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E se a França tivesse dito “não”? E se nós começarmos a dizer?

Paulo Nascimento 9 de janeiro de 2013

Dia 30 foi dia de resolver pendências. Foi assim que levei boa parte de minha tarde do penúltimo dia do ano, naquele que eu imaginava ser o último dia para resolver miudezas públicas de 2012. Já que como eu suspeitava o mundo não acabou, achei que seria o momento derradeiro de decidir o que fazer neste ano, o que deixar e o que não deixar pro ano que vem. Andando de bike pelo centro da cidade, fui parando pra pagar uma conta ali, recuperar o chip do celular perdido acolá, deixar não-sei-o-quê na casa de não-sei-Quem, coisas assim. Com um radinho aos ouvidos, por acaso meu dial chegou ao “Segredos do Esporte” programa da Rádio Eldorado/ ESPN Brasil apresentado por Paulo Calçade, xará de quem confesso ser cada vez mais fã. Peguei o bonde andando, e aos poucos fui me situando sobre o que era aparentemente uma edição especial de final de ano. Se consegui pegar bem o final de uma conversa, suponho que falavam de assuntos como os desafios de ser árbitro de futebol em tempos de aprimoramento tecnológico cada vez mais veloz, ou como continuar apitando um jogo depois de se dar conta que errou, coisas assim. Me mantive fiel à sintonia e para minha alegria a entrevista seguinte foi com o santista londrinense de Londrina Mario Sergio Cortella.

Acho que a relação que eu tenho com o Cortella se aproxima da que os torcedores apaixonados tem pela geração favorita de seu time de coração. “O time de Pelé e Pepe”, “a Academia do Ademir”, “a seleção do Telê”, o time do Vanderlei Luxemburgo – quer dizer, acho que ninguém nutre algum saudosismo por algum time do Luxemburgo… Bom, mas é isso. Essa relação de apreço imenso. Não me lembro de ter ouvido alguma vez o Cortella falar bobagem. Se o Cortella fosse um jogador hoje, acho que seria um naipe Loco Abreu, um cara que pode não ser do nosso time, mas a gente acha ele legal. Fiquei empolgado e fui dando ouvidos pro que o filósofo teólogo tinha pra falar. E mais uma vez, o cara mandou bem.

Irlanda e França se preparam para ouvir os hinos. Foto: Martin Dobey – Flickr.

Além de justificar sua filiação ao time de Pelé, Cortella explicou brevemente a genealogia etimológica de termos como “ética” (do grego ethos) e sua relação com noções como caráter, razão, estilos de vida em âmbito público e privado. Também foi feita a genealogia da palavra “moral”, cujo radical é mores, o mesmo de “moradia”, e que remete a algo como o lar onde nos estabelecemos por nos identificarmos como sendo do mesmo grupo. Pois bem, se o campo esportivo pode ser considerado um espaço que manifesta uma das moradas de nossa ética, é de se pensar qual é a ética que tornamos aceitável no esporte.

Antes da bateria do radinho acabar, ouvi Cortella exemplificar seu ponto de vista sobre o quão complexas são as situações desveladas pelo esporte com a classificação da França para a Copa de 2010. Mais especificamente o jogo entre França e Irlanda válido pela última rodada da eliminatória para a Copa, onde todos, franceses, irlandeses, brasileiros, apátridas, Deus e o os demais do mundo e do universo, menos o juiz que apitava o jogo na hora, viram um gol de Henry feito com a mão (veja o vídeo ao final do texto). A vitória na prorrogação classificou o time francês para sua 13ª participação em uma Copa do Mudo. Se Zagallo foi uma figura um tanto enigmática pelos franceses em 1998 por conta de seu envolvimento com o número 13, não duvido que depois do fiasco na Copa de 2010 teve francês indo atrás da cartilha do Velho Lobo. O Direito Esportivo, do jogo propriamente dito, defendia Cortella, é diferente de Justiça ou da Justiça Desportiva. Afinal, pouco importa o que advogados, promotores, júris, testemunhas, parentes, chefes, excomungados, torcida, digam sobre o jogo. O que valida uma partida de futebol é aquilo que o árbitro disse que viu e registrou como tendo visto: gol de Henry, aos 13 (olhai o número de novo) minutos do primeiro tempo da prorrogação.

Só que esse registro não muda o fato de que todos, inclusive o árbitro sueco Martin Hansson, puderam comprovar depois do jogo que Henry fez o gol com a mão, o que não pode, segundo as regras da FIFA com a qual compactuamos. Daí que Cortella nos convidou para pensarmos no seguinte: e se a França tivesse dito “não”? “Não iremos”. “Sabemos, vimos depois que o gol de Henry não foi legal, logo, a vaga é por merecimento da Irlanda; que ela faça bom proveito dela”. Nisso a chuva esmoreceu, saí de debaixo do minhocão e prossegui pedalando e pensando. Daí que eu disse pra mim mesmo: e se nós começarmos a dizer?

Isso mesmo. Dizer “não”. Simples assim.

Martin Hansson em ação em uma partida de 2010. Foto: Amarhgil – Wikipédia.

Cortella prosseguiu com seu ponto de vista elogiando a França, que inegavelmente contribuiu muito para a sofisticação da humanidade com René Descartes, Michel de Montaigne, Blaise Pascal, Gustave Flaubert, Jean Jacques Rousseau, Victor Hugo, Michel Foucault, Edgar Morin e Edith Piaf, pelo menos. Pois bem, imaginemos todos o quão rico e intenso seria se esses mesmos franceses se inspirassem para mais uma contribuição à humanidade caso essa mesma França dissesse “não” a esta Copa. Este foi o momento que Cortella lembrou do que deveria estar no centro das discussões éticas sobre o mundo contemporâneo: “nem toda vitória é honesta, nem todo sucesso é decente”.

Ao recuperar para a discussão a genealogia e a etimologia de “moral” e sua relação com “moradia”, Cortella trouxe à baila um discurso que em sua infância era comum ouvir dos adultos: frases como “nessa casa isso-ou-aquilo”. Nessa casa não se come em frente à tevê, nessa casa não se vai pra cama depois das dez da noite, nessa casa não se grita com o outro seja em qual circunstância for, bater então nem pensar, nessa casa todos lavam ou ajudam a lavar a louça, fazem sua cama, e por aí íamos estabelecendo nossos padrões éticos e morais em cada um de nossos lares. Pois bem, embora eu seja alguns anos mais novo que Cortella, me lembro sem medo de errar de que em minha infância também foi recorrente ouvir coisas assim dos adultos. E o que me pareceu que Cortella queria com aquilo era nos fazer pensar sobre o que estamos deixando morar em nosso lar esportivo nestes tempos recentes.

Captura da imagem da TV no momento em que Henry toca a mão na bola. Foto: Brian Clayton – Flickr.

Já que as discussões sobre nacionalismos e identidades nacionais felizmente voltaram a aparecer na pauta da coisa pública, que tal nós brasileiros nos apresentarmos para verticalizar essa discussão sobre a urgência de vitórias honestas e sucessos decentes? Enterrar de vez o elogio ao malandro que se dá bem com a corrupção, e instigarmos uma reflexão que nos permita refletir e considerar inclusive o abandono desse jogo. Pode ser por W.O. mesmo, dane-se. Se o outro se recusa a perceber em mim um contribuinte à exaltação de sua força, de sua potência, de sua superioridade naquilo que estamos empenhados em fazer, os dois, então talvez seja o caso de nos recusarmos a sermos adversários nesse tipo de jogo, com essas estratégias, com esses adversários. Querer vencer o adversário não é natural tal qual alimentar-se, dormir, chorar, proteger-se do frio ou do calor, mas sim produto.da cultura da humanidade, portanto passível de adaptação para melhora da própria humanidade. Que tal nos lembrarmos da visão de mundo de algumas das tribos indígenas que por aqui grassavam antes de dizimarmos quase todas? Contribuições sofisticadas à humanidade como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Oscar Niemeyer, Anísio Teixeira, Dráuzio Varella, Marilena Chauí, João Emanuel Carneiro, Chico e Caetano, Dona Ivone Lara, Marcelo Adnet, pois bem, esses brasileiros hão de nos ajudar nessa tarefa. Para que passemos a cogitar a possibilidade de, ao menos uma vez ou outra, nos negarmos a “jogar o jogo”, a “fazer o jogo de bastidores”, afinal de contas “tem que ser assim, fazer o quê, não dá pra mudar o mundo sozinho, né?” e toda essa xaropada que os cínicos gostam de falar para que não pensemos tão mal deles.

Não precisamos jogar pedra no ônibus do time adversário. Se forem mais atentos aos direitos dos torcedores, isso fará bem para eles e para nós também. Que tal as Torcidas Organizadas voltarem a fazer o que já fizeram em passado de mais ou menos três décadas: festas em homenagens aos jogadores dos times rivais que, nos derbys do ano, mostraram-se dignos combatentes, independente que quem tenha vencido a contenda da vez? Não precisamos entoar cânticos racistas, homofóbicos ou pobrefóbicos em alusão aos adversários. Por quê? Porque isso não se faz, simples assim. Assim como já sabemos que não necessariamente precisamos soltar um palavrão atrás do outro em um grito da torcida, poderemos começar a pensar também que, a depender de quem estiver na presidência do nosso time, ele pode e dever sair de lá, e nós podemos e devemos boicotar os jogos de nossos times como forma de protesto. Foda-se que não estaremos entre as torcidas que mais lotaram estádio na temporada. Isso é manchete pra gazeta de ensino fundamental da qual podemos tranquilamente viver sem. A Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 estão aí nos acenando como oportunidades de ouro para fazermos isso. Fica a dica.

Henry reclama de falta em jogo contra a Sérvia em 2008. Foto: Ryu Voelkel – Flickr.

Faço esse convite em especial aos meus parceiros de geração, a quem vejo cada vez mais se apoderarem e se iluminarem pelo feixe de luz principal do palco da vida pública. Não foi a nossa geração quem ouviu tanto uma geração anterior fazer críticas mordazes à lei de Gérson e cinicamente incorrer no mesmo erro? Vamos fazer aquilo que nossos avôs, avós, pais, mães, tias e tios já fizeram e se deram mal? Vamos querer dar nós à cara a tapa, de novo? Faremos de nós provas vivas e mortas de que mais uma vez não deu certo? Que tal mostrarmos agora no campo ético o que de realmente revolucionário nossa geração veio consolidar como obra para a humanidade?

Meus sinceros votos são para que neste Ano Novo nós aperfeiçoemos cada vez mais nossa habilidade em perceber o quão ricos são os fatos ocorridos no universo esportivo, para continuarmos a nos emocionar ao notar como eles nos oferecem valiosas pistas para pensarmos nos rumos que estamos dando para nossa ética, nossa moral e nossas vidas. E que cada vez mais nos recusemos a jogar determinado tipo de jogo. Feliz 2003 a todos, da Velha e da Jovem Guarda.

Referências:
“Mão de Henry coloca a França na Copa”. Acessado em: <http://globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Futebol/Eliminatorias/0,,MUL1384334-9833,00-MAO+DE+HENRY+COLOCA+A+FRANCA+NA+COPA.html>. Último acesso em 31/12/2012.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Paulo Nascimento

Professor de História.

Como citar

NASCIMENTO, Paulo. E se a França tivesse dito “não”? E se nós começarmos a dizer?. Ludopédio, São Paulo, v. 43, n. 3, 2013.
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