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Edina Alves Batista: história de uma, história de todas

Corinthians e Palmeiras disputaram há pouco mais de duas semanas uma partida aguerrida, que se não foi de um primor técnico – e não foi – ao menos valeu pela entrega dos jovens jogadores de lado a lado, o que honrou o Derby. O jogo do Paulistão, no entanto, sequer deveria ter acontecido, tanto pelo caos instalado na saúde do Brasil, país que tem sido incapaz de conter a pandemia e a altíssima mortalidade dela decorrente, quanto pelos numerosos casos positivos no elenco corintiano. A coisa chegou ao ponto de o Timão promover a estreia profissional do goleiro Matheus Donelli, já que Cássio recebera resultado positivo em seu exame e Walter rumara para o Cuiabá. O Verdão, por sua vez, fosse pela contaminação, fosse por lesões ocasionadas pelas péssimas condições do gramado, poderia ter perdido jogadores para a final da Copa do Brasil, jogada poucos dias depois.

Malgrado a falta de empatia que o esporte, em especial o futebol, vem demonstrando em relação a momento tão dramático como o que estamos vivendo, houve algo marcante no jogo em Itaquera. Mereceu a atenção e o aplauso de todos a arbitragem de Edina Alves Batista, ela que poucas semanas antes participara do Mundial de Clubes Masculino no Catar, onde apitou a decisão do quinto lugar. O empate no Derby não impediu que Edina saísse do gramado como a incontestável vitoriosa, depois de uma atuação isenta e tranquila, tecnicamente irreparável, como toda arbitragem deveria ser, masculina ou feminina.

Edina Alves árbitra
Edina Alves foi primeira mulher a apitar um Derby paulistano. Foto: Cesar Greco/Palmeiras.

Eu, Danielle, conheci Edina quando ela ainda alçava voos mais breves. Fomos colegas de quadra. Ela já mostrava muito talento, afinal, chegar ao quadro de árbitras da Confederação Brasileira de Futsal é um grande feito, algo que poucas conseguem. Edina representava o estado do Paraná, e eu Santa Catarina, de forma que nos encontramos algumas vezes em competições nacionais. Assim como há poucas vagas no quadro nacional para mulheres, no do futsal da FIFA há apenas quatro, neste momento contando com duas catarinenses, uma paulista e uma paranaense. Esta última ocupa sua posição desde a implementação dele e seria muito difícil para Edina chegar ao quadro internacional. Talentosa, decidida e corajosa, acertou em trocar a quadra pelo campo e fez história, não apenas para si, mas para todas as mulheres da arbitragem.

Como nasci em uma família que tem árbitros, foi uma escolha senão natural, pelo menos tranquila quando eu e minhas duas irmãs decidimos por essa “segunda carreira”[1]. Ainda somos intrusas em um mundo muito masculino. Os xingamentos são sempre com forte conotação sexual, como aliás também acontece como os destinados aos homens, mas muito mais sujos quando dirigidos a nós. Não raro é a ala feminina que nos agride, mandando-nos voltar para a cozinha ou assistir novelas, completamente alheias ao quanto reforçam o machismo mesmo sendo mulheres, o que bem lembra o que escreveu Pierre Bourdieu em A Dominação Masculina. As frases ditas por elas e a nós destinadas parecem reverberar um ressentimento oculto por não poderem fugir da condição “doméstica” ainda imposta às mulheres. Agridem-nos, talvez, porque não conseguem a nós se juntar. No mesmo quadro, somos desacreditadas quando dos homens discordamos, mesmo quando estamos em postos mais altos que eles em nossas federações. Assim como os árbitros, passamos por aferições diversas, mas nossos resultados são contestados porque seríamos beneficiadas por precisar alcançar escores mais baixos. Isso sem contar o número superior de escalas designadas aos colegas, que atuam muito mais do que nós.

Tudo isso se reflete na dificuldade em convencer mulheres a virem conosco para arbitragem, a permanecerem, insistindo no ofício. São poucas as que resistem. Em Santa Catarina no futebol de campo são apenas 03 árbitras para 116 do gênero masculino. No futsal não são mais que 12 mulheres para mais de 150 homens. O montante aumenta um pouco quando se somam as anotadoras, cronometristas e assistentes, mas não são números expressivos. O abismo não está só na arbitragem. Os times femininos são comandados em sua maioria por técnicos, no campo ou nas quadras. A maior parte dos preparadores e fisioterapeutas são homens. Há um menor número de equipes e competições para mulheres. Os dados mostram que a cultura masculina do futebol ainda impera, levando-nos a uma briga constante por reconhecimento e, principalmente, por espaço.

Edina junta-se ao rol de mulheres que “furaram o cerco”. Assim como Bibiana Steinhaus, que foi a primeira a apitar um jogo da Bundesliga, depois de ter atuado em Copas do Mundo e Jogos Olímpicos em suas versões femininas. Ou como a francesa Stéphanie Frappart, que comandou a partida entre Juventus e Dínamo de Kiev, pela quinta rodada da Champions League no final do ano passado. Edina segue uma tradição que remonta a Asaléa de Campos Fornero Medina, a primeira mulher reconhecida pela FIFA, no mundo, como árbitra de futebol. Léa Campos, como era conhecida, e que também se dedicou ao boxe, fez parte do quadro da FIFA entre os anos de 1971 e 1974. Há também, entre tantas, a talvez mais conhecida, Ana Paula Oliveira, e ainda Charly Deretti, esta última, catarinense, árbitra FIFA, também oriunda do futsal e que tem atuado em partidas da Conmebol Libertadores Feminina. Nossa falta de espaço igualmente se expressa, por exemplo, no fato que de a maior rede de televisão do país apenas na semana passada, por primeira vez, ter escalado uma mulher para narrar um jogo de futebol. Renata Silveira comandou a transmissão de Botafogo X Moto Club, do Maranhão, pela primeira fase da Copa do Brasil.

Edina nesse momento encontra-se em ascensão. Talvez, não tenha atingido ainda o ápice da carreira, mas já está em um ponto que poucos e poucas alcançam. Afinal, um Derby Paulista e um Mundial de Clubes não são eventos em que qualquer um poderia atuar. Com certeza, a árbitra não agrada a todos. A cultura hegemônica que afasta as mulheres dos estádios e quadras, reforçando que o futebol delas tem menos força, menos emoção, ou ainda que aquilo não é futebol, ainda prevalece. Permanecem também as análises que as mulheres não teriam condições de apitar jogos masculinos, ignorando a intensa preparação física da arbitragem e sua profissionalização, e ainda as particularidades da função, já que o posicionamento em campo é diferente do dos jogadores, empreendendo menos esforço que eles.

A jovem árbitra não reivindica tratamento especial. Assim, como todas, deseja apenas desfrutar de sua profissão com os mesmos direitos dos homens, inclusive, podendo ser criticada em seu ofício quando de uma má atuação, sem condescendência por ser mulher. Lendo os colunistas elogiando o trabalho de Edina no Derby, encontramos logo abaixo dos textos vários comentários de leitores afirmando que ela estaria sendo beneficiada porque é mulher! Eis uma afirmação completamente fora da realidade. Qual a vantagem de ter quase todos os olhos que a assistem esperando que cometa um erro? A paranaense é excelente árbitra é conquistara por méritos a escalação.

Sim, sem condescendência, mas sem preconceito, por favor. Todas e todos nos equivocamos, assim como Edina no jogo entre Novorizontino e São Paulo. Mas, seu erro poderia ter sido avaliado pela dificuldade do lance, pela dúvida na marcação, ou ainda, com mais razão, por ela não ter recorrido ao VAR. Mas, não foi assim que aconteceu. De imediato, a interpretação foi a de que a árbitra foi soberba[2] por estar em um momento de grande visibilidade, sendo inclusive cotada para atuar na final do campeonato estadual. O sucesso lhe teria subido à cabeça. Em que se pode basear uma afirmação como essa? No fato de uma mulher necessariamente se deslumbrar com o próprio êxito no futebol?

Edina tem vencido e, se uma vence, vencemos todas. Vence minha irmã Giselle Torri, que foi perseguida em quadra. Vence minha amiga Fernanda Silvestre Estevam, que levou um soco no olho, atuando no campo. Vence Andreia Perdoncini, que precisou ficar trancada esperando o presidente de um clube sair do ginásio, mas viu a porta do vestiário em que se encontrava ser arrombada antes disso. Vencem todas: Cida, Anelise, Ana, Maria Lúcia, Marcela, Aline, Soraia, etc., desacreditadas e por vezes diminuídas, quando resolvem dizer que aquele ali também é seu lugar. Mas, insistimos e seguimos, para que notícias de surpresa e sensação sobre árbitras mulheres, narradoras, Martas e Amandinhas, não sejam o normal nos noticiários, mas sim apenas parte da ficha técnica da partida, como sempre aconteceu com os homens.

Fraiburgo, Meio Oeste Catarinense; Ilha de Santa Catarina, março de 2021

Taça Brasil - Confederação Brasileira de Futsal
Foto: Arquivo Pessoal – Taça Brasil – Confederação Brasileira de Futsal

 


[1] Todas nós temos uma primeira carreira. Se já não é um bico trabalhar com a arbitragem, ao menos no futsal, precisamos de um emprego que nos ofereça maior segurança financeira. Que o diga o atual cenário pandêmico, que diminuiu quase a zero as competições amadoras, onde mais atuamos.

[2] Erro grotesco contra o São Paulo trava empolgação com árbitra

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danielle Torri

Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

TORRI, Danielle; VAZ, Alexandre Fernandez. Edina Alves Batista: história de uma, história de todas. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 40, 2021.
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