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“Me encanta todo lo que en mí no hay”: amo o Fred até do Paraguai

Asunción, Dia do Índio

“Escribir no significa convertir lo real em palabras sino hacer que la palabra sea real” (Augusto Roa Bastos).

No final da manhã de domingo, pela primeira vez, cheguei a Assunção para assistir ao jogo do Atlético Mineiro pela Libertadores, contra o Libertad. Sempre gosto de chegar a qualquer cidade nesse dia por dois grandes motivos: não há trânsito – quando a cidade é grande – e há silêncio. Tomei um táxi até a hospedaria, pois aqui não há aplicativos de carona paga. Por sorte do destino, o taxista foi um ex-jogador de futebol, o Blas Zelaya, que esteve na campanha vitoriosa do Olimpia no ano de 1979 pela Libertadores. Tinha dezoito anos na época. Ele fez questão que eu anotasse o seu nome. O telefone tocou e rapidamente já conversava um pouco apavorado e feliz ao mesmo tempo. Eu não entendia nada; ele falava em guarani. A língua oficial do país também é indígena, inclusive ensinada na escola. Explicou-me que teria de ir ao encontro da filha para levá-la ao hospital, ela estava prestes a ter um filho. E deu duas opções: deixaria-me em outro táxi ou eu poderia ir com ele, já que o papo estava bom. Achei interessante a proposta; porém agradeci e resolvi me transferir para outro carro. Afinal, estava muito cansado; praticamente não havia dormido por conta do voo muito cedo.

Deixei as coisas na pousada, tomei um banho e saí para almoçar. Fui para o Bolsi, um restaurante no centro da cidade que tem comida típica e internacional com bons preços e atendimento maravilhosos, visto em poucos lugares do mundo. Pedi uma sopa, sopa paraguaia. Quando chegou à mesa, eu disse que havia pedido uma sopa e o garçom me explicou que de fato aquilo era o que eu havia solicitado, a sopa paraguaia não é uma sopa, é um prato sólido, um pedaço grande de bolo salgado, uma espécie de pamonha menos cremosa à base de milho com queijo. Depois daquilo, não consegui comer mais nada.

Meninas paraguaias
Alunas esteando a Bandeira do Paraguai. Escola Municipal Julio Correa, em Luque. Fotografia: PeDRa LeTRa.

 

Desde o aeroporto, percebi que Assunção é bastante retrô. Não somente por suas ruas e arquitetura que remontam a séculos passados, é uma das cidades mais antigas da América Latina, fundada em 1537, mas por tudo que passa à volta: os ônibus e carros antiquíssimos, a música folclórica bastante presente, a tevê ligada na praça principal, a comida rústica, preservando suas raízes coloniais, a língua indígena, estranhíssima, que não é lenda, pois é falada com muito mais frequência do que eu poderia imaginar. Que bom! Aqui, todo dia é dia de índio!

 

Fútbol en la ciudad

 

Às 16h, eu já estava dentro do estádio Rogelio Livieres para assistir ao jogo do Guaraní contra o Libertad – 2 a 1 –, com gols do juvenil Antonio Marín y Rodrigo López. O adversário do Galo era o último invicto do certame, mas, mesmo com a derrota, continua líder. O campeonato paraguaio conta com mais dez clubes além desses dois. Ou seja, doze clubes, nove deles da capital Assunção, concentrando toda a força de seu futebol. Os mais tradicionais são Club Olimpia (1902), Club Guaraní (1903), Club Nacional (1904), Club Libertad (1905) e Club Cerro Porteño (1912). Cerro e Olimpia são os maiores campeões nacionais e dividem os torcedores do país, sendo este último o único de expressão internacional, pois já disputou sete finais de Libertadores, conquistando-a em três ocasiões, além de uma Copa Intercontinental, em 1979, contra o Malmö, da Suécia.

Na segunda-feira, acordei cedo para ir ao estádio comprar o ingresso para o jogo de quarta-feira às 20h45, horário local – 21h45 em Belo Horizonte –, mas o porteiro do estádio Dr. Nicolás Leoz, onde é a sede do Libertad, disse que “la venta de entradas es solamente el miércoles, dos horas antes del partido”. Perguntei se não havia problema de esgotar, se não haveria muita fila, se não seria perigoso, se… “No, no, Libertad no tiene hinchada”.

Um de seus torcedores mais famosos é o ex-presidente da Conmebol que dá nome ao estádio, o Nicolás Leoz Almirón (1928), que assumiu o cargo em 1986 e se afastou em 2013. Ou seja, presidiu a confederação sul-americana de futebol por quase trinta anos, mas renunciou devido às denúncias de corrupção dirigidas não só a ele, mas a toda a cúpula. Hoje, o ex-dirigente está sendo investigado pela justiça norte-americana por corrupção, suborno, fraude e lavagem de dinheiro, como amplamente divulgado pela imprensa internacional. Só de assumir um cargo deste porte por décadas, já é o suficiente para se desconfiar de sua postura. Mas, infelizmente, é uma prática corriqueira no meio futebolístico. Para se ter ideia, a Conmebol é a mais antiga organização continental de futebol do mundo, já centenária, fundada em 1916 por Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. No entanto, somente nove presidentes a dirigiram até o afastamento do paraguaio. Antes dele, o peruano Teófilo Salinas Fuller esteve no cargo durante vinte anos. Isso não parece nada saudável para um esporte da grandeza do futebol.

Na terça-feira, eu visitei a Confederação Sul-Americana de Futebol, a Conmebol, sediada em Luque, perto do aeroporto internacional, há quase três décadas, quando se decidiu estabelecer a sede permanente no Paraguai. As administrações anteriores se sucediam de acordo com a nacionalidade do presidente eleito. No local, de 40 hectares – como informado no site da instituição – há, além da sede administrativa, um hotel, um centro de convenções e um museu com três salões, fundado em 2009.

Conmebol SEDE Assunção
Confederação Sul-americana de Futebol (Conmebol), Luque, Paraguai. Fotografia: PeDRa LeTRa.

A primeira sala do memorial conta com um totem para cada ano de edição da Copa Libertadores, onde são exibidos vídeos dos gols das finais, além de apresentar informações básicas dessa competição entre os anos de 1960 e 2012. Ou seja, o Galo ainda não consta da listagem de campeões do museu. É frustrante, pois a atualização dos dados é um fator absolutamente previsível. No centro da sala, há outras plataformas que reúnem todas as outras competições clubísticas organizada pela entidade – Recopa, Supercopa, Conmebol, Sul-America etc. A segunda sala aborda alguns aspectos do futebol e da cultura de cada uma das dez federações filiadas – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Venezuela e Uruguai –, trazendo informações preciosas, como por exemplo, o número de clubes de futebol que cada país tem registrado junto à entidade, mas tudo ainda muito aquém de sua real potência, sobretudo quando nos lembramos da riqueza monetária e cultural que circula na Conmebol. Por fim, na terceira sala, que do exterior do museu dá a se ver uma enorme bola de futebol, projeta-se um vídeo de quinze minutos contando a história desse esporte e sua chegada à América Latina, primeiramente na Argentina.

Museo del fútbol (Conmbol)
Museu da Conmebol, Luque, Paraguai. Fotografia: PeDRa LeTRa.

Sem dúvida, é um dos melhores espaços memorialísticos do futebol da América Latina, mais pela imponência e singularidade arquitetônica do que pelo conteúdo disponibilizado. A ausência do futebol feminino em todo o museu, por exemplo, é um aspecto decepcionante, desrespeitoso e inexplicável, demonstrando a dificuldade histórica da instituição de acolhimento da mulher e seu papel no futebol.

Ao final, ganhei um livro de quase seiscentas páginas que conta a história da entidade e das competições organizadas por ela. Acontecimento raro, pois tal objeto, com exceção do Museu de Futebol de São Paulo, no Pacaembu, praticamente inexiste pelas quase duas dezenas de museus de futebol visitadas por mim nos últimos três anos pela América do Sul – em outro momento abordarei o assunto mais detidamente.

 

Fred 4 a 2 Sport Boys

La realidad del mundo, de un ser humano, es esencialmente fragmentaria. Los relatos tratan de contar una historia en fragmentos
Augustos Roa Bastos

Semana passada, o Galo goleou o Sport Boys da Bolívia por 5 a 2 no Horto, com 4 gols do Fred. Se olharmos apenas os números da partida, foi um jogo fácil, com supremacia absoluta do time mineiro. Chutes a gol: 18 x 4; Posse de bola: 64% x 36%; Passes: 462 x 214; Efetividade de passes: 95% x 83%; Faltas: 9 x 22. No entanto, futebol não é só número. O jogo, que logo de início se desenhou a vitória com facilidade, não foi bem assim. Robinho marcou primeiro, logo aos quatro minutos, mas os bolivianos empataram logo em seguida, aos dez minutos, o estádio Independência ficou calado, meio tenso. O pessoal estava xingando. O Luan, esperança, saiu do time, novamente contundido. Entrou o Cazares que não estava bem, como todo o time. Marcos Rocha reclamando o tempo todo com o juiz, Fábio Santos estava nervoso. Fomos para o vestiário com o empate.

A charanga do Galo não esteve presente, pois a Galoucura foi proibida pela justiça de entrar com seus instrumentos musicais, faixas e bandeiras nos estádios. A medida é uma forma de punição por infrações ocorridas dentro e fora do estádio no último clássico mineiro, no dia 1º de abril. O silêncio, então, tornou-se sepulcral, pois, além desse motivo, a maioria das pessoas que agora ali frequenta, com o preço exorbitante dos ingressos, é pouco tolerante com os jogadores e o técnico, com o placar, com o outro, de maneira geral. Essas pessoas não conseguem ver nada além de si mesmas e se calarão na hora em que o time precisar. Abandonarão o Atlético, pois os tempos de trevas virão, podem ter certeza, e eles não estarão preparados. O Independência não tem mais cheiro de cerveja, de tropeiro, de suor, de gente… O cheiro agora é só de perfume, francês.

O time voltou para o segundo tempo ainda pior. Estava tenso-estranho. Tudo muito estranho, tenso. A torcida começou a vaiar. Uma torcida impaciente. Um público chato, careta, covarde. Ninguém conseguia detectar os erros com muita clareza. “Por que o time está assim, meu Deus?”, ouvi uma criança clamando. Não tinha ninguém jogando muito mal, ou melhor, ninguém destoando demais. Uma parte da torcida começou a chamar o Roger de burro. Mas não era ele. Sobrou também para o Giovanni, para o Gabriel, para Fábio Santos, para o Carioca, mas… Tudo estava muito estranho, fora do padrão, fora da curva, fora de lugar.

O Otero estava tão escondido que mal percebíamos que era ele quem deveria deixar o time, saberíamos mais tarde, pois o treinador viu e o sacou, enfiando o Rafael Moura lá na frente, com o objetivo de puxar a marcação dos bolivianos, juntamente com os outros atacantes. Assim, o meio de campo do adversário se abriu, criando mais espaços para o Galo articular melhor as jogadas, dominando também os rebotes na intermediária adversária. Parece que foi isso que ocorreu. Depois dos vinte e cinco minutos, os mineiros começaram a chutar a gol e o Fred apareceu de vez. Hoje, ele é o atacante com maior média de gols de todos os campeonatos pelo mundo afora.

Diante disso tudo, o que me chamou e vem me chamando mais a atenção, é a desconfiança e a hostilidade dirigidas ao Fred por parte de muitos torcedores desde que ele se integrou ao plantel em junho do ano passado. No entanto, neste jogo foi o ápice dessas demonstrações de afeto. Antes do início da partida, momento em que os torcedores ovacionam cada um dos jogadores, quando chegou a vez de entoar o nome do Fred, a torcida não soube o que cantar, ou não quis saber… “Êêê-ô, êê-ô, o Fred é o terrô!”, cantavam uns, “Êêê-ô, êê-ô, o Fred é matado!”, cantavam outros. Sem falar dos milhares que se calaram. E quando o cara meteu um, dois, três, quatro gols, não houve nenhuma manifestação especial. IN-CRÍ-VEL!

Acredito que muito disso se deve por causa da violentíssima falta, seguida de expulsão, cometida por Fred no jogador do Cruzeiro poucos dias antes do jogo contra os bolivianos. Ainda no primeiro tempo, o atacante deixou o Atlético com dez jogadores e o placar final foi 2 a 1 para os cruzeirenses. A falta foi grave e bruta? De certo, foi. Mas vai saber o que se passou entre os jogadores envolvidos no lance. O Fred sempre é bastante caçado dentro de campo. Portanto, é muito difícil julgar. Mas a torcida parece não perceber isso. Não vê, não quer ver, ou sei lá o quê. Ela preferiu se “vingar” do atacante por ele ter sido expulso e suspenso por quatro partidas do campeonato, só podendo voltar para a finalíssima, caso o time vença a URT pelas semifinais. Ainda assim, é praticamente certo que ele será o artilheiro do Mineiro, pois está com quatro gols a mais do que o segundo colocado na tabela de artilharia, além de ser um dos principais goleadores da Libertadores deste ano.

Para os que parecem não entender de futebol, conversem com os torcedores do Fluminense para saber quem é o Fred. Por lá, ele ganhou dois campeonatos brasileiros, foi capitão e é o terceiro maior goleador da história do clube. Já foi artilheiro do Brasileirão por três vezes, inclusive ano passado pelo Galo. Fred já assumiu a artilharia da era dos pontos corridos do Brasileirão e está a pouquíssimos gols de se tornar o segundo maior artilheiro dessa competição, ultrapassando Edmundo e Romário. Ah!, e o cara já disputou duas copas do mundo, 2006 e 2014. O que mais a torcida quer?

Fred do Atlético Mineiro e Gustavo
Dom Fredón e Gustavo Cerqueira, Mendoza, Argentina. Fotografia: PeDRa LeTRa.

 

Só mais uma ponderação, uma pergunta: qual é o melhor centroavante que o Atlético teve nas últimas décadas melhor que o Fred?, talvez só o Tardelli, quando exerceu essa função em 2009, terminando a temporada com 42 gols, sendo o principal artilheiro do Brasil. Fred é bem melhor do que Gérson, Renaldo (Renaldo, não Reinaldo), Guilherme, Valdir, Marinho, Vanderlei, Obina, Jô e Lucas Pratto. Respeitem o cara, pessoal. Ele é daqui. Ele não veio para Belo Horizonte atrás de dinheiro. Ele está na casa dele. Ele é nosso! Respeitem a alteridade. Respeitem o outro. Respeitem o nosso artilheiro, que por sinal não te faz mal algum. Para quê, então, ficar destilando tanto ódio? Amo tudo que em mim não há. Como é bom estar vivo e vê-lo jogar. Amo o Fred.

Enfim, logo mais à noite precisaremos muito do Fred. No mínimo, parado, ele segura dois marcadores. Hoje, não se espera um jogo fácil contra o Libertad, pois eles empataram o jogo de estreia fora contra o Sport Boys, na Bolívia, mas perdeu em casa na segunda rodada para o Godoy Cruz. Os paraguaios farão um jogo de vida ou morte contra nosotros, El Minero, pois, se perderem, as chances de classificação se tornam muito remotas. Para tanto, o Galão da Massa, vem para a batalha da seguinte forma: Giovanni; Marcos Rocha, Léo Silva, Gabriel e Fábio Santos; Rafael Carioca, Elias, Otero e Danilo; Robinho e Fred. E os suplentes são: Uilson, Carlos César, Felipe Santana, Adilson, Cazares, Rafael Moura e Maicosuel.

Ôôôôôôôôôôô-ôôô!, vai pra cima deles, Galô!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gustavo Cerqueira Guimarães

Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. É graduado em Psicologia e Letras pela PUC-Minas. Autor dos livros de poesia Língua (2004) e Guerra (inédito). Desenvolveu pesquisa de pós-doutorado, PNPD-CAPES (2013-2018), sobre a relação do futebol com as artes na Faculdade de Letras da UFMG. Atualmente, é editor da revista FuLiA / UFMG

Como citar

GUIMARãES, Gustavo Cerqueira. “Me encanta todo lo que en mí no hay”: amo o Fred até do Paraguai. Ludopédio, São Paulo, v. 94, n. 21, 2017.
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