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Em nome do pai: sobre os afetos tecidos entre torcer, pesquisar e compartilhar o futebol

Do que é possível ler e escrever sobre a vida, deve ser sempre feito a partir da compreensão de que a potência do escrever-sobre reside, justamente, naquilo que a escrita deixa escapar: a completude, a ordem, a cronologia. Escrever sobre a vida é, sobretudo, um movimento de compreensão e reflexão sobre existências que nunca findam em si mesmas e encontram em outras vidas a expressão de suas próprias.

Dizer então sobre aquilo que nos fez pesquisadores, mulher, homem, torcedores, é dizer e escrever também sobre outras vidas, as que antecederam as nossas. Viver e escrever são atos que, sobretudo, nos levam a experimentar o encontro. Esse que nunca anda só, que se multiplica em afetos, ações, resultando em potência. Para que o futebol fosse hoje mais do que torcida, fosse ato de escrita e de fazer ciência, precisou, antes de tudo, ser uma experiência de encontro e partilha com outro, ou, outros, nossos pais.

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Eu e ele não temos gostos em comum, também não costumamos dar grandes abraços. Não que não sejamos próximos ou qualquer outra coisa que isso possa sugerir. Mas, sempre fui a companheira do meu pai no estádio. Ainda hoje moramos perto dele. Quando se chamava Estádio Regional Indio Condá, lembro de irmos os dois de a pé assistir à Chapecoense. Ele caminhava com o rádio sintonizado na Super Condá, uma coisa que nunca fez sentido para mim, mas que eu pensava ser coisa de gente velha, que talvez não conseguisse acompanhar o jogo se não ouvisse alguém narrando.

Meu pai sempre me respeitou como uma mulher que acompanha e se identifica com o futebol. Em um sistema patriarcal é válido mencionar. Ainda assim, nunca entendeu o que eu fazia ou por que eu fazia. Faz pouco tempo também que compreende o fato de eu ser pesquisadora e que essa é uma profissão legítima. No fim, talvez eu venha a ser doutora, mesmo não sendo advogada, como ele tanto desejou.

Estádio Orlando Scarpelli
Estádio Orlando Scarpelli. Foto: Wikipédia

Fui muito próximo de meu pai na infância, o que, no entanto, não me tornou de imediato um fã do futebol. O rádio do carro nos dizia de jogos distantes, em São Paulo; a narração épica de Fiori Gigliotti, na rádio Bandeirantes, dava o tom das tardes de domingo. “Fecham-se as cortinas e termina o espetáculo”, decretava o locutor, lembrando que se acabava o final de semana e logo se anunciaria a manhã fria de mais um dia de aula.

Presencialmente, o Estádio Orlando Scarpelli foi o primeiro destino, era lá que assistíamos, eu com ele e meu irmão, os times da capital, nem sempre exitosos, jogando o Campeonato Brasileiro. Da televisão se transportavam para o campo os astros da bola e eu, pouco a pouco, ia me familiarizando com a cultura futebolística e a masculinidade que a demarcava naqueles tempos. Já não era mais a pipoca e o sorvete desfrutados nas arquibancadas, mas o desempenho em campo que importava. No mais, e isso jamais foi questionado pelos filhos, tornamo-nos, por infortunada herança naqueles anos de sucessivas derrotas, corintianos.  

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Pensei nesses últimos meses em por que trabalho com futebol. Não soube dizer o motivo a mim mesma.

As coisas que me fascinavam como espectadora, delas me afastei quando me tornei pesquisadora da área. A admiração e o encanto, que eu sentia assistindo ao futebol profissional, é algo que hoje não cabe mais nos mesmos olhos que, ansiosos, acompanhavam meu time do coração, ao lado do meu pai. Nas últimas vezes em que fui ao estádio, confesso, foi para comer o cachorro-quente que um antigo jogador da Chapecoense vende dentro da Arena Condá. O cachorro-quente do Janga. Maior burocracia esse lanche hoje (!), só vende na arquibancada coberta, lugar ao qual eu jurei nunca ir. Eu e meus amigos dizíamos que era o espaço reservado às famílias ricas e, por algum motivo, a gente adorava ficar perto das pessoas mais velhas que ouviam o jogo no rádio e insultavam o time de um jeito peculiar. Talvez por isso eu sempre gostei de ir ao estádio com meu pai.

Por muito tempo, eu desaprendi a assistir futebol como alguém que torce, pois o que eu via, o que sabia e havia lido, não me permitia mais acessar ao esporte como espectadora. O meu eu-pesquisadora fez meu eu-torcedora ruir. Ainda hoje não consigo ir ao estádio. Fui embora com o que era antes o Estádio Regional Índio Condá. A Arena não é para mim.

Arena Condá
Arena Condá. Foto: Wikipédia

Foi a leitura de Universo do futebol, organizado por Roberto DaMatta – luxuoso livro ilustrado, com quatro capítulos – que me fez ver, há muitos anos atrás, o futebol como objeto de reflexão e análise para as Humanidades. Eu gostava de Antropologia, e foi deambulando pela Biblioteca Universitária, na juventude da graduação, que encontrei o livro, que a muito a custo consegui comprar, pelo correio, uns anos depois. Fiquei muito interessado na abordagem, que para mim era surpreendente. Logo tomei de empréstimo um exemplar de Explorações, do mesmo DaMatta, que continha um texto com a defesa de eleições diretas para treinador da seleção brasileira de futebol!

Andava meio de mal com o futebol. Havia me profissionalizado no atletismo e só fui, de fato, me reconciliar com o jogo de bola durante o mestrado, muito em função do encontro com o amigo Paulo Capela. Anos depois, quase que ao mesmo tempo, voltei a frequentar estádios e comecei a observar o futebol como tema de reflexão. Com o tempo, compatibilizei uma coisa com a outra. Pelo menos até onde me foi possível.

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Dentre todos os campos e espaços futebolísticos, existe um território existencial em que sinto que caibo. Como pesquisadora e também torcedora. Encontrei um fazer-futebol no qual enxergo potência, desejo e sonho, e daquilo que fala Eduardo Galeano: “[…] da alegria de jogar só pelo prazer de jogar”.

Desde que iniciei meu percurso cartográfico no cenário formativo, compreendo que o investimento psicossocial, feito nas categorias de base, pode ter grande impacto nas vidas. Vidas de jogadores, formadores, profissionais, que compõem um território existencial. Território no qual o futebol ainda permite uma vida que varia e que difere. E é esse o futebol que me interessa. Aquele que me conecta com uma experiência que eu pensava ter ficado para trás, numa infância na qual o futebol importava porque era compartilhado.

Junto com memórias que se entrelaçam às memórias de meu pai – para quem o ato de viver o futebol tem significância que transcende a escrita e a narrativa, e que por isso, e ainda por mais, ganha expressão em minha vida e em minha escolha pela pesquisa – existem as coisas que aprendi. E, dentre todas as coisas, que fogem à repetição e à banalidade de uma vida que se cansa do que vê, naquele lugar onde mora seu refúgio, a mais bonita de todas essas coisas que aprendi, olhando e ouvindo memórias de vidas, certamente, foi compreender que sempre há outro caminho, para outro campo, a ser compartilhado.

Meu pai e eu agora dividimos outro percurso para assistir futebol. Nos jogos das categorias de base não há narração e nem aquele rádio falando durante a partida. Também não há lugar para sentar. A torcida é composta quase que só pelos familiares dos jogadores, mas aprendemos a ser parte dela também…

Gosto da cultura do futebol, de acompanhar o jogo dentro do campo, de pesquisar o tema. Suponho ser muito importante conhecer a dinâmica do esporte, como ele é jogado, para compreendê-lo como fenômeno. Trato de saber das técnicas e táticas, de ver o movimento coreográfico e espontâneo dos jogadores como expressão de corpos muito preparados, com desejos e dores, renúncias e rebeldias, segurança e risco, júbilos e tristezas. Disso desfruto, sobre isso penso e escrevo. Vou ao campo sempre que tenho a chance, em Florianópolis ou onde quer que esteja. Sozinho, com amigos, já não com meu pai.

O futebol é uma ponte hoje claudicante na ligação entre nós. Gosto do jogo, mas sou muito menos torcedor do que fui na infância, e meu pai já não tem tanta energia para acompanhar o Corinthians, criticar os clubes cariocas, gozar com as vitórias contra os argentinos, discutir a escalação do escrete nacional. Mas o futebol ainda é um elo e por isso sou agradecido a ele, como sou ao pai, por ter me apresentado ao jogo, por tanto mais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

MORO, Eduarda; VAZ, Alexandre Fernandez. Em nome do pai: sobre os afetos tecidos entre torcer, pesquisar e compartilhar o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 14, 2021.
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