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Duas décadas do Dérbi Eterno

Há exatos 20 anos, numa eletrizante semifinal de Libertadores, Palmeiras e Corinthians fizeram um dos melhores e mais aguardados embates da centenária história do clássico. Chamado de o “dérbi do século”, a noite épica acabou com vitória palmeirense e foi decidida nos pênaltis, num duelo particular entre Marcelinho Carioca e Marcos, separados por 11 metros da final da Libertadores.

Dois jogos emocionantes e cheios de rivalidade. Foi assim que, novamente, Corinthians e Palmeiras se encontraram para decidir a classificação para a próxima fase de uma Libertadores da América.

Se em 1999 o confronto acontecera nas quartas de final, em 2000 os arquirrivais disputaram uma vaga na decisão do torneio continental. Pelo peso do que estava em jogo e em razão da gigantesca rivalidade, o jogo que hoje completa 20 anos é uma película a ser reverenciada na galeria de grandes jogos do futebol brasileiro.

Todos os ingredientes necessários para uma boa decisão estiveram presentes no Morumbi, naquela noite fria de junho. Nada menos do que cinco gols  –  na ida foram sete –, defesas milagrosas de dois grandes goleiros, um herói improvável no tempo normal e no ato final, uma defesa que parou o tempo e fez eterna para o palmeirense a noite de 6 de junho de 2000.

As escalações falam por si mesmas e impressionam pela qualidade de lado a lado. Oswaldo de Oliveira escalou o Corinthians com Dida, Daniel, Fábio Luciano, Adílson e Kléber, Edu, Vampeta, Marcelinho Carioca e Ricardinho, Edílson e Luizão. Já Luiz Felipe Scolari, em seus 11 iniciais, mandou a campo Marcos, Rogério, Roque Júnior, Argel e Júnior, Galeano, César Sampaio e Alex, Pena, Marcelo Ramos e Euller.

Um timaço corintiano que jogava por música, era letal no ataque e tinha um meio-campo capaz de enfrentar qualquer equipe do mundo em pé de igualdade. A base desse Corinthians havia batido o Real Madrid e o outro grande elenco brasileiro naquele ano, o Vasco da Gama, no experimental Mundial de Clubes da FIFA.

Pelo lado alviverde, uma equipe menos qualificada que o adversário e também em relação ao elenco que fora campeão continental no ano anterior. Tinha em jogadores do calibre de Alex, César Sampaio e Asprilla, a reserva técnica necessária para impor o que normalmente os times de Felipão têm de melhor: a garra.

Toda essa “entrega tática” nem sempre era “orgânica” – para usar termos do “titês” –, pelo contrário, na maioria das vezes, essa disposição era forjada em preleções inflamadas. A imprensa, por meio de suas fontes e dos chiliques do gaúcho à beira do gramado, conhecia os métodos do treinador, porém, nunca havia flagrado uma dessas nem tão amistosas conversas de Scolari com o grupo.

Num dos treinamentos após a primeira partida da semifinal que apontou vitória corintiana por 4 a 3, sem querer querendo, os repórteres tiveram acesso aos fundos dos vestiários do CT da Barra Funda e flagraram uma retumbante bronca de Felipão em seus comandados.

Entre cobranças por mais “malandragem”, “mais raça”, por “pontapés e cascudos” e acusações ao caráter de Edílson, Scolari encerrou a conversa com uma frase que esquentou os ânimos nos Parques Antártica e São Jorge e repercutiu durante toda a semana que antecedeu o clássico:

“Vocês têm que ter na cabeça tudo que estou falando para vocês. Raiva dessa porra de Corinthians”.

Tudo devidamente registrado por toda a imprensa presente no treinamento. Felipão, além de ter sido um bom treinador de sua geração, sabia trabalhar como poucos com os bastidores do jogo a seu favor. Numa única ação, o gaúcho colocou um ingrediente motivacional importantíssimo no campo de batalha.

Os palmeirenses expostos teriam que dar até a última gota de sangue se fosse preciso para vencer o arquirrival, pois a torcida ouvira o treinador dando a ordem. Já para os corintianos, a panela de pressão começou a assoviar antes mesmo do apito inicial, a provocação junto ao momento do clube que havia sido eliminado da Copa do Brasil – cairia também no Paulistão antes do confronto decisivo –, deixava apenas uma opção ao grupo de Oswaldo de Oliveira: vencer.

É preciso recorrer à década de 1990 para contextualizar o momento em que a partida aconteceu. Naquele período, a já extrema rivalidade aflorou por sucessivos jogos decisivos entre os clubes, que ano após ano montavam equipes cada vez melhores. Desde 1993, quando o Palmeiras encerrou o maior jejum de títulos de sua história justamente sobre rival, passando por decisões de Rio-SP, Brasileirão, Campeonato Paulista até chegar aos confrontos de Libertadores em 1999 e 2000.

Daquele período, alguns jogos se destacaram pela alternância de domínio como na decisão do Paulistão de 1995, com o Corinthians faturando o título, ou na final do Campeonato Brasileiro de 1994, quando foi o Alviverde quem ficou com a taça. Porém, a partida que marcou a decisão do Campeonato Paulista de 1999 dimensiona a que ponto chegara a rivalidade entre aquele grupo de jogadores que foi mantido pelos dois clubes por pelo menos duas temporadas.

As embaixadinhas de Edílson seguidas pela pancadaria generalizada na final do Paulistão de 1999, no mesmo Morumbi, aconteceram apenas três dias depois de o Palmeiras comemorar o título da Libertadores daquele ano. E como o Verdão chegou à decisão contra o Deportivo Cali? Deixando o Corinthians nas quartas de final, nos jogos que transformaram Marcos em São Marcos. A rivalidade extrapolou as arquibancadas e invadiu os centros de treinamento, pois aqueles jogadores assumiram a identidade dos clubes que defendiam.

Definitivamente, a semifinal de 2000 era a revanche necessária e desejada por qualquer corintiano na face da Terra. E como rivalidade pouca é bobagem num Dérbi, desde os jogos pela Libertadores e Paulistão de 1999, muita coisa mudou para os dois lados.

Com o título continental, o Palmeiras garantiu o direito de disputar o Mundial, mas perdeu para o Manchester United. Logo no início de 2000, o Corinthians foi convidado como representante do país sede para disputar o primeiro Mundial organizado pela FIFA e venceu.

Assim, alvinegros e alviverdes ganharam munição nova para as cotidianas gozações. Enquanto corintianos iniciavam o hoje tradicionalíssimo “sem Mundial”, os palmeirenses questionavam o “Mundial sem Libertadores”.

Quando o cruzamento na fase eliminatória da Libertadores apontou para um possível confronto, as torcidas já começaram a se mobilizar pela expectativa. Porém, quando o Corinthians despachou o Atlético Mineiro e o Palmeiras eliminou o Atlas do México, estava confirmada que uma das semifinais daquele ano seria um Dérbi. O clima mudou na cidade de São Paulo, a conversa diária tinha uma pauta única e não havia quem não tivesse um palpite para o “Parmera x Curintia” que se aproximava. E foi assim que o dia 6 de junho de 2000 chegou.

Não sem antes a tensão ser agravada pelo 4 a 3 do primeiro jogo, em que o Corinthians chegou a abrir 3 a 1, cedeu o empate e conquistou a vitória no fim, e também sem que a “raiva” de Felipão vertesse como água nos quase 50 mil sortudos que conseguiram ingressos para abarrotar as arquibancadas do Cícero Pompeu de Toledo, além das centenas de milhares de apaixonados mundo afora.

A escalada de apresentação do Dérbi do Século tinha um tom apocalíptico durante a terça-feira paulistana. Edílson Pereira de Carvalho, o juiz que cinco anos depois seria o pivô da “máfia do apito”, era o árbitro escolhido para comandar o clássico mais valioso da história. Torcidas protagonizavam o mais belo espetáculo nas arquibancadas. Delegações concentradas para um evento muito maior que apenas um jogo.

Era o tipo de partida que poderia ter dois caminhos: descambar para a pancadaria logo nos primeiros minutos ou ser um jogo memorável. Para o bem do futebol, os atletas escolheram a segunda opção e fizeram um espetáculo em alto nível técnico e tático.

Chances para todos os lados e apenas a certeza de que o placar apontava a vantagem do empate para o Corinthians. Sabendo disso, os palmeirenses se lançaram ao ataque e após martelar bastaste, enfim, aos 34 minutos, Euller abriu o marcador. Ironicamente, o Filho do Vento não precisou de sua velocidade habitual, na verdade, fez o gol porque estava parado atrás de Adílson quando a bola sobrou depois do zagueiro corintiano falhar no quique da bola, em um cruzamento de Júnior.

Poderia ser o início do domínio palmeirense, mas foi o incentivo que faltava para os corintianos. Apenas cinco minutos depois, Luizão seguiu a risca a cartilha do centroavante e num escanteio batido por Marcelinho Carioca, se posicionou longe dos olhares de seus marcadores para cabecear sozinho e empatar a partida antes do intervalo.

O empate continuava classificando o Corinthians, mas os últimos minutos da primeira etapa sugeriam que o Timão poderia estar à frente no marcador. Quando Edílson Pereira de Carvalho apitou para iniciar os últimos 45 minutos, os alvinegros tomaram de vez as rédeas do jogo e Edílson, “encapetado” como de costume, foi até a linha de fundo e cruzou para trás, Luizão mais uma vez desmarcado finalizou com a canhota de primeira e virou o placar com apenas seis minutos de bola rolando.

Com menos de 40 minutos ainda por jogar, o Palmeiras precisava ao menos de dois gols para levar a decisão aos pênaltis, o gol de Luizão poderia ter sido o balde de água fria, o ponto final. Não foi, pois aos 14 minutos, o Filho do Vento partiu em velocidade digna de recorde nos 100 metros rasos e cruzou para Alex, que com classe no arremate, empatou.

Era visível o nervosismo de todos em campo. Nas arquibancadas, unha era artigo raro, pois todas possíveis já haviam sido roídas. Pareceu uma eternidade, mas apenas 12 minutos separaram o empate da bola alçada na área corintiana com toda a malandragem de Alex para encontrar um improvável Galeano nas costas de Adílson e, assim, numa dividida com Dida, o volante (re)virou o placar.

No resultado agregado, os times anotaram um inacreditável 6 a 6, 12 gols em dois jogos de altíssimo nível. Depois do gol de Galeano, os jogadores em campo perceberam que não havia como nocautear o adversário no tempo regulamentar. Mesmo assim, houve emoção até o apito final que decretou: a decisão aconteceria nas penalidades máximas.

Disputa de pênaltis
Disputa de pênaltis no “dérbi do século”. Foto: Reprodução.

A lista dos dois clubes para os pênaltis é invejável. Pelo Palmeiras: Marcelo Ramos, Roque Júnior, Alex, Asprilla e Júnior. Pelo Corinthians: Ricardinho, Edu, Fábio Luciano, Índio e Marcelinho Carioca. Nos gols nada menos do que Marcos e Dida, titular e reserva da Seleção Brasileira.

Nem no momento dos pênaltis, a rivalidade foi deixada de lado. Argel e Edu tiveram um breve desentendimento com direito a empurrões. Por tamanha qualidade, o índice de acertos foi alto e levou todas as cobranças às redes até o chute de Marcelinho Carioca que encerraria a série.

Quantas possibilidades passaram pela cabeça de Marcelinho, enquanto caminhava do grande círculo até a marca da cal? Quanta responsabilidade pesou sobre os ombros de Marcos ao perceber que tudo poderia ser decidido ali? Ou vice e versa, fato é que assim como todos que acompanhavam aquele momento, ninguém mais do que Marcos e Marcelinho sentiram o peso do que seria decidido num chute.

Dois dos maiores expoentes daquela geração para as suas torcidas. Marcos e Marcelinho eram ídolos por tudo que fizeram até aquele encontro, estavam separados por 11 metros da final da Libertadores e a um ato da eternidade. Marcelinho bateu forte e cruzado no canto baixo. Marcos realizou mais um de seus milagres e espalmou a bola para colocar o Palmeiras na decisão.

Marcos defende cobrança de pênalti de Marcelinho Carioca
Marcos defende cobrança de pênalti de Marcelinho Carioca. Foto: Reprodução/Twitter/SporTV.

A festa alviverde que começou no gramado do Morumbi inundou as ruas paulistanas com palmeirenses comemorando a classificação como um título e tomou a história como uma noite épica. Aos corintianos, restou torcer contra o arquirrival na decisão em que o Palmeiras enfrentou o Boca Juniors. Deu certo, pois os argentinos conquistaram o título.

Assim, com a derrota na decisão que marcou o início de mais de uma década de má fase no Palmeiras e o Corinthians conquistando a Libertadores apenas em 2012, a rivalidade foi mantida pelos próximos anos, balizada pelos desdobramentos daquele clássico, o Dérbi Eterno.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. Duas décadas do Dérbi Eterno. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 14, 2020.
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