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Driblando a imprensa: a habilidade de Deivid

Leda Costa 6 de março de 2012

Sim, é verdade. O gol perdido por Deivid nas semifinais da Taça Guanabara já é assunto um tanto gasto. Gasto, mas não esgotado, sobretudo para uma pesquisadora que como eu se interessa pelas figuras vilânicas que transitam no universo do futebol. Enquanto o professor Ronaldo Helal traçou ótimos estudos sobre a representação das figuras heróicas do futebol, preferi seguir pelo caminho oposto e abordar a fama pelas avessas. E esse é o caso de Deivid. Um vilão que protagonizou as narrativas do jogo Flamengo x Vasco ocorrido na noite de 22/02/2012. Essa data marca a entrada de Deivid para a história do clássico das multidões. Uma entrada pela porta dos fundos, típica dos vilões da derrota no futebol. Típicas de jogadores sobre os quais recai a responsabilidade de alguma derrota.

Deivid não acredita no gol perdido. Foto: André Portugal – VIPCOMM.

A vilania – e podemos dizer o mesmo do heroísmo – é fruto de uma visão simplificada do jogo, afinal é muito mais fácil interpretar uma derrota a partir da responsabilidade de um jogador ao invés de compreendê-la como um processo mais complexo que pode envolver uma série de fatores. Eleger vilões é uma prática comum que se estende para além do futebol, afinal trata-se de uma figura muito presente e acessível no imaginário ocidental.

Os vilões são personagens consagrados pelo melodrama francês do século XIX e se perpetuaram por intermédio de romances, telenovelas, filmes, quadrinhos e tantas outras produções culturais. Chegaram ao futebol plenamente incorporados às narrativas da imprensa, sendo fundamental à composição das notícias esportivas. Grande parte da imprensa esportiva no Brasil costuma deixar de lado uma análise mais acurada do jogo que leve em conta os aspectos táticos e técnicos do jogo. Trata-se de uma imprensa que em grande medida privilegia o efeito sobre o leitor, daí o sucesso dos vilões, afinal assim como ocorre nos melodramas, esses personagens condensam grande parte da carga dramática conferida às histórias do futebol.

Por se tratarem de figuras familiares, os vilões têm um ótimo rendimento na memória do torcedor. Pensar na derrota de 1950, por exemplo, é lembrar de Barbosa, goleiro acusado de levar um “frango” no segundo gol uruguaio. E o que dizer da Copa de 2006 cuja eliminação da seleção foi emblematizada na figura do lateral Roberto Carlos e seus meiões. Lembrar do jogo Flamengo X Vasco, do dia 22.02.2012 é trazer à mente o gol perdido por Deivid. Trata-se de uma memória mediada pelas narrativas produzidas pela imprensa esportiva.

Vágner Love e Ronaldinho comemoram o gol do Flamengo. Foto: André Portugal – VIPCOMM.

Nesse sentido, é importante tomar os vilões enquanto personagens estreitamente vinculados às especificidades de grande parte do jornalismo esportivo no Brasil cujas estratégias de produção de notícia são pautadas em narrativas de matriz melodramática feitas para públicos massivos. No dia seguinte ao jogo, Deivid capitalizou toda a atenção da imprensa. A história do jogo Flamengo X Vasco confundiu-se com a história do gol perdido pelo atacante rubro-negro.

Nos jornais chamados populares Deivid teve uma recepção que enfatizou o lado cômico. Foi o caso do jornal Extra e do Meia Hora em suas edições do dia 24.02.2012. O mesmo ocorreu na Edição do último domingo, dia 26.02.2012, do Fantástico, da Rede Globo. Todos tentaram mostrar de diversas formas que qualquer pessoa em qualquer situação seria capaz de por a bola para dentro da rede.

O próprio Deivid parece ter assumido sua vilania. Disse ele em entrevista que: “Não teria motivo para me esconder. Não sou jogador frouxo, covarde e otário. Só tem um culpado [pela derrota]. Fui eu. Isso nunca vai me fazer pedir para sair do Flamengo.” (Folha de São Paulo, 24.02.2012).

Deivid mostrou dignidade ao ir para frente das câmeras depois de uma noite um tanto desastrada. Mas será que Deivid não teria caído nas armadilhas do discurso da imprensa esportiva? Afinal, nenhum jogador pode ser responsável por uma derrota – ou vitória – e ele enquanto atleta sabe que o jogo jogado é muito mais complexo do que o jogo narrado.

Deivid em entrevista. Foto: Marcus Zanutto – VIPCOMM.

Creio que é possível pensar que Deivid mostrou ter compreendido as demandas da imprensa esportiva e percebeu que se continuasse a negar, seu nome continuaria sendo ridicularizado masssivamente. Era necessário falar a mesma linguagem da imprensa esportiva. Ao colocar-se na posição de culpado, Deivid ganhou a simpatia de parte da imprensa e esse aspecto fica evidente, por exemplo, na manchete do Extra, on line, “Vilão confesso, Deivid ameniza críticas assumindo culpa por derrota após gol perdido”.

O jornal vai além e inicia a matéria dizendo: “Massacrado pelo gol incrível perdido contra o Vasco, que contribuiu para a eliminação do Flamengo da Taça Guanabara, o atacante Deivid conseguiu amenizar as críticas se despindo de vaidade e se colocando como pai de família passível de erros, como qualquer trabalhador.” (Grifos meus).

Mais do que ter razão, Deivid queria paz. E nesse sentido mostrou grande habilidade em lidar com a imprensa esportiva ao oferecer a possibilidade de recomposição da sua imagem vilânica construída após a derrota de seu time. A repercussão da atitude de Deivid evidenciou como as avaliações da imprensa quase sempre ultrapassam os domínios das quatro linhas e recaem em outras esferas, algumas de ordem moral. É nessas ocasiões que se torna possível questionar o caráter neutro da imprensa esportiva assim como refletir sobre a proximidade entre as notícias esportivas e o entretenimento.

O caso Deivid foi o grande folhetim melodramático da semana que teve fim ao se trazer à cena a dimensão humana do jogador. A figura do trabalhador, do homem que não foge das responsabilidades e que é pai de família – valores tão caros no Brasil – possibilitou a composição de um vilão que se redimia diante de todos. Afinal assim como nos melodramas os vilões precisam de algum tipo de punição. É importante lembrar que o melodrama teve seu auge no período da Revolução Francesa. Período em que grande parte da França sentia a necessidade de exaltar valores como honra, família e coragem, sendo que os vilões representavam o lado oposto de um mundo idealmente virtuoso. Por isso seu castigo – inevitável ao final da história – saciava a sede de justiça de um público que vivia um cotidiano marcado por uma atmosfera de crise.

O técnico Joel Santana parece não acreditar no que vê. Foto: André Portugal – VIPCOMM.

No caso do futebol, a crise é gerada pela derrota e os vilões surgem para minimizá-la daí a necessidade de puni-los, mesmo que de forma simbólica. Deivid foi punido, ao ser ridicularizado, ao ser questionado enquanto atleta, ao ser vaiado pela torcida rubro-negra e aplaudido de modo sarcástico pelos vascaínos. Mas Deivid também foi punido ao assumir uma responsabilidade que não lhe cabia. Seu erro foi evidente, mas nada nos garante que se a bola tivesse entrado, o Flamengo teria ganhado o jogo.

Porém, ao assumir sua “culpa” Deivid pode respirar um pouco mais e sonhar. No Domingo, dia 26.02.2012, ao responder a pergunta do repórter Tadeu Schmidt: “Você fica pensando na maneira de apagar esse gol”, Deivid respondeu: “Final da Libertadores … Flamengo sendo campeão com um gol meu”.

A vilania não é uma condição permanente. O vilão de hoje pode ser o herói de amanhã. Basta uma vitória. Como diria Mário Filho “A vitória é como uma varinha de condão que transforma um jogador num ente superior. A multidão fá-lo ídolo”. E Deivid não escapará a essa lógica perceptível entre torcedores, mas que também articula grande parte das narrativas da imprensa esportiva.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. Driblando a imprensa: a habilidade de Deivid. Ludopédio, São Paulo, v. 33, n. 2, 2012.
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