. Foto: Observatório da Discriminação Racial do Futebol

Não está relacionado ao futebol, mas vale notar o que Marcelo Caetano, um ativista trans negre, trouxe em entrevista[1]: a questão da situação anterior vivida (como mulher negra) e a realidade posterior deflagrada (como homem negre). Operam na situação três camadas de preconceitos sobre tal sujeito que se interseccionam: primeiro, a sensualização e objetificação da mulher negra; o segundo, a aversão sobre a condição de lesbianidade quando identificada nesse corpo não-heterossexual; e, por último, depois de um processo desencadeado de transição de gênero, o sentimento de ameaça que o corpe negre (investido de homem trans) postula perante uma sociedade racista. Bruno Santana, outro transativista negre, igualmente sugere que essas questões devam ser tratadas por um viés interseccional, pois dados marcadores sociais posicionariam este corpe no contexto histórico-social determinados:

Para pensar sobre transgeneridade e negritude é preciso pensar de forma interseccional, levando em conta os marcadores sociais de diferença, tais como identidade de gênero, raça, classe, sexualidade, territorialidade e tantos outros marcadores que nos atravessam e demarcam nosso local de fala nos determinados contextos históricos e sociais (Santana, 2019, p. 97).[2]

O futebol parece organizar a intersecção de tais marcadores. Por isso, não se trata apenas de pesquisar corpos jogando futebol, muito menos de apreciar tal fenômeno como se fora um outro qualquer dentro da modalidade, como o futebol de mulheres: em que pese terem semelhanças, tal prática de homens trans (negres) envolve particularidades flagrantes de um lugar de marginalidade da marginalidade.

Nos tempos de minha pesquisa anterior sobre atletas que se reconheciam como gays, a quase totalidade era de origem caucasiana, pele branca e oriunda do hemisfério norte. Os Gay Games, evento investigado por mim em várias edições, pouca diversidade étnica apresentava entre participantes. Dentre os mais de 180 atletas com quem conversei, com distintas identidades sexuais e de gênero, apenas um deles era negro, vivia na França e era oriundo da Argélia, na região norte da África (porção árabe). Nele se misturavam outros marcadores, como migração, identidade nacional, origem étnica e homossexualidade, o que acabou deixando-o de fora da amostra dos entrevistados, porque, apesar de se reconhecer como gay, não praticava esporte com regularidade e muito menos ia a competições oficiais (dois critérios seletivos de minha amostragem). Se a homofobia era elemento pivotante dos discursos, o racismo pouco ou nada aparecia como discriminação.

Nenhum desses entrevistados, no entanto, colocava-se como transexual ou transgênero. As pessoas trans com quem acabei tendo um contato tardio foram as voleibolistas tailandesas, as quais me apresentaram outra possibilidade de entendimento sobre a sexualidade no meio esportivo. Foi a partir delas que comecei a estar mais antenado para as condições de subalternidade nas arenas, entre os próprios sujeitos da famigerada sigla LGBTQIA+.

De outro lado, já é sabido, e de longa data na literatura, que o esporte é uma das instituições sociais de maior segregação de gênero do Ocidente. As famigeradas categorias “masculina” e “feminina” não acolhem outros corpos, outres corpes. Além de ser corponormativo (que valoriza o corpo padrão, sem deficiência), o esporte se construiu no lugar da branquitude, do privilégio, do masculino, que mesmo importantes pessoas não brancas dentro dele conseguiram subverter. Inclusive, isso ecoa nos recentes protestos de jogadores da NBA e de outros atletas negros pelo Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

No esporte e na sociedade, pessoas trans são necessárias, pois deflagram que há muito o que repensar em termos de categorias instituídas, de identidades definidas ou mesmo de condições tidas como fixas e imutáveis. Elas não questionam apenas o corpo biológico, via sexo e gênero atribuídos no nascimento, mas o lugar social que é alocado de acordo com uma lógica genitalista.

Por sua vez, pessoas trans negres cruzam, de modo provocativo, lugares. Mostram a nós todes que fronteiras não apenas devem ser questionadas, como transgredidas no sentido de buscar onde tais corpes, corpas e corpos querem se situar. Para futebolistas trans negres não existe estar ou parar na fronteira, mas sim ultrapassá-la, não importando o quão difícil seja, pois é apenas isso que trará certa visibilidade social a partir do questionamento sobre privilégios instituídos no sexo biológico, na cor de pele, na classe social e no jogar futebol.

Como nos dribles do jogo, futebolistas transmasculines negres continuam fintando na vida, e como torcedor de suas jogadas, torço para que continuem marcando muitos gols, dignos de serem aplaudidos.

 

Notas

[1] ARRAES, Jarid. Homem trans e negro nas trincheiras do cotidiano. Entrevista com Marcelo Caetano. Revista Fórum. 15/04/2015. 

[2] SANTANA, Bruno. Pensando as transmasculinidades negras. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf Malungo. Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019. p. 95-104.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Driblando a exclusão: futebolistas trans negros. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 29, 2020.
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