Desde de março de 2020, quando os estádios no Brasil viram o futebol e suas torcedoras e torcedores pela última vez nos grandes centros (até então), acompanhamos o desenrolar de reconfigurações das formas de torcer pelo território nacional.

Não bastasse a pandemia da COVID-19, ainda somos obrigados a conviver com o gravíssimo vírus do autoritarismo. Em um momento em que às recomendações sanitárias são para que as pessoas fiquem em casa, assistimos no Brasil grupos diminutos, mas bastante midiáticos clamando pelo fim de uma já não tão efetiva democracia, atacando as instituições e tudo o que represente para eles um outro – inimigo construído como aquele que atrapalha o progresso do país. 

Desrespeitando o conhecimento científico, prática que tem sido comum em grupos de apoiadores do atual governo federal, fizeram aglomerações na rua, pedindo, dentre outras coisas, o direito de não ter direitos. Ou o direito de que apenas grupos historicamente privilegiados social e economicamente tenham direitos – os que eles julgam as pessoas de condutas “direitas”, as pessoas “de bem”. Cartografar tudo o que aconteceu desde aí, em termos de enfrentamento a essa posição, é uma tarefa impossível. Mas destacamos neste texto algumas movimentações torcedoras notadas, em meio a um isolamento físico mais ou menos efetivo, conforme a localidade desse vasto e diverso Brasil.

Enquanto os partidos políticos tradicionais não conseguiram mobilizar suas bases para um enfrentamento no espaço público, foram os torcedores que tomaram a dianteira em resistência à situação. Junto com as tradicionais organizadas dos grandes centros, como a Gaviões da Fiel, foi possível enxergar grupos que anteriormente eram mais visíveis nas redes sociais e, muitas vezes ignorados por seus próprios clubes, como os torcedores antifascistas e os grupos de mulheres torcedoras. 

Pelo Brasil afora, já tínhamos visto a emergência desses coletivos de torcedores que se tornaram mais notórias em marcos de lutas importantes nas ruas: as jornadas de junho de 2013 (Damo e Oliven, 2014), o próprio período da Copa do Mundo de 2014, o golpe de 2016 e outras manifestações que se sucederam após a eleição do atual presidente. Contudo, após dois meses de quarentena, vimos torcidas e movimentos torcedores embalarem na ida às ruas. Aqueles que já se mobilizavam antes e outros, que precisaram da situação limite do confinamento e da inabilidade dos governantes em propor iniciativas de enfrentamento e ao coronavírus para saírem das mídias sociais e entrarem em campo.

A fanpage Grêmio Antifascista, por exemplo, surgiu em 2014. A página divulgava o enfrentamento a diferentes situações de preconceito, muitas delas sem vinculação com o clube ou com o futebol. O vínculo identitário com o Grêmio era ignorado em algumas oportunidades quando ações de torcedores adversários e rivais eram exaltadas ao mesmo tempo em que atitudes preconceituosas feitas pelo clube ou algum conjunto de seus torcedores eram repudiadas.

Muitas vezes, os administradores da página e seus seguidores eram acusados de desconhecimento em relação ao uso do termo antifascista. Essas acusações vinham daqueles que entendiam que o fascismo teria ligação com o Estado e seria prática mais adepta das esquerdas como se o anarcoliberalismo capitalista não tivesse relação com discriminação, preconceitos e o aumento da desigualdade.

A resposta da Antifa do Grêmio sempre remetia ao texto de Michel Foucault: Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista (1977). Foucault argumenta que fascismo é aquilo que nos faz desejar o poder. O fascismo não se manifesta necessariamente como um inimigo externo a ser combatido. Está em todos nós, nos domina e nos explora, e se apresenta na forma como exercemos poder uns sobre os outros. De forma que, uma primeira atitude antifascista é, então, aquela que temos em relação às nossas próprias condutas no dia a dia, nas condutas que produzimos e reproduzimos uns com os outros.

Foto: Wikipédia

Se tomarmos algumas dessas noções a partir da lógica torcedora tradicional, poderíamos fazer alguns questionamentos dentro dessa relação identitária vinculada ao antifascismo clubístico. Em reação aos vários antifas nas ruas, vimos viralizar nas redes sociais, berço desses grupos, uma lógica bastante importante da constituição torcedora no contexto brasileiro – o/a antifascista identitário/a. Professores, bibliotecários, nerds, historiadores e toda sorte de marcadores sociais da diferença que atravessam nossas relações sociais, acabaram por criar esse personagem em que o antifascista aparecia como adjetivo. No limite dessa lógica, o Eu Nome Próprio Antifascista também circulou nas redes.

Tanto essas diferentes identidades quanto as normas do torcer nos impõe a escolha por um, e somente um, clube/time de nossa devoção. No torcer não está entre as possibilidades elegíveis a troca de clube/time. Esse vínculo seria definitivo (embora saibamos que, em alguns casos, não tão definitivo assim). A participação em uma torcida também pode significar a inclusão em um grupo de indivíduos bastante hierarquizada. Aqui não pretendemos fazer um cálculo de quanto uma torcida poderia ou não ser antifascista, mas ressaltar que nesse ambiente, bastante simpático a processos de homogeneização, manifestações de diferentes ordens aparecem em disputa: mulheres e homens cis, pessoas trans, travestis e não-binárias, de diversas colorações e etnias, e diversas formas de viver práticas afetivas e sexuais. Inclusive, cabe um convite ao pensamento do quanto essa luta por uma democracia genérica abrange de maneira mais capilar a vida de torcedoras/es e torcidas, ou então corremos o risco de morrermos em identidades sentadas em arquibancadas. Ou melhor, em identidades que apenas consumimos e não vivemos.

No Rio Grande do Sul, notamos os diferentes tensionamentos da identidade clubística quando movimentos progressistas de torcedores de Grêmio e Internacional não participam em conjunto de atos de rua, de notas de repúdio ou de eventos políticos e acadêmicos. Esses torcedores não estão escritos no masculino por questão de gênero linguístico, mas por questão de gênero ligados a masculinidades e feminilidades. As torcedoras progressistas de Internacional e Grêmio, por sua vez, conseguem dividir esses espaços.

Em Belo Horizonte, vimos divergências sobre as questões envolvidas em incentivar ou não as pessoas a irem às ruas, em um momento no qual a luta é para que aqueles que não têm como estar isolados fisicamente, tenham essas condições garantidas. Coletivos antifascistas de Atlético, América e Cruzeiro estreitaram o diálogo para demonstrar uma postura combativa frente ao descaso com que as vidas de muitas pessoas têm sido tratadas.

Mais próximos ou mais distantes, esses grupos de torcedores tensionam também o nosso fazer político atual. Que as diferentes antifas espalhadas pelo país mantenham suas peculiaridades e que possam fazer seus enfrentamentos conceituais e políticos com bastante brevidade, mas que, nesse momento, estejam unidas, preferencialmente com outros grupos de torcedores em um esforço contra o adversário comum, pequenos e grandes fascismos que nos violentam todos os dias.

O torcer antifascista não pode morrer em identidades egóicas ou clubísticas, genéricas e inertes. Ele deve ser um exercício constante nas nossas relações cotidianas e nas relações cotidianas de movimentos, coletivos e torcidas. Nas ruas, estádios ou – mesmo – dentro de casa. 

 

Referências

Damo, Arlei Sander; OLIVEN, Ruben George. (2014). Megaeventos esportivos no Brasil: um olhar antropológico. Campinas, SP: Armazém do Ipê.

Foucault, Michel (1977). Introdução à vida não-fascista. In DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Anti-Oedipus: capitalism and schizophrenia. (Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento e formatado por Alfredo Veiga-Neto). New York: Viking Press, p. XI-XIV. 

 

Este texto foi originalmente publicado no Boletín Deporte y actividad física Reflexiones desde Latinoamérica Año 1 – Número #2  <<Fútbol y hinchadas>> do Grupo de Trabalho CLACSO Deporte, cultura y sociedad. 


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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada; DANTAS, Marina de Mattos. Em busca de um torcer não-fascista. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 32, 2020.
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