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“É para jogar bola. Se vai errar, foda-se”

Gabriel Said 9 de junho de 2021
Fernando Diniz
Diniz concede entrevista coletiva como novo técnico do Santos Futebol Clube (Foto: Reprodução/ Instagram oficial do Santos F.C)

O título é algo que Fernando Diniz gritou em um jogo quando treinava a equipe do São Paulo no final de 2020. A frase sintetiza perfeitamente sua maneira de pensar, que ele costuma resumir em uma palavra: coragem.

Buscando a melhor maneira de pensar o treinador, foi assistindo a vitória do Santos no dia cinco de junho de 2021 que percebi que a melhor seria, óbvio, pelo jogo. E esse jogo acabou sendo um ótimo exemplo. Os três gols santistas servirão como base aqui, mas vou na ordem invertida na qual foram marcados.

Iniciando pelo gol de Kaio Jorge no escanteio, o terceiro gol. É uma característica de algum tempo das equipes do Diniz a bola parada bem ensaiada. O São Paulo no Brasileirão de 2020 teve cerca de um terço de seus gols marcados a partir da bola parada, de acordo com dados do Whoscored e Sofascore. No primeiro momento parece estranho pensar um time que joga um “jogo de posse” ser um dos times que proporcionalmente mais marca gols de bola parada. E o detalhe curioso no gol do Santos é que, como Téo Benjamin destacou aqui em dezembro de 2020, o São Paulo marcou um gol bem parecido contra o Sport.

O segundo gol, este marcado por Marinho, surge com a pressão de Pará e Jean Mota ao jogador adversário. Jean consegue o bote e a bola sobra para Pará que cruza e, contando com a sorte da falha do zagueiro, a bola sobrou para Marinho – que inverteu de lado no segundo tempo para a esquerda – marcar. Essa pressão, que não é daquelas super intensas porque normalmente acontece mais perto do meio de campo do que do gol adversário, é outra característica importante dos times de Diniz. Com os jogadores da defesa não subindo com o restante da equipe para pressionar, preferindo manter a posição.

Finalmente, o primeiro gol, em chutaço de Jean Mota. É um tipo de jogada muito buscada pelas equipes do Diniz. A bola está no campo de defesa do Santos, pelo lado direito. O time do Ceará avança para pressionar e encurralar o Santos, mas a defesa consegue com muita velocidade quebrar as marcações do Ceará com passes médios e para frente, chegando em poucos segundos no campo de ataque com Kaio Jorge levando a bola do centro para a esquerda, deixa-a com Marcos Guilherme, e logo passa para Jean Mota que chegava ali perto e faz o gol. Além da finalização, para se ter ideia, a jogada ainda poderia seguir pela esquerda com Kaio Jorge na ponta ou Marcos Guilherme entrando na área e ainda tinha as chegadas de Pirani e Marinho do outro. Eram 5 do Santos contra 6 do Ceará, mas Pirani e Marinho só tinham a marcação de 2 do Ceará. Esse gol do Santos foi um gol de contra-ataque.

Fernando Diniz

O “é para jogar bola, se vai errar, foda-se” é a coragem de fazer as jogadas que parecem um risco desnecessário e que às vezes são mesmo, mas o pleno desenvolvimento do jogador como futebolista se dá pela sua capacidade de entender o jogo. É de certa forma uma educação construtivista do jogador, que ganha mais agência de como se comportar no jogo e quais decisões tomar, ao invés de ser um mero receptáculo de jogadas ensaiadas (e que se vire com qualquer coisa que não for ensaiada). O mais importante é a coragem para tentar as jogadas. Assim Diniz pensa o futebol, assim conseguiu ajudar vários jogadores a terem grande desenvolvimento (Brener, Luciano, Tchê-Tchê, Sara, Caio Henrique, Danielzinho, Allan, etc) e consegue desenvolver também a pessoa por trás do futebolista, pela confiança e coragem. Jogador, time, jogo e vida estão conectados na forma como Diniz pensa futebol. Falar de Diniz requer, portanto, uma abordagem holística.

Nas infinitas discussões táticas, a simplificação de conceitos se por um lado ajuda a compreende-los melhor, por outro podem também dificultar. A noção de algumas ideias serem necessariamente opostas atrapalha aqui, assim como a defesa por um uso “puro” de uma ideia, e que se algo não acontece desse jeito idealizado, não está bom, ou há “pobreza” de ideia. Fluminense e São Paulo de Diniz eram times de posse, bola parada e contra-ataque. Em um ambiente acostumado a pensar por dualismos como jogo de posse de um lado, contra-ataque do outro; jogo propositivo e reativo; ofensivo e retranqueiro, etc. Que faz também pensar que se um time gosta de ter a posse ele deva ser comparado com os times de Guardiola, qualquer desvio a esse caminho tenderá a ser entendido como falha. (Apesar de não gostar das comparações, se tivesse que fazer uma do Diniz seria com o Sassuolo de Roberto De Zerbi. Com todos os limites de uma comparação dessas). O texto ‘O quê queremos do treinador Fernando Diniz‘, de Rafael Castellani e João Batista Freire é um ótimo complemento aqui.

O encontro das ideias, a princípio contraditórias nos times de Fernando Diniz, me cai como uma boa metáfora de um futebol humanizado que ele defende. O time do Santos deve fazer muita coisa “fora dos manuais”, por isso provavelmente o melhor arcabouço teórico pra qualquer um entender é o futebol de rua, acessível a todos. Quem se prender muito ao manual ficará como um pedaço de pau, que por não entortar, quebra. Seres humanos são seres complexos, paradoxais e contraditórios e melhor maneira de entender a humanidade, assim como o futebol, passa por essa encruzilhada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. “É para jogar bola. Se vai errar, foda-se”. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 17, 2021.
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