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Mais um drible de Mané ou Memorial ao nosso desprezo pela preservação da memória

Luciane de Castro 3 de junho de 2017

Nos deparamos, no decorrer desta semana, com notícia veiculada pelo Jornal Extra, de que o corpo de Mané Garrincha teria desaparecido do túmulo no Cemitério Municipal de Raiz da Serra, em Magé.

A notícia chocou a todos e tomou dimensão internacional, mas em se tratando de nossa capacidade ímpar de desprezar fatos históricos do passado, o “sumiço” do corpo de Mané deveria ser apenas o retrato fiel de como nos comportamos ante a memória nacional.

Todo a embaralhada começa com a retirada para exumação, troca de lugar e ausência de registro. Convém, aos que ainda não se informaram por inteiro, clicar aqui para ler a matéria do Jornal Extra e, aqui, onde um dos netos de Garrincha diz que tudo não passa de uma farsa.

Angelita.
Angelita Martinez e Garrincha com a camisa do Botafogo em 1958. Foto: Sem Informação/Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Noves fora papo de família mais um tanto de interesse em especulação, o resultado dessa equação é mais que absoluto: grande parte da população brasileira sofre de ausência de memória e tampouco tem interesse no resgate, manutenção e aperfeiçoamento desta.

Não à toa revivemos o ambiente político de golpe. Não à toa, escolhemos os mesmos gângsters ou sua genealogia para definir nossas vidas.

O imbróglio com o corpo de Garrincha é apenas uma das milhares de maneiras de destruição do que construímos de imaterial, ainda que restos mortais impliquem o contrário.

Minha experiência com o lugar e atuação da memória futebolística, mais especificamente, começou em 2008, quando fui apresentada ao Grupo de Memória e Literatura de Futebol – Memofut, pelo grande amigo Luiz Fernando Bindi. Através do Memofut conheci pessoas, fortaleci laços e ampliei minha área de atuação.

Ouvir e contar histórias é nato do jornalista. Preservá-las e distribuí-las de maneira responsável é não mais que sua responsabilidade por extensão. Dentro destas atribuições, tenho procurado realizar os trabalhos mais adequados ao que acredito, gosto e considero importante. A memória entre eles.

Entretanto, como fortalecer na população, o entendimento da importância de preservação de sua história? São tantas as preocupações, as urgências, as necessidades mais básicas, os traumas e as violências, que o passado, às vezes, não é um lugar tão bom assim para visitação.

Lembrar o que e para que?

Lembrar o que fizemos de bom e o que fizemos de ruim:
O de bom para melhorar e o de ruim, idem;
O de bom para exaltar e o de ruim para nunca mais fazer;
O de grande para que nossa superação fique marcada, intacta, como um daqueles poucos momentos em que suprimimos todo o universo do nosso alcance e fomos únicos;
O de mesquinho para que a vergonha por um comportamento inadequado esteja sempre presente e nos impeça de cometer os mesmos atos.

Cuidar para que um espaço ou uma peça mantenha seu aspecto mais próximo do original ou que reverbere de alguma maneira uma atmosfera específica, é trabalho destinado a quem tem profundo respeito pela história.

Longe de querer parecer fúnebre, mas observando os cemitérios como locais distintos de manutenção de memórias, ouso dizer que estamos, no geral, muito mal representados quanto à gestão, manutenção e respeito a todas as memórias presentes nestes espaços.

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Garrincha no hospital em 1959. Foto: Demócrito/Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Garrincha é apenas – e não deveria, óbvio! – um entre tantos outros casos do nosso recorrente desleixo. O trabalho das pessoas interessadas em manter a integridade da história, ou quer seja de parte dela, tem concorrentes destruidores poderosos. O cemitério, local a que maioria de nós somos destinados e como um depositário fiel de nossa “insignificância”, poderia valer-se de papel de alquimista e transformar a percepção de finitude a que nos apegamos tanto.

Claro que o espaço onde jazem criaturas cujas histórias foram fantásticas, mundialmente conhecidas ou cuja importância tenha ficado restrita a um número pequeno de pessoas, são de responsabilidade de administradores determinados pelo poder público, mas o dever moral de cuidar para que tudo o que alguém viveu e representou é das pessoas que o cercaram ou que reconhecem sua importância num recorte de nossa tão recente história como país.

Você lá sabe o que Garrincha significou para a história do futebol mundial? Você sabe qual foi sua importância na conquista do bi campeonato em 1962? Você ao menos entende que não seríamos penta campeões se não tivéssemos sido campeões uma vez?

Para além do ‘diz-que-me-disse’ com o qual nosso jornalismo anda flertando descaradamente, vale uma análise do valor que damos à construção da nossa memória. Pergunta direcionada: Você, colega, quer cliques ou labutar na construção da memória daqueles a quem você diz admirar? Vale só aquele furo ou aquela matéria ‘foooooda e exclusivaça’, ou o respeito pela pessoa “dona” daquele pedaço de espaço/tempo?

O cemitério, esse fim melancólico a que nos confinamos com certa antecipação e que nos faz crer seguros nossos “restos”, tem, além da responsabilidade pelo manuseio em seu terreno, a chance de rever seu papel como espaço revigorado de memórias.

Pensar que a essa altura do campeonato Garrincha meteria mais um drible, pode até parecer engraçado, mas não passa de triste, assim como essa ideia de que alguém da família quer tumultuar a coisa toda. Fosse por respeito de verdade ao que Garrincha representou para o futebol MUNDIAL, a memória do futebol brasileiro não estaria tomando mais essa sainha.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

Como citar

CASTRO, Luciane de. Mais um drible de Mané ou Memorial ao nosso desprezo pela preservação da memória. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 3, 2017.
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