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Em defesa do direito de pessoas transgênero à prática esportiva

Há alguns meses tem sido arrolado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), em caráter de urgência para votação, um projeto de lei que castra a participação de pessoas transgênero no esporte de competição. O famigerado, desumano e grosseiro projeto de lei, PL 346/19, postula que o dito “sexo biológico” seja o único critério válido para definir a possibilidade de atletas participarem de equipes profissionais em todo o Estado de São Paulo. Ele é de autoria do deputado estadual Altair de Morais, eleito no primeiro turno das eleições de 2018, pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB).

O deputado Altair Moraes (PRB) é autor de projeto de lei que estabelece o sexo biológico como o único critério para definição de gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Estado de São Paulo. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp.

Não são necessários muitos argumentos para demonstrar o quão absurdo é a defesa desta posição, haja visto que o próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) e seus subcomitês que discutem critérios de elegibilidade e participação em competições esportivas profissionais vêm há anos pensando e repensando questões vinculadas a corpos transexuais ou transgêneros (isto é, corpos que discordam do gênero atribuído no nascimento). Apesar da entidade poder ser criticada pelo foco desmesurado na testosterona e no adestramento de níveis hormonais para viabilizar tal participação segundo suas normativas, ao menos ela admite uma brecha e permite que corpos se adequem/readéquem para competir.

O que mais me deixa chocado é observar a conduta deste deputado, eleito com mais de 80 mil votos no Estado, supostamente com a missão de se preocupar com o bem-estar das pessoas e defender direitos da população, redigir um projeto de lei que retira direitos de uma parcela desta mesma população que ele prometeu representar. Pessoas transgênero, homens-trans ou mulheres-trans, fazem parte deste todo populacional e têm o direito à prática de esportes. A partir da Constituição de 1988 constituiu-se um conjunto de premissas que vinculam à prática do esporte como um direito individual fundamental para o desenvolvimento integral dos indivíduos e como forma de produzir pessoas que atuem no exercício de suas cidadanias.

Uma das questões cruciais na defesa dos argumentos deste deputado é a crença inquestionável de que os corpos se classificam segundo as suas genitálias. Portanto, quem apresenta pênis é, “naturalmente” (aspas porque isso é equivocado), homem; quem tem uma vagina é, então, mulher. Qualquer dissonância na “composição genital”, por assim dizer, provoca classificações preconceituosas e discriminatórias, de pessoas que, talvez, não mereçam ostentar o título de seres humanos (homens ou mulheres). Seriam corpos abjetos, desviantes, “anormais”. Tenho até medo de saber se este deputado confere status de ser humano às pessoas transgênero.

A deputada estadual Érica Malunguinho (PSOL) e a jogadora de voleibol Thiffany Abreu. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp.

As questões de gênero têm mobilizado amplos posicionamentos na sociedade brasileira nos últimos anos, em que pese serem muitos superficiais e acríticos do que produtos de um debate profundo. Algo que os feminismos mostraram foi que o sujeito universal masculino não passa de uma invenção e que a morte deste sujeito universal abriu as portas para as mulheres, para os negros, os gays, entre outros. Ou seja, viabilizou o sujeito plural, heterogêneo e contingente.

Colar as genitálias ao corpo e presumir que existem apenas “homens com pênis” e “mulheres com vaginas” no mundo e que, no universo esportivo, competem agrupados em semelhantes e entre si é de uma estreiteza mental absolutamente inacreditável. Mesmo no esporte, que se baseia ainda na divisão por sexos (homens x homens e mulheres x mulheres) para justificar as “igualdades de chances” já se mostrou que tal rígida classificação está ultrapassada e em vias de ser substituída – pelo menos é algo que tenho insistido em minhas pesquisas nos últimos anos.

O conceito de gênero funcionou, ao longo de suas transformações epistemológicas dos últimos 60 anos, como um meio de rejeitar o determinismo biológico instituído e aclamado como “verdade” a partir do que estava implícito no que se chamava de “diferenças sexuais”. Permitiu, num só golpe, problematizar e desconstruir uma representação naturalizada de homens e mulheres e de seus atributos de “masculinidade” e “feminilidade”. Graças a tais problematizações hoje temos que esses qualificativos podem ser atrelados a quaisquer corpos, e que gestualidades, estéticas, sexualidades, performances, etc. são construções históricas e discursivas.

Dani Nunes, Leonardo Peçanha, Gustavo Uchoa, Érika Hilton, Érica Malunguinho, Tiffany Abreu e Magnus Régios. Foto: José Antonio Teixeira/Alesp.

Resgatando Michel Foucault, um filósofo francês muito importante na apreensão crítica da realidade, foi por meio das redes de poder estabelecidas que a categoria analítica gênero deflagrou a falácia da diferença biológica, tomada para explicar as desigualdades sociais que geram exclusão de sujeitos e grupos. Isso também ocorre no esporte e o caso das pessoas transgênero exemplifica tal aspecto.

No último dia 08 de outubro tentou-se votar na Alesp o PL 346/19. Por falta de quórum e frente a um ato público de protesto, acabou-se desistindo da votação. Como está registrado como “caráter de urgência” é provável que em pouco tempo seja pauta novamente na casa. Como a cada dia que passa nos surpreendemos mais e mais com ações inacreditáveis de nossos/as eleitos/as (em todas as esferas de governabilidade), temo pela aprovação de tal projeto de lei no Estado.

Não preciso ser pessoa trans para me sensibilizar com esta questão. Como ser humano e ser social defendo que tais pessoas sejam respeitadas em suas decisões relativas a seus corpos, gêneros e sexualidades. Que seus corpos sejam instrumentos de provocação e de questionamento das ordens institucionalizadas e homogeneizadas. Que estas pessoas possam praticar esporte a partir das composição e apresentação corporais que bem escolherem. E que nós possamos tranquilamente conviver e aprender com elas.


Para ler mais sobre pessoas transgênero no esporte, seguem sugestões de alguns textos curtos, com discussões pontuais:

CAMARGO, Wagner X. “Agenda trans para o Esporte”. Ludopédio, São Paulo, v. 122, n. 29, p. 1-5, 25 ago. 2019. Disponível em: <https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/agenda-trans-para-o-esporte/>.

CAMARGO, Wagner X. “A era dos invisíveis no Esporte”. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n.24, p. 1-4, 24 dez. 2017. Disponível em: <https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/era-dos-invisiveis-no-esporte/>.

CAMARGO, Wagner X. “Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões”. Contemporânea – uma (quase) revista, Florianópolis, v. 6, p. 10 – 12, 07 jan. 2017. Disponível em: <https://www.academia.edu/31933761/Corpos_Transg%C3%AAneros_no_Esporte_algumas_quest%C3%B5es>.

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Wagner Xavier de Camargo

Antropólogo que se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas áreas de Educação Física e Esportes. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela UFSCar, Doutorado em Ciências Humanas pela UFSC e estágio doutoral na Freie Universität von Berlin (Universidade Livre de Berlim), na Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Em defesa do direito de pessoas transgênero à prática esportiva. Ludopédio, São Paulo, v. 124, n. 21, 2019.
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