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E os que foram vistos dançando foram afastados por aqueles que talvez “não podiam” dançar

Fidel Machado 22 de abril de 2020

Na primeira quinzena do mês de março, ocorreu um episódio no interior das dependências do Fortaleza Esporte Clube, um dos maiores clubes do estado do Ceará, que me inquietou bastante. Quatro atletas das categorias de base foram punidos. Um deles foi desligado por filmar outros três colegas que dançavam nas instalações do clube a música Bota bota, da dupla pernambucana Shevchenko e Elloco com Mc Losk, 10G e Morena e, por esse motivo, foram suspensos por tempo indeterminado. É importante frisar que o caso ocorreu em um momento, futebolisticamente, nomeado de resenha. Ou seja, não foi durante uma partida oficial.

O clube lançou uma nota oficial para justificar as devidas penalidades. Segue:

O Fortaleza Esporte Clube informa que, nesta semana, após divulgação de vídeos nas redes sociais pessoais de atletas, que envolvem jogadores da base do clube, a situação foi analisada pelos profissionais que os acompanham e orientam no dia a dia.

Foi definido o desligamento de um dos jovens, por já ser reincidente em conduta de mau comportamento, e a suspensão de outros três, que estão treinando separadamente na academia.

As decisões foram tomadas visando a segurança dos jogadores diante da repercussão do vídeo, além disso, o clube reforçou para os atletas a importância de se ter o cuidado e respeito à conduta da rotina diária de treinos e jogos.

O objetivo desse texto não é polemizar a decisão tomada, haja vista que tal atitude está respaldada no estatuto oficial e, consequentemente, no código de ética do clube. Ambos os documentos estão disponíveis no site e o link segue no final desse ensaio. Todavia, os comentários provenientes desse caso são muito simbólicos. Muitos questionam a decisão rigorosa e alegam que os atletas estavam apenas se divertindo e brincando. Outros acham um absurdo aquele comportamento e afirmam, categoricamente, que aquilo não é postura condizente além de enfatizar que a função do clube não é formar apenas atletas, mas homens.

Tenho pensado bastante sobre masculinidades e sobre esse contrato social tácito que delibera as ações e atitudes específicas do homem, da mulher, da criança, do idoso e afins. Tenho ficado inquieto com esse dever-ser e, para ser mais específico, com esse tipo de Homem ideal que é almejado por uma parcela significativa da sociedade. Tenho pensado no sacrifício de performatizar esse homem e sobre os efeitos que tentar sê-lo pode causar. Ademais, se prosseguirmos na linha argumentativa, a adequação aos quesitos e critérios é fatalmente passível de falhas, de fracassos de impotência e incapacidade.

Kaio Jorge
CBF também proibirá? Com a camisa da seleção brasileira, Kaio Jorge comemorou gol dançando funk brega. Foto: Alexandre Loureiro/CBF.

Não objetivo com a escrita destas linhas inverter o polo e impor que para ser homem agora é obrigatório dançar, chorar e ser sensível. Isso seria mais uma roupagem de uma outra moral que, como princípio, seria idêntica ao modo vigente. Penso ser mais produtivo, como já escrevi em outros textos, suspeitar e questionar a estrutura. Compreender as engrenagens que mantém por tanto tempo e de forma tão forte esses papéis de gênero e, sobretudo, problematizar o campo esportivo. Isso dito e a partir da temática anunciada, indago: o problema é a música? O problema é a dança? O problema é dançar essa música nas instalações do clube? O problema são meninos dançarem? Há problema? O problema são meninos dançarem funk? E as comemorações de gols com dancinhas serão também passíveis de punições? O problema é o código de conduta? Sobre qual critério está assentada a régua que julga e encaixota as ações humanas? Quem delibera? Quem consegue cumprir? Quem se beneficia? Tenho zero interesse de impor uma única resposta para todas essas perguntas, contudo, reitero que a discussão aqui aventada não visa polemizar, mas problematizar o alicerce estruturante e estrutural. Pensemos sobre os efeitos que se desdobram da decisão e não restritamente nela.

Homens, se assim desejarem, podem dançar. Penso ser inconveniente e incoerente querer, mas se boicotar por medo de desconfianças sobre a orientação sexual. Essa paranoia pesa e impede a leveza da dança. Inviabiliza outros seres de viverem de outros modos. Como diria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, não julguemos de loucos aqueles que dançam pela nossa incapacidade de ouvir a música.

Conversas com:

Fortaleza desliga atleta da base após vazar vídeo de dança de colegas e alega código de conduta. Globoesporte.com, Fortaleza, 12 mar. 2020.

Fortaleza desliga atleta da base após vazar vídeo de dança de colegas e suspende dois. Diário do Nordeste, Fortaleza, 12 mar. 2020.

Site oficial do Fortaleza Esporte Clube.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. E os que foram vistos dançando foram afastados por aqueles que talvez “não podiam” dançar. Ludopédio, São Paulo, v. 130, n. 31, 2020.
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