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E o futebol, resistirá?

Roberto Andrés 16 de novembro de 2009
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Campo de várzea no bairro Concórdia em Belo Horizonte. Foto: Roberto Andrés.

No Brasil, antes da Copa de 2010 chega a de 2014. Especialmente nas doze cidades selecionadas para sediar os jogos, que, depois de um longo processo de competição onde confluíram fatores técnicos e políticos, receberão uma onda de transformações estruturais. Atendendo a exigências da Fifa, serão realizadas reformas viárias, de implementação de serviços e de adaptação dos estádios. Tal assunto deveria ser pauta de debate sério e amplo, pois é de interesse central da sociedade: grande aporte de dinheiro público alterando radicalmente as cidades onde vivemos e os estádios onde assistimos futebol.

Mas a discussão não existe, anda apagada pelo oba-oba da Copa: a euforia e a fantasia perniciosa que confundem sonho e concretização, desejo e vitória, permeando o futebol e a sociedade brasileira1. Se a Copa trará naturalmente progresso, finanças e afirmação da nossa supremacia futebolística e festiva, pra quê discutir? A pergunta equivale a: pra quê treinar, se somos os melhores? (Esta postura resultou, no futebol, em derrotas oba-obais traumáticas como as de 1950 e 2006, onde o clima de já-ganhou induziu e deu potência à derrota. Na sociedade, aparece todos os dias nas obras desnecessárias, inacabadas, super-faturadas, no desperdício de recursos e de energia, no país que tropeça na falta de seriedade da qual paradoxalmente extrai sua potência – que Wisnik esmiuçou na idéia do Veneno-Remédio).

Única possibilidade de esboço do antídoto a tal veneno, o debate deve ser iniciado. Uma levantada de bola: como ficarão estas cidades? Haverá investimento efetivo em transporte público? As obras beneficiam que grupos sociais? Qual a sustentabilidade econômica dos novos estádios? Que preço se paga por ela? Ingressos caríssimos que excluem boa parte do público? Qual o custo energético das obras? Quais os impactos culturais da transformação dos estádios em Shopping Centers? Os projetos potencializam e exploram a cultura espacial riquíssima gerada no futebol brasileiro, presente nos diversos estádios e campos de várzea espalhados pelo país? Quais os impactos que a transformação espacial, econômica e cultural geram no próprio futebol – que, afinal, deveria ser a menina dos olhos de todo este processo?

O caso de Belo Horizonte acentua estas questões e ilustra a relação promessa/realização que perspassa a escolha das cidades. Embora a construção do metrô fosse uma obra importante no projeto de candidatura, foi anunciado recentemente que ela não será levada adiante. Não parece ser por acaso que este anúncio aparece depois da seleção feita, evidenciando mais uma vez, na linguagem da bola, a malandragem dos políticos que prometem, não cumprem e fica por isto mesmo. Do projeto proposto para Belo Horizonte sai a obra estrutural que mais beneficiaria à cidade e fica a que parece ser mais danosa: a reforma do Mineirão.

Cabe dar uma passada pelo projeto, deixando à parte a polêmica autoral entre os escritórios de arquitetura que trabalharam no projeto. Trata-se de um ‘lajão’ que cobre uma área urbana considerável, do Mineirão até o Mineirinho e o Centro Esportivo Universitário da UFMG, separando o público pagante do fluxo operacional e de serviços2. Sobre a laje, uma ‘esplanada pública’ para acesso ao estádio. Embaixo, tudo o que se encontra em um shopping center: estacionamento, academia, hotel, restaurante, bares, clube.

É curioso que, inserido em tendências contemporâneas e obediente à normatização da FIFA, o projeto se paute em pressupostos modernistas, seja na setorização abrupta (o público pagante não gostaria de estar em contato com restaurantes, bares e lojas, ligados ao espaço exterior?); na inserção de uma estrutura pré-concebida que aniquila as especificidades do sítio (o que Aarão Reis fez no plano de Belo Horizonte e Carlos Teixeira, curiosamente um dos arquitetos envolvidos, abordou em uma crítica perspicaz)3 ou na criação de uma esplanada árida que submeterá o público, sem trégua, ao sol tropical. Cem anos depois de Belo Horizonte e cinquenta depois de Brasília o projeto reproduz os mesmos modelos positivistas de produção do espaço – sem evitar seus equívocos mais primários, já tão debatidos quanto superados.

Questiona-se ainda a sustentabilidade financeira do novo estádio, o risco iminente de se transformar o Mineirão em um ‘elefante branco de concreto’ – imaginando-se também o dispêndio de energia em iluminação e condicionamento artificial deste enorme espaço subterrâneo. Após a Copa, quem usaria este ‘legado’, tão caro ao bolso e ao meio ambiente, em sua construção e em sua manutenção?

A solução para o desequilíbrio financeiro frente aos custos dos novos estádios é dada por Álvaro Cotta, palestrante no II Fórum de Arquitetos da Copa, realizado em setembro deste ano em Salvador: basta aumentar os preços dos ingressos. “Se na Inglaterra o torcedor consome 51€, o brasileiro está no patamar de R$12”, contabiliza. Mas a elitização dos estádios, embora ‘necessária’, não será total: “Será necessário reservar um espaço, com menos visibilidade e preços menores”4.  Faltou o consultor concluir: afinal, os pobres já não estão acostumados a terem seus bens culturais tomados pelo processo natural do capitalismo? Qual o problema de passarem a assistir aos jogos em setores reservados ‘com menos visibilidade’?

Não é por acaso que Álvaro Cotta cita a Inglaterra, lugar onde o futebol da primeira divisão (Barclays Premier League) e também o da segunda (Coca-Cola Championship) se tornaram negócios de cifras bilionárias. Em um artigo esclarecedor entitulado O esporte que vendeu sua alma, Marcos Alvito aponta a nova cara deste futebol que nasceu popular e esteve sempre ligado “à construção de identidades locais”5 seus estádios carregam os nomes dos patrocinadores (Reebok Stadium, Kingston Communication Stadium, etc.); os maiores clubes são propriedades de bilionários estrangeiros ligados ao petróleo, aos cassinos, ao mercado financeiro; os ingressos têm preços proibitivos, afastando os torcedores jovens e os que possuíam relações afetivas com o clube.

O resultado, já praxe de quando o mercado reina livremente, é a falência interna do sistema. Campeonatos pouco competitivos, onde a maior parte dos clubes participa sem chances de ganhar. Clubes tradicionais endividados, sem conseguirem “competir com as equipes turbinadas pelo farto (embora de origem duvidosa) dinheiro de generosos oligarcas”6.  E, pasmem, mesmo as grandes equipes sustentam prejuízos anuais milionários, que vão sendo debitados das fortunas aparentemente inesgotáveis de seus donos. Pior que vender a alma é não conseguir pagar pela falta dela.

Este processo, na Inglaterra e em muitos países europeus, afastou os torcedores engajados e criou um novo perfil de freqüentadores dos estádios, que parecem ir a um espetáculo da Broadway: assistem aos jogos sentados, vigiados pelas câmeras, frente a locutores que buscam “orquestrar e controlar suas emoções”7. A reforma dos estádios está ligada a esta tendência de substituição dos torcedores e de construção, à revelia do legado cultural riquíssimo do futebol, de um novo modo de assisti-lo. Impõe-se o modelo cultural advindo dos Estados Unidos, presente no futebol americano, no tênis e na NBA, para o torcedor de futebol.

Em seu já citado Veneno Remédio (que pelo amplo alcance e qualidade deveria pautar os tais Fóruns de Arquitetos para a Copa), Wisnik aponta as diferenças entre o futebol e os demais esportes modernos no que tange à relação do jogo com o tempo. Enquanto o primeiro sobrepõe lógicas múltiplas, abre-se para a poesia do drible e a prosa do passe, os últimos operam na produtivização constante, convertendo cada ato em um ponto positivo ou negativo que de maneira encadeada e somatória constrói o placar. “No futebol, ao contrário, as sobras, a valorização da posse de bola, o tempo produtivo e o tempo improdutivo, a catimba, o desperdício e a poupança, os ‘olés’, a impossibilidade de contabilização numérica gradual ou exaustiva, tudo faz parte do jogo”8. Não é curioso, pergunta Wisnik, que os Estados Unidos sejam o único grande país do mundo onde o futebol não pegou? Mais curioso ainda é que, a despeito disto, tomemos o sistema americano como modelo para os nossos novos estádios.

Porque expandindo o argumento de Wisnik para além das quatro linhas chegaremos ao torcedor. Assiste-se futebol com doses de abertura e indeterminação bastante diferentes do comportamento previsível dos torcedores de tênis. Se, como vimos, no futebol o jogo se aproxima do ritmo não quantificável da vida (o placar não traduz a partida, cada ato não é revertido em ponto) isto constitui um modo de assistir também muito mais aberto, plural e menos concentrado – não sendo necessária a atenção focada em cada instante. “O jogo, um pouco como o mar, está rugindo à nossa frente” e não nos protegemos dele “pela presença reiterada de suas regras”, coloca Nuno Ramos ao abordar o aspecto erótico do futebol9. Esta continuidade do jogo se expande para a arquibancada, onde os torcedores se portam de maneiras muito variadas: assistem sentados ou em pé, concentrados ou dispersos, conversam, tomam sol, observam detalhadamente e em seguida se distraem, vibram, pulam festivamente, dançam, cantam.

Esta abertura gerou, enfaticamente no Brasil, um legado (este sim) riquíssimo de espacialidades do futebol. Que aparece ao se olhar para um Mineirão que bailava na ola da torcida, para um Independência onde deita-se em um talude gramado acima da arquibancada, para os diversos campos de várzea urbanos ou rurais – onde os espaços dos jogadores e dos torcedores se fundem e se confundem com ruas, bares, casas, igrejas, rios e jardins.

O espaço aberto do torcedor liga-se dialeticamente ao do jogo, sendo ao mesmo tempo conseqüência dele e fator indutor de sua existência. Neste sentido, domesticar o (espaço do) torcedor é mais um passo para a domesticação do próprio futebol, sua submissão completa ao que Wisnik chamou o princípio da “otimização do rendimento”. Ter torcedores comportados, elitizados, sentados em cadeiras confortáveis e aplaudindo com elegância nos momentos de gol colabora para a tendência deflagrada por Nuno Ramos de que os jogos sejam “cada vez mais monótonos, estáveis e, no limite, justos”10. O futebol como foco de resistência criativa ao produtivismo sem trégua e à ‘ordem e progresso’ vai sendo encurralado também pelas arquibancadas. A Copa de 2014, conjugando a normatização da Fifa, os políticos oportunistas e os arquitetos condescendentes cataliza e acelera este processo.

Um órgão de patrimônio perspicaz detectaria aí crime de lesa pátria – descaracterização de ‘patrimônio imaterial’ central da cultura brasileira, o futebol, e de ‘patrimônio material’ rico e diverso, os diversos campos pelo país. Vai-se eliminando a riqueza espacial e a especificidade cultural pela aplicação irrefletida de um modelo engessado e normatizador. Faz-se dos estádios lugares genéricos, onde, como em aeroportos, o específico só aparece estereotipado nas lojas de souvenires. Tal kitschização do específico é perda de cultura: achatamento de riqueza plural em massa uniforme com pitadas pasteurizadas de individualidades. O que acontece em cadeia: pequenos estádios e campos de várzea acabam por sucumbir ao modelo hegemônico do Mineirão, do Morumbi, do Maracanã.

Da parte dos arquitetos, a condescendência é acompanhada de um espírito ‘progressista’ e globalizante cego para a história e a cultura do país. Não é preciso sair do campo da arquitetura para ver que o Brasil só cumpriu sua promessa de potência criativa, colaborando internacionalmente de maneira significativa, quando explorou seus elementos mais singulares: na reinvenção do barroco à mineira, na reinvenção do modernismo pelo primeiro Niemeyer, na reinvenção do brutalismo por uma Lina Bo Bardi que soube olhar para o Brasil. Também na arquitetura, nossa antropofagia só se fez relevante quando processou os elementos externos na salada rica da cultura local. (Ao contrário da tendência internacionalizante, presente nos projetos dos estádios, que parece dissolver nossa singularidade mais potente no caldo ralo de uma cultura global com pouco sabor).

A questão é ainda mais clara no futebol. O Brasil só obteve momentos de êxito quando voltou-se e deu potência à sua riqueza singular: nos dribles intermináveis de Garrincha, no futebol mágico da seleção de 70, na figura controvertida de um Romário que não gostava de treinar. Não foi Cláudio Coutinho, aquele que quis submeter o futebol brasileiro a um cientificismo internacional, otimizando o rendimento pelo foco no esquema tático11 quem difundiu o país como potência criativa e vitoriosa. Os arquitetos que projetam os estádios deveriam começar a olhar para os campos de várzea.


1 Argumento desenvolvido e explorado ao limite por José Miguel Wisnik em Veneno Remédio: o futebol e o brasil. Companhia das Letras, 2008.

 

2 O projeto de reforma do Mineirão está publicado nos seguintes sites:

 
3 Carlos Teixeira. Em obras: a história do vazio em Belo Horizonte. Cosac & Naify, 1999.
4 Ver reportagem em:
 
 
5, 6,7 Marcos Alvito. O esporte que vendeu sua alma. Em: Revista Piauí. Dezembro 2007
 
8 Wisnik. Op. cit., p. 111.
9,10 Nuno Ramos. Ensaio Geral. São Paulo: Globo, 2007.
11 Wisnik. Op. cit., p. 125-128.
 
 

Esse texto foi originalmente publicado no site Vitruvius e cedido pelo autor para publicação nesse espaço.

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Como citar

ANDRéS, Roberto. E o futebol, resistirá?. Ludopédio, São Paulo, v. 05, n. 3, 2009.
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