“Este grupo terá um futuro glorioso.” Assim o treinador Abel Braga se despediu do Flamengo. Em seu pedido de demissão alegava uma traição da diretoria do clube. Deixava o Flamengo após conquistar o primeiro lugar do Grupo D na Copa Libertadores da América com 10 pontos. Foram 3 vitórias, 1 empate e 2 derrotas tendo feito 11 gols e sofrido 5. No entanto, apesar do primeiro lugar, o Flamengo chegou à última rodada tendo chances de ficar de fora das fases finais. A vitória da LDU por 4 a 0 sobre o San José levava o clube equatoriano para os mesmo 10 pontos, mas por conta do saldo de gols menor ficava em segundo lugar. O primeiro lugar do Flamengo foi garantido com um empate, sem gols, no Uruguai com o Peñarol. Se tivesse sofrido um gol, teria sido eliminado.

Vale lembrar que o empate com o Peñarol fora dramático graças à expulsão do jogador Pará aos 18 minutos do segundo tempo. Com a classificação, a parada para a Copa América poderia fornecer o tempo necessário para o Flamengo acertar a sua forma de jogar. Mas isto seria sem o treinador Abel Braga. Em sua nota oficial, Abel se colocava publicamente sobre o seu pedido de demissão:

Jamais vou esquecer esse grupo, competitivo e dedicado ao extremo. São homens de caráter, prontos para conquistar grandes títulos esse ano. Sempre soube que eles dariam a resposta em campo. Foi uma despedida emocionante. Quero aproveitar para agradecer em público a cada um deles, além de cada integrante da comissão técnica e funcionários. E também a grande Nação de torcedores. Na vida, seja na minha carreira de jogador ou de treinador, sempre estive preparado para as grandes pressões e os grandes momentos. Sempre me dei bem com isso. E me habituei a encarar esses desafios de cabeça erguida. Mas jamais estive preparado para covardias e articulações. O que não suporto é traição. Eu me senti sem respaldo, isolado em certo momento. O que posso afirmar é que o Flamengo é muito maior do que tudo isso. O clube vai brilhar por tudo que plantou nesses últimos anos, por esse terreno fértil, por sua grandeza.[1]

No Campeonato Brasileiro, o Flamengo ocupava apenas o sexto lugar com 10 pontos ganhos (3 vitórias, 1 empate e 2 derrotas) estando atrás de Palmeiras (16), Atlético-MG (12), Corinthians (11), São Paulo (11) e Santos (11).

Jesus observa atentamente o desempenho do Flamengo durante as partidas. Foto: Andre Borges/ALLSPORTS.

Logo que a diretoria recebeu a demissão de Abel Braga entrou no radar do Flamengo o treinador português Jorge Jesus. Jesus, ou Mister, como gosta de ser chamado havia ficado um ano no Al Hilal tendo sido treinador, com grande sucesso, no Benfica e no Sporting. Antes de ser contratado pelo clube carioca, Jorge Jesus queria retornar para a Europa, mas não gostou de nenhum projeto e seus problemas com o fisco português dificultariam o seu retorno para Portugal[2]. Em busca de um projeto vencedor, Jesus aceitou a proposta do Flamengo. Assim se pronunciou como mais novo treinador rubro-negro:

O que me convenceu principalmente foi a grandeza do Flamengo. São quatro os clubes mais famosos do mundo: Flamengo, Boca Juniors, Barcelona e Real Madrid. Portanto foi um dos motivos para eu aceitar, além de ganhar títulos. O Flamengo me dará uma possibilidade de ganhar a Libertadores, de ganhar o Mundial. Fiquei muitos anos no Benfica e ganhei tudo. E esse é o objetivo maior que fez com que eu aceitasse o desafio do Flamengo.[3]

Mas a estreia de Jesus na Libertadores foi amarga. Uma derrota por 2 a 0 para o Emelec já colocava em xeque a escolha feita pelo Flamengo. A vitória por 2 a 0 no jogo de volta fornecia uma sobrevida ao português e, enquanto sofria em algumas partidas para encontrar a melhor formação para a sua equipe, aos poucos ganhava o grupo do time carioca.

Em poucos meses de trabalho no futebol brasileiro, já fazia uma análise da repercussão do seu trabalho. Mas isto o fazia em comparação com o que via no futebol brasileiro. Em setembro deste ano, em uma entrevista para a revista francesa So Foot, declarou:

“O treinador brasileiro está ultrapassado taticamente. Sabe por quê? Porque sempre tiveram grandes jogadores e esses resolviam os problemas táticos sozinhos. Os treinadores brasileiros tinham menos necessidade de criar ideias coletivas, por causo disso estão ultrapassados”.[4]

Interessante pensar que a forma de jogar do Flamengo tem contrastado com a forma que os treinadores brasileiros montam seus times. É muito comum, entre os treinadores brasileiros, ter como proposta de jogo fazer a manutenção da vitória sem ter a busca contínua pelo gol. Quando os times treinados por brasileiros estão à frente no placar, geralmente, buscam muito mais a manutenção do resultado do que a sua ampliação.

A minha memória pode me trair, mas desde o Palmeiras de 1996 não me recordo de equipes brasileiras que jogavam com tanta intensidade e que queriam fazer o maior número de gols possíveis dentro de uma partida. O Palmeiras de 1996, para além dos talentos individuais que possuía, havia a dimensão coletiva muito bem estruturada naquele time.

É a esta dimensão coletiva que Jesus está muito atento e direciona o seu trabalho. Seu pensamento coletivo faz com que todos os jogadores tenham que estar concentrados durante toda a partida. Em uma de suas famosas frases, ele é enfático e resume o seu pensamento: “Nenhum jogador comigo vai ser, ou pode pensar que é, mais importante do que a equipe”.

Jesus fica ao lado do campo acompanhando de perto do desempenho do seu time. Foto: Alexandre Vidal/Flamengo.

Claro que existem goleadas, mas de algum modo penso que os treinadores brasileiros criaram um respeito mútuo em que um placar elástico pode gerar a perda de emprego do outro treinador. Arrisco a dizer que a falta de goleadas em clássicos produziu uma ação corporativista entre os treinadores. É claro que muitos se lembrarão de goleadas de seus clubes sobre os rivais, mas ao mesmo tempo tentem se lembrar de quantos resultados poderiam ter acabado com uma vitória considerável e não acabou.

Jesus, pelo o que tenho visto, não se importa com esta ação corporativista dos treinadores brasileiros. Coloca o seu time para jogar com intensidade e buscar constantemente o gol adversário. Se perde a bola, logo tenta recuperá-la. Afinal, se estiver com a bola não será atacado.

No jogo de domingo (03/11/2019), na vitória por 4 a 1 sobre o Corinthians, Jesus manteve esta forma de jogar e seu time parece ter entendido de modo claro como deve pensar o jogo. Durante toda a partida, o jogador do Flamengo que está com a bola tem ao menos duas opções para progredir com a bola e, em boa parte do tempo, tem mais do que duas opções para dar continuidade. Ao mesmo tempo em que busca recuperar rapidamente a posse da bola, encontra os espaços vazios deixados pelo adversário, e isto produz um jogo ainda mais ofensivo do Flamengo.

Esta forma de jogar do Flamengo causou ao menos duas demissões: Felipão, após o Palmeiras perder por 3 a 0, e Fábio Carille, após a goleada sofrida pelo Corinthians.

Com a vitória, o Flamengo possui a melhor campanha do Campeonato Brasileiro. Está a 8 pontos de vantagem sobre o Palmeiras e nada parece tirar o título do Flamengo neste ano. No segundo turno, o Flamengo soma 29 pontos – 9 vitórias e 2 empates. Fez 22 gols e sofreu apenas 7 em 11 partidas. O time tem a melhor campanha com 43 pontos ganhos – 14 vitórias e 1 empate; e também a melhor campanha fora de casa com 28 pontos ganhos – 8 vitórias, 4 empates e 3 derrotas. Estes dados podem ser consultados na tabela do Campeonato Brasileiro feita pelo Ludopédio.

A torcida do Flamengo e seus sósias: “Hoje tem Jesus no controle”. Foto: Marcos de Paula/ALLSPORTS.

De goleada, o Flamengo chegou à final da Libertadores. Após empatar em 1 a 1 no Sul com o Grêmio, o Flamengo aplicou um 5 a 0 nos gremistas em plena semifinal da Libertadores.

Embora a derrota não tenha causado a demissão do treinador Renato Gaúcho, ela produziu algumas tensões. O treinador do Grêmio disse que “Se você for ver, tomamos cinco gols em falhas nossas. Hoje jogamos muito abaixo do que podemos. Com jogadores como os do Flamengo, não dá para cometer esses erros. Se bobear, até uma mulher grávida faria gol no Grêmio hoje.”[5]

A frase machista e infeliz de Renato Gaúcho anulava qualquer possibilidade de reconhecimento da superioridade do modo de jogar do Flamengo. As falhas não acontecem sozinhas, são produto de uma interação da dinâmica da partida. Certamente, se o Flamengo não tivesse produzido as ações que geraram os erros, nada teria acontecido.

Em 2016, Renato Gaúcho, após conquistar a Copa do Brasil, disse que os “treinadores brasileiros que precisam estudar vão para a Europa, quem não precisa vai para a praia.”[6] Nada mais irônico de que, mesmo sem gostar de estudar, conforme afirmou Renato Gaúcho, ele foi obrigado a ver uma aula de futebol.

Na final da Libertadores, em partida única, tudo pode acontecer. Mas pelo o que vem mostrando o Flamengo de Jesus está jogando um futebol muito acima que muitos clubes do Brasil. Resta saber como o Flamengo se comportará diante de uma derrota que parece ter sumido do vocabulário rubro-negro. Enquanto isto não acontece, o Flamengo vai se firmando como favorito por onde passa, e sua torcida já tem um novo grito: “Olê, Olê, Olê, Olê… Mister, Mister”.


Notas

[1] Com dirigentes na Europa e saída de Abel, Flamengo intensifica negociação por Jorge Jesus 

[2] Com dirigentes na Europa e saída de Abel, Flamengo intensifica negociação por Jorge Jesus

[3] Rodolfo Landim fecha acordo, e Jorge Jesus é o novo técnico do Flamengo

[4] Jorge Jesus diz que treinadores brasileiros estão ultrapassados e aponta origem do problema

[5] “Até mulher grávida faria gol no Grêmio”, diz Renato Gaúcho

[6] Renato Gaúcho explica discurso sobre estudar na Europa: “me garanto” 

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. É preciso falar de Jesus. Ludopédio, São Paulo, v. 125, n. 5, 2019.
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