133.41

E 1987 não acabou – penta ou hexa: diferentes memórias sobre a hegemonia no futebol brasileiro quando o ‘mercado’ entra em campo

Tratamos aqui da disputa entre as diferentes memórias em torno do título da Copa União, em 1987, pelo Flamengo, mas não, centralmente, a partir da polêmica em torno do questionamento, inclusive nos tribunais, daquele título. Mas, sim, a partir das implicações ensejadas mais adiante, quando o mesmo clube é campeão de 1992, o que coloca o debate sobre quem seria o primeiro pentacampeão brasileiro. Ou seja, considera-se 1987 mais como uma espécie de “escada” para 1992 do que a questão a ser escrutinada. Para isso, analisa-se a influência de dois fatores-chave: a produção de uma determinada memória social (HALBWACHS, 1990) pelo jornalismo esportivo e o crescente avanço dos valores de “mercado” no futebol brasileiro (SOUTO, 2009). 

Um título para muito além de 1987

A disputa entre as diferentes memórias do universo do futebol brasileiro foi atravessada por tantas narrativas e conflitos, nesse período, que o São Paulo só obteve, de forma definitiva, o direito de receber a taça relativa à conquista do quinto Campeonato Brasileiro – na versão iniciada em 1971 – onze anos depois da quinta conquista tricolor, em 2007. A entrega do troféu, repassado pela Caixa Econômica Federal (CEF) – na condição de responsável pela guarda da taça por ser a patrocinadora do campeonato naquele período – ocorreu por determinação judicial, após a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) ser notificada oficialmente da decisão, unânime, da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em 5 de dezembro de 2017. Em instância final, e da qual não cabem recursos judiciais, o Supremo reconheceu o Sport, de Pernambuco, como “o único campeão brasileiro de 1987”. 

Uma decisão paralela à do Judiciário, em busca de uma composição dos interesses dos dois clubes, fora tentada pela CBF, em 2011, quando, em meio a um processo de reaproximação política da entidade e do Flamengo, declarou reconhecer os dois clubes campeões de 1987. A partilha do título, porém, enfrentou a resistência do Sport, que recorreu, mais uma vez, à Justiça, na qual foi vitorioso.

A decisão terminativa no âmbito jurídico, porém, não encerra a questão, pelo menos do ponto do jornalismo esportivo. As Organizações Globo, por exemplo, anunciaram que, a despeito do veredicto do Supremo, reconhecem Flamengo e Sport como co-campeões de 1987. Tal posição é reafirmada sempre que algum veículo da empresa publica a relação dos campeões brasileiros, como no caderno de esportes dedicado ao Campeonato Brasileiro de 2018 (O Globo, 15/4/2018), em que os dois clubes constam na relação dos campeões nacionais daquele ano.

Tal decisão, acompanhada por outros veículos da imprensa nacional e jornalistas esportivos, reafirma o papel desempenhado pelos meios de comunicação como senhores de uma determinada memória de uma dada sociedade. Ao mesmo tempo, apresentam-se como os principais responsáveis pelas diferentes ressignificações dos eventos esportivos (SOUTO, 2002), embora, hodiernamente enfrentem o escrutínio das redes sociais, que têm se apresentado como um entrave à reivindicação homogenizante dos primeiros.

Por considerar a polêmica sobre a conquista da Copa União como condição essencial, porém, não deflagradora das diferentes memórias sobre a hegemonia no futebol brasileiro, não se propõe aqui acompanhar todo o processo das idas e vindas em torno da nomeação do campeão de 1987 – para uma historiografia detalhada do caso, veja-se: “Quem é o campeão de 87? Flamengo ou Sport? – polêmicas vazias #81 – Copa União 1987”. Acessoriamente, quando se fizer necessário ilustrar o objeto principal, poderá visitar-se aspectos relevantes dessa historiografia, com o intuito de jogar luzes sobre as contradições e retomadas de posições dos diferentes atores envolvidos que, como se defende aqui, não se restringem a Flamengo e Sport.

A disputa de memórias entre os dois personagens diretamente envolvidos na polêmica de 1987 passa a ser fortemente atravessada por outros atores e circunstâncias, não apenas pela passagem do tempo, que esmaece o apoio, unânime, inicialmente recebido pelo Flamengo do Clube dos 13. Mas, principalmente quando a reivindicação de ser o primeiro pentacampeão coloca-se como componente central na disputa pela hegemonia do futebol brasileiro. Ao analisar-se a ressignificação do título e o reposicionamento dos antigos aliados parte-se da compreensão de que o papel do jornalismo esportivo na produção de uma determinada memória pode ser cotejado com os estudos de Halbwachs (1990) sobre o papel social da memória.

Para esse pensador, a referência ao passado não é estática nem serve apenas para manter o grupo coeso e ajudar a definir seu lugar em relação à sociedade em geral e aos demais grupos. Ela também instaura “oposições irredutíveis”, fruto de leituras e apropriações distintas do passado. A questão da memória produzida pelos meios de comunicação desdobra-se no problema das diferentes identidades dos envolvidos. A impossibilidade, anotada por Hobsbawm (1997), de que nem todo o mundo é globalizável, incluído aí o futebol, obriga a que a disputa pela hegemonia da identidade desse esporte não se esgote apenas na desconstrução do antigo paradigma. É indispensável, também, afirmar um novo modelo, que, para legitimar-se, não pode prescindir de forjar suas próprias tradições, constituídas por novos símbolos, mitos e ritos. Ou, nas palavras de Hobsbawm (1997), de “tradições inventadas”, para forjar uma nova identidade.

E a questão que produz essa fricção das narrativas não está localizada, centralmente, em torno do título de 1987, mas, sim, na reivindicação de um clube ser proclamado o primeiro pentacampeão brasileiro, com toda a polissemia da gramática de um jornalismo esportivo cada vez mais encharcado por valores de “mercado”. Nesse contexto, tal demanda é entendida por outros atores sociais – inclusive, entre os que davam suporte à reivindicação rubro-negra, em relação a 1987, como o São Paulo e torcedores de outros times do Clube dos 13, que à época não contestavam o título – como uma nova questão. Ou dito de outra forma: a mesma questão, mas num contexto diferente.

A disputa, no universo do futebol, por defensores dos valores de “mercado” e da “tradição” na construção da representação de uma “identidade brasileira” desse jogo é uma tensão antiga, mas é possível apontar seu acirramento a partir da perda da Copa do Mundo de 1982, na Espanha, quando a seleção dirigida por Telê Santana, embora elogiada por seu “futebol bonito”, foi eliminada, nas quartas de final, pela Itália. Tal tensão, porém, foi incrementada nos anos 1990, quando alguns treinadores e setores do jornalismo esportivo passam a defender, mais abertamente, a adoção de esquemas e jogadores “mais pragmáticos”. Simultaneamente, questionam valores caros aos “tradicionalistas”, como a eficácia do “jogar bonito” e ofensivamente.

O uso de aspas que cerca as nomeações mercado e tradição não implica tentativa de desqualificação ou juízo de valor sobre as posições em confronto. Ele deve ser lido como um alerta de que os sentidos reivindicados pelos dois campos não são aqui naturalizados, mas entendidos como processos socialmente construídos e que guardam interseções com outros movimentos para além do universo pesquisado.

Embora essa contenda adquira coloridos mais fortes quando trata-se da representação da seleção brasileira, ela também comparece, ainda que adquirindo outras camadas e provocando questionamentos distintos, quando analisa-se a relação do jornalismo esportivo e dos torcedores com os grandes clubes brasileiros. Não se pretende recuperar todo o debate entre “tradicionalistas” e os “modernos”.[1] Mais relevante, aqui, é resgatar alguns dos principais valores de “mercado” que informam o debate em torno da hegemonia do futebol brasileiro no campo dos clubes, com suas singularidades.

Alguns autores, como Ronaldo Helal (2001) chamam atenção para outros pontos importantes para explicar o distanciamento da seleção do povo brasileiro, como a globalização, a desterritorialização dos nossos principais craques e até uma “maior maturidade” do país, que explicariam uma menor dependência do nosso futuro dos resultados do selecionado Consideramos, porém, que, embora borrada por uma série de fatores, como os apontados por Helal e, também, pelo estranhamento em relação a valores que parte dos torcedores considera “não tradicionais”, a seleção brasileira segue sendo elemento constituinte basilar da identidade nacional. Por analogia, mesmo imperfeita, com a política, os clubes poderiam ser considerados partidos, que, até pela etimologia, são partes, não o todo.

Nesse sentido, valores de “mercado” criticáveis quando associados à seleção, como “vencer a qualquer custo”, enfrentam resistências mais amenas quando replicados nos clubes. Da mesma forma, conceitos mais estrangeiros quando se trata do escrete, provocam estranhamento e rejeição quando ocorrem no âmbito clubístico, como transferências de jogadores muito associados a um rival para outro ou o tratamento acrítico, e, no limite, ufanista, da imprensa esportiva a determinadas agremiações.

Apontar alguns dos valores centrais ligados ao “mercado” naturalizados pelo jornalismo esportivo que provocam estranhamento em parte dos torcedores pode nos fornecer algumas pistas para entender as razões da resistência, não tanto ao título de 1987, mas quando este se torna parte integrante da série de cinco conquistas que leva o rubro-negro a reivindicar a primazia de primeiro pentacampeão. Na própria nomeação atribuída pela imprensa à sequência de cinco títulos, não consecutivos, temos uma sinalização importante da nova gramática do jornalismo esportivo.

O jornalista Luiz Mendes localiza em 1970, após a conquista do tricampeonato mundial pela seleção brasileira, no México, a mudança nas nomeações da imprensa esportiva ao contabilizar conquistas não sequenciais das equipes brasileiras: “(A mudança foi) Por essa euforia que a nossa imprensa tem e que veste a camisa da seleção brasileira.”[2] Ressalve-se que a nova terminologia adotada a partir de 1970 restringe-se a títulos em competições nacionais, como Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil, e internacionais, como Copa Libertadores, não sendo replicada no âmbito estadual. Uma hipótese é que, como em nível local, os principais times têm pelo menos duas dezenas de títulos, renomeações como icosacampeão, em lugar de 20 vezes campeão, provocariam uma dificuldade comunicacional com o público.

Ainda que, em formato diferente quando se trata dos clubes, a disputa pela identidade não tem caráter apenas local. Na Alemanha, Franz Beckenbauer, maior ídolo do Bayer de Munique e um dos maiores ícones do futebol daquele país, criticou, não poucas vezes, as mudanças de estilo adotadas por Pep Guardiola, no período em que este comandou a equipe da Baviera. Adepto do futebol de muitos toques e do controle da bola, Guardiola – principal símbolo de um estilo de jogo, que, para muitos torcedores e grande parte da imprensa, reúne “futebol bonito” e títulos – foi cobrado pelo ídolo alemão, justamente, pelo excesso de toques, antes que seus jogadores chutassem a gol. Beckenbauer pediu “uma forma mais eficiente” de jogar.

Nessa peleja, os “tradicionalistas” podem sustentar que um esboço, ainda que ligeiro, do futebol brasileiro revela que, até os anos 1990, os valores de “mercado” eram acessórios, ainda que fossem encontráveis indicações mercantilistas anteriores, principalmente a partir dos anos 1980 (SOUTO, 2009). Remonta a este período o surgimento, no Brasil, das primeiras propagandas estampadas em camisas de clubes brasileiros e, à década seguinte, as pioneiras transmissões ao vivo de jogos de futebol pela TV aberta para a mesma praça em que são realizados. Tais modificações foram introduzidas na esteira de uma grave crise financeira dos grandes clubes nacionais, que, para além de dificuldades específicas e administrativas, foram vítimas das duras recessões que castigaram o país nos anos 1980 e 1990, atingindo de formas e intensidades variadas diversos setores do país.

Talvez, por isso, a disputa de narrativas da identidade do futebol brasileiro foi marcada, inicialmente, pela ausência de uma explicitação mais profunda do que representava esse processo, o que impediu, num primeiro instante, uma decantação mais nítida das posições em jogo. Os “românticos”, apesar de algum barulho produzido na época, tenderam, em geral, a encarar as transformações com um misto de fatalismo – pelas dificuldades financeiras dos clubes e pelo dinheiro da televisão para transmitir, ao vivo, os jogos dos principais times – e ressentimento. Já os “modernos” não se sentiram tão à vontade, como viriam a se mostrar quase dez anos depois, para uma defesa mais enfática das vantagens da adoção de valores de “mercado” (SOUTO, 2009).

Não foi a primeira, e dificilmente será a última vez, em que a prática se antecipou à teoria. Numa espécie de efeito inercial, porém, os apologistas do “mercado”, aproveitando-se da crise dos clubes – que insistia em quedar-se apesar das medidas “modernizantes” introduzidas – ampliaram, na prática, a ocupação de espaços. Em sintonia com os ventos neoliberais que já sopravam mais fortemente nos anos 1990, os “modernos” tendiam a desqualificar as formas “tradicionais”, bem como toda simbologia associável a este modelo.

Agora, já não se limitavam à defesa da propaganda de empresas nas camisas dos clubes, passando a mudar as cores e os modelos tradicionais eternizados por novos e antigos ídolos. Curiosamente, em paralelo, algumas marcas icônicas globais, como Coca-Cola e McDonald’s, não se impunham as mesmas transformações; ao contrário, cada vez mais exportavam para mercados periféricos suas identidades locais. Diante da situação de penúria dos clubes, as mudanças encontraram um nível relativamente baixo de resistência dos que enxergavam neles uma profanação dos “mantos sagrados” de seus times e uma tentativa de esvaziamento dos estádios, com o público que seria “roubado” pela TV.

Esta cada vez mais responde por fatias maiores dos faturamentos dos clubes, que, no fim de 2016, segundo levantamento do portal UOL e da consultoria BDO Sports Managment, chegava a até 78%, como no caso do Vasco. Com isso, a TV Globo – detentora do monopólio dos direitos de transmissão das principais competições envolvendo clubes brasileiros – situação mitigada quando, a partir de 2011, a Fox no Brasil adquire o direito de transmitir a Libertadores em canal fechado – passa a impor seus próprios interesses na transmissão dos campeonatos, como horários e dias das partidas, que times têm ou não suas partidas exibidas, e as quantias pagas a eles.

A Globo tem optado por concentrar em Flamengo e Corinthians valores até nove vezes maiores em relação aos pagos a outros dos doze principais clubes brasileiros [8]. A assimetria na distribuição da receita com a TV, que já levou alguns críticos a alertarem para o risco de “espanholização”,[3] do futebol brasileiro, não se repete, porém, nos índices de audiência das principais agremiações.

Em 2017, de acordo com levantamento do site Torcedores.com, sobre amistosos de pré-temporada, jogos dos Campeonatos Carioca e Brasileiro, Copa Libertadores, Copa do Brasil e Copa Sul-Americana, o Flamengo teve, em média 32,82 pontos, contra 26,10 do Botafogo, 25,62 do Vasco e 25,33 do Fluminense. Ou seja, audiência média 25% superior ao vice-líder. Essa diferença, no entanto, é bem mais assimétrica quando trata-se do total de partidas transmitidas, ao vivo, no mesmo período. De acordo com a pesquisa, o Flamengo teve 41 jogos exibidos, contra 21 do Fluminense, 20 do Botafogo e 16 do Vasco. Ou seja, quase o dobro do segundo clube em partidas transmitidas e pouco mais de 100% superior, nessa comparação, ao vice-líder em audiência

É a partir da explicitação da defesa de que os clubes deveriam atuar como “empresas” e das tentativas de desqualificar características e conquistas da era do predomínio dos valores “tradicionais” que seus defensores, na torcida e no jornalismo esportivo, passam reagir de forma mais forte ao avanço dos seus antagonistas. Não se trata “apenas” de uma discussão sobre preferências futebolísticas. E, como exemplificado na contenda Beckenbauer x Guardiola, por tratar-se de fenômeno cultural, a disputa por identidades no futebol não se restringe ao Brasil nem apenas à seleção brasileira.

Se, em relação à seleção, o estilo mais “pragmático” – “futebol de resultados” para seus críticos – e a desqualificação do “futebol bonito” são os principais constituintes da gramática dos “modernos”, no âmbito dos clubes, são outras as causas das tensões. Tal processo é mais bem compreendido se não for tratado como fenômeno isolado de um determinado tempo, mas como parte de uma história mais ampla do futebol brasileiro, no contexto da memória social, como reivindicado por Halbwachs (1990), que percebeu a necessidade de distinguir o número de tempos coletivos para cotejá-los com a variedade de grupos coletivos.

Ele propõe o tratamento da memória como fenômeno social, classificando a linguagem, o tempo e o espaço como quadros sociais de memória. Se para Durkheim (1970) os fatos sociais são exteriores ao indivíduo e dotados de um poder coercitivo, para Halbwachs, o que importa não é a memória, mas os quadros sociais da memória. Durkheim opera com a razão da sociedade, enquanto Halbwachs busca demonstrar que essa razão resulta da forma humana, a única equipada para realizar e animar permanentemente a existência social.

Halbwachs entende, assim, que a memória, por sua natureza, é social. A memória individual, dessa forma, estaria sempre construída em relação ao grupo do qual se faz parte, em relação ao meio social e a todos que nos cercam. A linguagem, que possibilita a unificação da memória do grupo, bem como o tempo e o espaço, são quadros sociais privilegiados. O sistema simbólico é a essência da memória coletiva, e o espaço e o tempo são meios pelos quais se servem diferentes memórias coletivas para lembrar aquilo que está próximo ou distante. Tal concepção implica entender que o homem caracteriza-se, essencialmente, por seu grau de integração ao tecido das relações sociais. O papel do jornalismo esportivo e os dos demais atores sociais do universo do futebol fica mais bem entendido nas suas complexidade se for percebido nesse contexto.

Taça das Bolinhas. Fonte: Wikipédia.

É dentro dessa integração dos indivíduos a relações mutantes, mais do que à mera jocosidade clubística, que devem ser lidos os reposicionamentos desses atores, incluindo os que, até determinados quadros sociais, apoiavam a reivindicação do título rubro-negro de 1987: “Não tem o que discutir. O Conselho Arbitral já decidiu isso. Eles (dirigentes do Sport), infelizmente, continuam os mesmos, os mesmos incompetentes, e continuam criando problemas”, afirmava, pouco depois de o Sport começar a se movimentar para contestar o título do clube carioca, um bem mais jovem Eurico Miranda, então vice-presidente do Vasco

Na gramática daquele contexto, Miranda –  designado o representante do Clube dos 13 para negociar com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) uma saída jurídica para o impasse entre os dois lados – ao assumir o reconhecimento do título do Flamengo, muito além de alguma deferência ao rival, fazia a defesa de uma posição dos principais clubes brasileiros de maior independência junto à confederação.

É nesse contexto social – embora num tempo cronológico bem mais distante – que deve ser lida declaração na mesma direção de Carlos Miguel Aidar, presidente do São Paulo por três vezes e presidente do Clube dos 13 em 1987, que, em entrevista ao programa de Juca Kfouri, na ESPN Brasil, em 3 de novembro de 2007, volta a reconhecer o título rubro-negro, embora o São Paulo, ao qual era ligado, também reivindicasse o recebimento do troféu pelos cinco títulos: “A CBF dá como campeão brasileiro de 87 o Sport, de Recife, e, para nós (Clube dos 13), o campeão foi o Flamengo.”

Naquele momento, Aidar e Miranda participavam de uma memória coletiva que ia muito além da memória do Flamengo e de seus torcedores. Tratava-se de uma narrativa, na qual predominava a defesa do poder dos principais clubes brasileiros em relação à hegemonia da Confederação Brasileira de Futebol. Assim como o discurso dos dois dirigentes rivais do rubro-negro, naquele contexto, estão informados por uma determinada memória social, a sua mudança também está conectada por outros graus de integração aos tecidos de novas relações sociais.

Nesse período, mudanças importantes ocorreram no futebol brasileiro e na narrativa do jornalismo esportivo, sendo as mais concretas a assimetria dos valores distribuídos pela TV – a partir de critérios próprios e não de meritocracia esportiva, como colocações nas competições – e no número de partidas transmitidas, o que tem impacto direto, também, na captação de patrocinadores e, portanto, no nível de competitividade dos clubes na montagem de seus times e elencos.

O avanço dos valores de “mercado” nesses termos leva antigos aliados a reposicionamentos estratégicos e a filiações a novas memórias que melhor expressem os laços sociais das comunidades formadas por cada clube. Como largamente conhecido pelos estudos das ciências da comunicação, a força dos símbolos é tão comum quanto a possibilidade de reposicionamento de imagens e discursos. Quase 30 anos depois de acusar o Sport “de criar confusão”, Miranda, em entrevista ao programa “Bola da vez”, da ESPN Brasil, em 10/3/2017, afirma, em resposta a pergunta de um participante sobre quem era o vencedor de 1987: “O campeão é o Sport, reconhecido na Justiça em todas as instâncias.”

Nesse giro, vai alegar desconhecer a própria fala anterior, na qual defendia o título do rival, e questionar, 20 anos depois, a autenticidade dos áudios. E, ainda, argumentar que o Flamengo deveria ter feito o “cruzamento com o Sport”: “A prova de que deveria ter disputado é que o Sport é reconhecido como campeão e ganhou em todas as instâncias.” Como diria Max Weber, a primeira necessidade dos seres humanos não é a de dizer a verdade – muito menos a verdade sobre si mesmos – mas, sim, justificar e legitimar a vida que realmente levam. No entanto, é preciso alguma conexão entre as diferentes memórias, para dar algum ordenamento lógico a essa justificativa: “Agora, tem o campeão legal, como sempre se diz, tem a coisa legal, e o campeão legítimo. Ele perguntou para mim se é legítimo; ele pode achar que é legítimo, mas o campeão legal é o Sport”, concede Miranda, no mesmo programa.

Num tom diferente de Miranda, Aidar, ao se candidatar novamente a presidente do São Paulo, no início de 2014, mantém o reconhecimento à conquista do time carioca, mas vai modular sua posição quando confrontado pelas forças internas do seu clube, que reivindicam o troféu pelo pentacampeonato: “Reconheço o título do Flamengo, mas como presidente do São Paulo, tenho de acatar a posição do clube.” (Folha de S. Paulo, 9/4/2014).

A ambiguidade, assim, parece ser o fio condutor de ambos para conciliar a gramática do passado com a necessidade de justificar e legitimar a vida que realmente levam, ou passam a levar, a partir da reivindicação do rival por ser o novo hegemon. Ou, dito com Halbwachs, construir suas memórias individuais em relação aos grupos dos quais fazem parte – as comunidades Vasco e São Paulo – e ao meio social e a todos que os cercam – o novo contexto do futebol brasileiro. Por isso, seria um reducionismo considerar apenas como mera jocosidade constituinte da rivalidade clubística os reposicionamentos de sujeitos que antes reconheciam o título da Copa União, mas, que, principalmente a partir de 1992, passam a ressignificar aquele campeonato.

Conclusão

Embora se possa apontar um impasse entre a institucionalidade interna dos clubes, particularmente no caso do São Paulo, e a posição pessoal de seus dirigentes, o giro nas posições de ambos os dirigentes pode ser mais bem compreendido no âmbito da memória de um novo contexto do futebol, no qual os valores de “mercado” ganham crescente centralidade, com a distribuição extremamente assimétrica das cotas de TV, o número das transmissões das partidas dos clubes e, associada às duas outras, a distribuição dos recursos dos patrocinadores, consequentemente determinando a maior ou a menor competitividade dos clubes.

Para embaralhar ainda mais a disputa pelo lugar do hegemon, a CBF, mesmo antes da resolução terminal do caso na Justiça, reconheceu, em 2011, os títulos nacionais entre 1959 e 1970, da Taça Brasil e do Torneio Roberto Gomes Pedroso/Taça de Prata, como equivalentes ao Brasileiro. Com isso, houve novas – e importantes – mudanças no ranking. Santos (seis) e Palmeiras (quatro),[4] foram os que mais avançaram posições, alcançando, com os títulos obtidos nos anos seguintes ao reconhecimento, o total de oito e nove conquistas, respectivamente, até 2017. [5]

Uma historiografia sobre os campeonatos brasileiros demandaria nova comunicação. Por hora, registre-se apenas que o reconhecimento – em linha com comportamento largamente aceito em países como Espanha, Inglaterra, Alemanha, Itália, e Argentina, nos quais os campeões de competições congêneres às brasileiras dos primórdios do século XX não enfrentam questionamentos (CUNHA, 2009) – ressignifica novo recorte para a disputa pela hegemonia no futebol nacional. E insere, entre os novos quadros de memórias, a chamada “era de ouro” desse esporte no Brasil, período em que a seleção brasileira venceu três das quatro Copas do Mundo disputadas entre 1958 e 1970.

Como se buscou demonstrar, a principal causa do impasse em torno do título do Flamengo, em 1987, não se encontra naquele ano, quando, mesmo contestado institucionalmente pelo Sport na Justiça, tal movimento correspondia, essencialmente, a posição isolada do clube pernambucano. A questão ganha novos ares, a partir de 1992, quando, ao voltar a ser campeão, o Flamengo reivindica a condição de “primeiro pentacampeão brasileiro”. A entrega do troféu, que seria mero registro inerente ao alcance de uma meta, ganha, então, valor simbólico que transcende o título de 1992.

Devido, no entanto, à mudança da situação histórica do futebol brasileiro, ele passa a ser condição fundamental – embora não isolada – para o reconhecimento formal de um hegemon no futebol brasileiro. Tal condição não é inédita. Ela já fora reconhecida, conjunturalmente, em vários momentos da historiografia do futebol brasileiro, caminhando em conforme a fases mais ou menos vitoriosas de clubes, que, porém, se revezaram em tal posição, como o Santos de Pelé, nos anos 1960, no auge da era das “tradições”. No entanto, num período de avanço acelerado dos valores de “mercado”, tal condição tem implicações que podem ser lidas bem mais adiante das relações jocosas entre as torcidas.

A proclamação de um hegemon, nesse novo paradigma, não se limita aos apoiadores deste ator – condição natural pelos códigos do futebol – mas convive com a gramática de parte do jornalismo esportivo que busca cristalizar tal condição. Em abril de 2008, por exemplo, o grupo Lance! lançou um jornal destinado, exclusivamente, à torcida do Flamengo. Com circulação diária anunciada de 50 mil exemplares, o Vencer tinha entre 16 a 24 páginas e preço de capa inicial de R$ 0,50.

Tendo como diretor-presidente Walter Mattos Júnior, o jornal Lance! foi o primeiro diário nacional de esportes do país e, então, o décimo jornal brasileiro em circulação e o maior veículo do setor esportivo na América Latina. Mattos Júnior, que, em mais de uma ocasião, declarou ser “o Flamengo o clube mais importante do Brasil” (“Observatório da Imprensa”, TV Brasil, 12/3/2012), decidiu, porém, em junho de 2013, apenas cinco anos após o lançamento, fechar o veículo, que fora rebatizado de Mais.

As novas unidades de medida para definir um hegemon enfrentam forte resistência dos rivais, quando comparadas aos critérios esportivos – geralmente, os mais aceitos nas jocosidades entre as torcidas. Por esses, o rubro-negro do Rio venceu apenas dois torneios nacionais, num período de dez anos [6], segundo levantamento do próprio Lance! – o Campeonato Brasileiro de 2009 e a Copa do Brasil de 2013. No mesmo intervalo, o Internacional, que encabeça esse ranking, tem cinco títulos internacionais oficiais; o Corinthians, três conquistas nacionais e três internacionais, e o Santos, três troféus internacionais.

Por isso, o reposicionamento dos competidores pode ser lido analogamente à percepção de Halbwachs (1990) sobre a sobrevivência de grupos em sociedades submetidas a modificações profundas. Para o pensador francês, nessas situações, a memória atinge as lembranças correspondentes a esses dois períodos sucessivos, por dois caminhos diferentes, sem transitar de um para outro de modo contínuo. Existem dois tempos nos quais conserva-se igual número de quadros de pensamento. Para recuperar as lembranças de cada um, é preciso buscá-las nos seus respectivos quadros de memória.

A subsistência desses tempos são impenetráveis um pelo outro. Para tomar emprestadas as palavras de Halbwachs, “subsistem um ao lado do outro” (1990: 127). Assim, grupos de pensamentos distintos são ampliados materialmente no espaço e seus integrantes ingressam sucessivamente em vários desses tempos. Inexiste um tempo universal e único, mas uma variedade de grupos com apropriações singulares do tempo. Sociedades de naturezas distintas, como as religiosas, políticas, econômicas, imobilizam o tempo de forma singular, forjando em seus integrantes a ilusão de que, ao menos por um período determinado, algumas áreas desfrutam de uma estabilidade e um equilíbrio relativo, garantidores de uma essência capaz de estender-se por período mais ou menos longo.

Numa resposta à operação discursiva de setores do jornalismo esportivo, os rivais do Flamengo que não se sentem contemplados por essa narrativa esforçam-se por fabricar uma produção de sentidos que possa garantir uma imagem de relativa permanência e estabilidade no universo do futebol. Mesmo ressalvando-se que tal operação memorialística implica ambiguidades, e até mesmo incoerências, sua evocação permite, presentes todas as contradições, um ponto de referência de valores, em contraste com um paradigma de mudanças instantâneas como o representado pelo “mercado”.

Em tal contexto, a construção do hegemon não se pretende conjuntural, o que significaria entender-se como destinada a ser substituída, em algum momento, ainda que de periodicidade incerta, por outro clube, que, futebolisticamente, se imponha aos demais por intervalo mais ou menos longo. Tal reivindicação, posta nesses termos, é inédita do país, o que provoca forte estranhamento e resistência entre os demais atores.

Na gramática de um determinado tipo de jornalismo esportivo, o novo hegemon seria constituído por dois fatores “não técnicos”: deter a maior torcida do país e exibir o maior poderio econômico do futebol brasileiro – sendo esta condição fortemente influenciada, como visto, pela distribuição dos recursos de transmissão que guarda relação extremamente assimétrica com as diferenças de audiência. Ao aduzir-se a esses fatores “extracampo” a reivindicação de ser o primeiro pentacampeão brasileiro, estão reunidas as condições que levam a um reposicionamento de antigos aliados de 1987.

Como em toda hegemonia, essa traz em seu interior novas contradições com as quais precisa lidar. Como lembra Harvey (2005: 37 e 38), todo hegemon, para manter tal condição, precisa empreender um processo permanente de busca para expandir e amplificar seu poder. No entanto, também adverte que a extensão e a abrangência excessivas de poder têm se mostrado, de forma recorrente, “o calcanhar-de-aquiles dos Estados e impérios hegemônicos”. A busca pela expansão permanente de poder, para assegurar a continuidade e o desenvolvimento de um hegemon e dos valores a ele relacionados, não se restringe a uma abordagem que trate apenas da trajetória dos impérios. Também comparece, e poderosamente, na ordem do simbólico, na qual, no entanto, assume formas próprias e, por vezes, mais embaçadas do que daquelas ao alcance de análises que levem em conta apenas a infraestrutura social.

Outra analogia possível é que, embora esse processo sustente-se, em grande medida, no poder de coerção do hegemon, essa é “apenas uma base parcial e, algumas vezes contraproducente” da garantia dessa condição: “O consentimento e a cooperação têm a mesma importância” aduz Harvey (2004: 41). Para manter o poder, o império necessita mobilizar aliados e exercer uma liderança passível de gerar benefícios para determinados setores. Carece ainda que a alegação de que age em favor do interesse geral soe plausível, “mesmo quando, como muitas pessoas suspeitam, sua ação é motivada pelo estreito interesse próprio. Essa é a essência do exercício da liderança por meio do consentimento” (Id., ibid.).

Como procurou-se demonstrar, o reposicionamento de outros atores, incluindo antigos aliados de 1987, não mira, principalmente este título nem se socorre, centralmente, da decisão do Judiciário. Esta apenas fornece uma defesa da face que permita conciliar a ambiguidade em relação a 1987 com a contestação da condição de hegemon em 1992. Esta questão, embora, inaugurada naquele ano, vai intensificar-se com o avanço dos valores de “mercado”, tal qual são traduzidos pelas memórias individuais dos “contestadores” em linha com os grupos dos quais fazem parte e em relação ao meio social e a todos que os cercam – o novo contexto do futebol brasileiro.


Notas

[1] Para uma análise entre “tradição” e “mercado” em torno da identidade da seleção brasileira na Copa de 2002, veja SOUTO, 2009.

[2] Em depoimento ao AUTOR, em 19/1/2010.

[3] O termo é uma referência ao modelo espanhol de futebol, no qual Barcelona e Real Madri concentram cerca de 40% de toda a arredação com TV no país. Com tal assimetria econômica, os dois times respondem por 16 dos 20 títulos do campeonato local, entre 1999 e 2018.

[4] Botafogo, Fluminense, Bahia e Cruzeiro, todos com um título cada, também avançaram posições no ranking de clubes campeões brasileiros.

[5] O ranking não considera campeonatos a partir de 2018, para manter a mesma base de levantamento, do jornal Lance!, citado mais abaixo, cujo intervalo encerra-se em 2017.

[6] O ranking do Lance! refere-se ao período entre 2009 e 2017. A inclusão de títulos a partir de 2018 nos obrigaria a refazer o levantamento feito pelo jornal, sem que isso alterasse substancialmente a análise apresentada.


Referências

CUNHA ,Odir. Dossiê Unificação dos títulos brasileiros a partir de 1959. São Paulo, 2009.

DURKHEIM, E. Sociologia e Filosofia. São Paulo: Forense, 1970.

HALBWACHS, Maurice. A memória social. São Paulo: Vértice, 1990.

HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005

HELAL, Ronaldo; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves; LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.

HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. Paz e Terra. São Paulo, 1997.

SOUTO, Sérgio Montero. Imprensa e memória da copa de 50: a glória e a tragédia de Barbosa. Niterói: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 2002.

____. Mercado e tradição: os colunistas esportivos e a construção da identidade da seleção brasileira de futebol na copa de 2002. Niterói: Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2009.

Internet:

Conjur

ESPN Brasil

Jornal da Record

Notícias ao Minuto

Observatório da Imprensa

Quem é o campeão de 87? Flamengo ou Sport? – polêmicas vazias #81 – Copa União 1987 – YouTube

Site da CBF

Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Sérgio Montero Souto

Mestre e Doutor em Comunicação pela UFF; professor da Faculdade de Comunicação da Uerj; autor de Os três tempos do jogo - Anonimato, fama e ostracismo no futebol brasileiro (Graphia)

Como citar

SOUTO, Sérgio Montero. E 1987 não acabou – penta ou hexa: diferentes memórias sobre a hegemonia no futebol brasileiro quando o ‘mercado’ entra em campo. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 41, 2020.
Leia também:
  • 173.16

    Como o Jornal dos Sports cobriu o primeiro título de um sul-americano na Copa Intercontinental?

    Sérgio Montero Souto
  • 142.12

    O jogo paralelo ao Mundial de Clubes – Quando as redes sociais usaram o jornalismo contra jornalistas

    Sérgio Montero Souto