“Chora porco imundo, quem tem o Viola não precisa do Edmundo”, gritava uma fração da torcida corintiana quando o time de sua devoção ganhava do Palmeiras, na primeira partida final do Campeonato Paulista de 1993. O centroavante marcara um belo gol e, na comemoração, imitara um suíno, fazendo alusão ao apelido que adversários imputaram ao time que representa parte da comunidade paulista de origem italiana – e a tantos outros brasileiros. O Timão sairia vitorioso naquela partida, mas na seguinte amargaria a derrota no tempo normal e na prorrogação, frente à fortíssima equipe que o Palestra montara com apoio da Parmalat, saindo da fila depois de 16 anos sem títulos. O time venceria ainda o Campeonato Brasileiro no mesmo ano e no seguinte. Mostrando que o mundo dá voltas, Viola, anos depois, vestiria, com glória, a camisa do Verdão. Edmundo, sem o mesmo êxito, a do Corinthians.

Edmundo veio do Rio de Janeiro, identificando-se de imediato com o Palmeiras, com a torcida e o Parque Antártica, fazendo grandes campanhas, marcando muitos gols e se envolvendo em um bom número de confusões em campo. Uma delas aconteceu na mesma final contra o Corinthians, quando deu uma entrada violenta no também atacante Paulo Sérgio, jogador que comporia o elenco campeão da Copa do Mundo de 1994 e que faria importante carreira no Bayern München. Edmundo reuniu alguns problemas também fora das quatro linhas, um deles muito grave, que foi a responsabilidade pela morte de três pessoas em um acidente de trânsito – episódio sobre o qual não se nega a falar e diz dele arrepender-se todos os dias. Foi um grande jogador que vi atuar por uma temporada, já no final de sua trajetória como jogador, no Figueirense. Pelo Alvinegro do Estreito, em Florianópolis, atingiu o recorde de gols marcados em campeonatos brasileiros na era dos pontos corridos.

A ligação de Edmundo com o Palmeiras seguiu, ao ponto de que, depois de uma partida pelo Figueira, no Palestra Itália, ao ser saudado pelos torcedores, vestir a camisa verde e retribuir o carinho dirigindo-se às arquibancadas. Ao deixar Florianópolis, voltou a São Paulo para mais uma temporada pelo clube que o projetara de forma definitiva, depois de um começo fulminante no Vasco da Gama. Finda a carreira, o Animal, como o nomeou Osmar Santos, por suas atuações no começo dos anos 1990, passou a se dedicar à televisão, onde em diferentes veículos tem comentado partidas de futebol e participado de programas de debate sobre o mesmo tema.

Há algumas semanas, após a partida do Palmeiras contra o Chelsea, na decisão do Campeonato Mundial Interclubes referente a 2021, Edmundo fez um comentário com o qual se pode ou não concordar, sem que os ânimos se exaltem. Segundo o ex-jogador do Palmeiras, o atacante belga Romelu Lukaku, autor do primeiro gol do time inglês, não se destacaria pela técnica, mas pela força. No entanto, Renata Mendonça, competente comentarista do SportTV e colunista do UOL, interpretou a avaliação de Edmundo como desinformada e de teor racista. Em uma rede social escreveu que Lukaku tem força física, mas é desprovido de técnica mostra que: 1. Não conhece o futebol de um dos melhores centroavantes do mundo atualmente 2. Repete um clichê racista de que jogadores negros são fortes fisicamente, mas não podem ter técnica/inteligência pra jogar.

 

Criticada pelo próprio Edmundo e achincalhada por vários comentaristas homens – pelo menos um deles, Milton Neves, pediu-lhe desculpas depois de ser confrontado por ela – Renata recebeu o apoio de Djamila Ribeiro, uma das grandes especialistas brasileiras nos temas de gênero e raça/etnia, intelectual com importante presença nos meios de comunicação. Parece-me que ambas estão erradas e que, neste caso, Edmundo tem razão e não se manifestou de forma racista. Há jogadores com mais força, técnica, habilidade, com maior capacidade tática, e isso está distribuído indistintamente entre futebolistas de todos os registros étnico-raciais.

 

 
 
 
 
 
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Embora tenha errado o alvo, o comentário de Renata traz um problema concreto e que, sim, mostra nosso racismo estrutural. Persiste a suposição de que haveria características e funções próprias para negros e brancos em campo, embora os fatos mostrem o caráter fictício – e preconceituoso – de tal posição. Ouvi muitas vezes que numa dupla de zaga deveria haver um jogador mais forte (negro) combinando-se com outro mais técnico (branco), o que contraria a existências de muitos defensores habilidosos e técnicos, como Aldair e Juan, sem contar o melhor de todos, Luís Pereira, todos negros. Por outro lado, chovem exemplos de beques brancos que não são propriamente craques com a bola nos pés, tampouco aliviam nas disputas de bola, como eram os casos de Moisés e Abel Braga. Na épica seleção de 1982, a dupla que protegia o arco brasileiro era muito técnica, mas Luisinho, além disso, se destacava pela habilidade, assim como Oscar pela força. Obviamente há também jogadores negros que abusam da brutalidade, como Domingos, e brancos bons de bola, como Mauro Galvão.

(Aqui e ali, ademais, volta a absurda ideia de que negros não são confiáveis na posição de goleiro.)

Mesmo mentes brilhantes, como a de Darcy Ribeiro, já incorreram, certamente de forma inadvertida, em preconceito desse tipo. Ao comentar a derrota brasileira frente aos nigerianos, nos Jogos Olímpicos de 1996, afirmou o seguinte: “Não sei nada de futebol, só vejo as partidas das Copas e, agora, da Olimpíada. Mas o que vi não só me entristeceu, também me preocupou muito. Não sou racista, mas não está faltando negro no futebol brasileiro? Veja os negrões da Nigéria, não sabem jogar futebol, mas têm uma raça e uma alma que arrasaram os nossos moreninhos”. Dida, Rivaldo, Ronaldo, Roberto Carlos, Leonardo, Flávio Conceição, Bebeto e Aldair, entre outros excelentes jogadores do Brasil, não foram páreo para a seleção da Nigéria nas semifinais olímpicas.

Não sei o desfecho do imbróglio entre Edmundo e Renata Mendonça, espero que a coisa não tenha ido parar na Justiça, assim como também que a articulista tenha revisto sua posição. Espero também que todos nós combatamos o racismo no interior do qual vivemos.

Ilha de Santa Catarina, maio de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Edmundo e o racismo no qual vivemos. Ludopédio, São Paulo, v. 155, n. 8, 2022.
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