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Ensinando a transgredir

Maurício Rodrigues Pinto 21 de julho de 2022

A violência e a hostilidade dirigidas direta e indiretamente à figura de Richarlyson, ao longo de sua carreira, ajudam a compreender a dificuldade de se romper a norma regulatória da masculinidade hegemônica que talvez se constitua no maior tabu do futebol brasileiro, assim como a sua reiteração não vem de um único lugar, mas é realizada por múltiplos atores no decorrer do tempo.

Por outro lado, a visibilidade obtida pelo jogador e a resistência, mesmo diante de tantas dificuldades e questionamentos, possibilita reconhecer que a sua trajetória é marcada também por recusas em se conformar a um padrão normativo dos boleiros. Richarlyson pode ser considerado um transgressor da bola, porque enfrentou tais preconceitos, para poder exercer plenamente a atividade que sempre quis desempenhar, além de mostrar que o futebol não precisa (e nem deve) ser reduto para restritas expressões de masculinidade. (PINTO, 2018)

O título deste ensaio,[1] depois de muita indecisão, faz uma alusão deliberada ao título de um livro de autoria de bell hooks, professora e uma das principais teóricas do feminismo negro estadunidense. Em Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade, hooks se dirige, em especial, a profissionais da educação, tratando de diversos aspectos de uma prática pedagógica comprometida com a liberdade. Na conclusão da introdução, quando ela fala sobre os objetivos dos ensaios que compõem o livro, hooks diz: 

Pedindo a todos que abram a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável, para pensar e repensar, para criar novas visões, celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento contra as fronteiras e para além delas. É esse o movimento que transforma a educação na prática de liberdade. (hooks, 2017, p. 24)

Em abril de 2018, inaugurava a coluna “Masculinidades em jogo”, aqui no Ludopédio, com o texto que intitulei Richarlyson, um transgressor da bola. O ensaio era uma adaptação de uma seção da minha dissertação de mestrado (PINTO, 2017), em que buscava entender, analisar a visibilidade midiática dedicada ao então atleta Richarlyson e como esta tinha contribuído para fomentar o escrutínio e a violência que eram dirigidas a ele, por supostamente performar uma masculinidade que não era considerada totalmente legível dentro do universo do futebol masculino espetacularizado. Preocupava-me naquele momento em não repetir as especulações acerca da subjetividade de Richarlyson, mas tentar entender o aparato discursivo que era mobilizado para exacerbar o que era lido como uma diferença do jogador em relação às expectativas cisheteronormativas deste universo. Além disso, considerava importante destacar que mesmo tendo enfrentado inúmeros preconceitos, Richarlyson construiu uma bela e vitoriosa carreira no futebol,  e, como disse à época na conclusão daquele texto, fez também questão de mostrar que o futebol não precisa e tampouco deve ser um espaço para restritas expressões de masculinidades.

Richarlyson
Fonte: reprodução

Cortemos para 2022 e a recente entrevista que o hoje ex-jogador e atual comentarista dos canais Globo concedeu para o primeiro episódio de “Nos armários dos vestiários”, um podcast do Globo Esporte (GE), apresentado por Joanna de Assis e William de Lucca. A entrevista acabou ganhando maior repercussão, pelo fato de Richarlyson ter falado abertamente pela primeira vez de sua bissexualidade. Talvez no afã de repercutir o “furo” obtido ou de simplesmente trazer maior atenção ao lançamento do podcast, o portal GE.com, durante a manhã do dia 24 de junho, estampou na capa do site a imagem de Richarlyson acompanhada da manchete: “Richarlyson declara bissexualidade”, assim cumprindo uma previsão do próprio durante a entrevista concedida:

A vida inteira me perguntaram se sou gay. Eu já me relacionei com homem e já me relacionei com mulher também. Só que aí eu falo hoje aqui e daqui a pouco estará estampada a notícia: “Richarlyson é bissexual”. E o meme já vem pronto. Dirão: “Nossa, mas jura? Eu nem imaginava”. (…)  Vai pintar uma manchete que o Richarlyson falou em um podcast que é bissexual. Legal. E aí vai chover de reportagens, e o mais importante, que é pauta, não vai mudar, que é a questão da homofobia. Infelizmente, o mundo não está preparado para ter essa discussão e lidar com naturalidade com isso” (ASSIS, 2022)

De fato, tal declaração se faz histórica, dado o machismo e a LGBTIfobia que ainda caracterizam o futebol no Brasil, em especial no futebol masculino profissional. Ganha peso por se tratar do primeiro jogador de futebol dessa categoria no país, com passagens por times da série A e pela seleção brasileira de futebol, a se declarar publicamente como não heterossexual.[2] Mais do que isso, a fala de Richarlyson contribui para ampliar a visibilidade de pessoas bissexuais, sobretudo no campo esportivo, que ainda sofrem com preconceitos e incompreensões acerca da sua orientação sexual por conta do dispositivo da heterossexualidade compulsória. Mas tal como a manchete do GE.com, o foco central no fato de Richarlyson ter dado essa declaração, tornado pública a sua “saída do armário”- parece ter como efeito resumir e até definir o seu pensamento e trajetória como futebolista e, agora, como comentarista à sua orientação sexual, algo que ele teve de lidar durante a maior parte de sua carreira dentro do campo. 

Ao longo da edição feita para o episódio do podcast e mesmo na reportagem que trata da entrevista e que transcreve algumas das falas de Richarlyson, fica evidente que são abordados na conversa diversos assuntos e que ele faz uma abrangente reflexão sobre a LGBTIfobia na sociedade e no contexto futebolístico brasileiro, ao comentar sobre diversas ocasiões em que percebeu que a sua imagem era alvo de hostilidades e ridicularizações. Ele cita diversas ocasiões em que se viu como tema de pautas sensacionalistas por parte da mídia esportiva, que especulavam acerca de sua sexualidade ou faziam piada de sua performance e expressão de gênero. Essas especulações se fortaleceram depois do episódio no qual um juiz, em primeira instância, arquivou uma queixa-crime que Richarlyson moveu contra um dirigente palmeirense, em 2007, que afirmou, em um programa televisivo, que o então jogador do São Paulo era homossexual. O argumento usado pelo juiz para embasar a sua decisão era que o futebol era um jogo para homens heterossexuais e que a presença de homens gays acarretaria em constrangimentos. Caso homossexuais quisessem seguir jogando bola, deveriam criar uma liga ou times exclusivos. Ao lembrar desses fatos, Richarlyson pontua de forma bastante contundente que o desrespeito e a violência contidas naquelas “piadas” e caricaturizações pejorativas, difundidas e repercutidas por veículos midiáticos, não afetavam apenas a ele e sua família, mas evidenciavam a LGBTIfobia do universo do futebol masculino, contribuindo, assim, para reforçar estigmas e a abjeção em relação às expressões e subjetividades que eram lidas como dissonantes da cisheteronormatividade.

Eu nunca me privei de ser quem eu sou por causa disso ou daquilo. É claro que houve um momento na minha vida que foi muito mais forte, a questão da declaração do Cirillo [José Cirillo Júnior, ex-dirigente do Palmeiras], em 2007, isso sim me deixou muito triste, porque em nenhum momento eu senti que aquilo era uma coisa normal. Era uma coisa muito pejorativa e isso foi muito ruim não só pra mim. Eu parto do princípio assim: primeiro, ser um homossexual, isso não é demérito pra ninguém, eu já parto desse princípio. Segundo, ser um homossexual no futebol também não deveria ser um assunto tão polêmico quanto é até hoje. Terceiro, se eu fosse homossexual, eu também falaria. Por que? Porque eu acho que essas coisas têm de acontecer de maneira natural e nunca foi tratado de maneira natural, acho que isso que foi um peso maior.

[…]

[comentando sobre LGBTIfobia e o assédio da midia] Eu tô falando de mim, tô falando da minha pessoa, sobre aquilo que eu vivi. O assunto é muito sério e a gente tem que tratar muito sério, mas queira ou não queira, pra minha vida, eu levei de forma leve enquanto eu pude, depois eu tive um grau moderado, até que cheguei o ápice de falar “Não, não quero mais. Não é mais engraçado essas pautas”. Não vou lidar mais com uma coisa que é normal, sendo que não é, porque já começou a saturar… (NOS ARMÁRIOS DOS VESTIÁRIOS, 2022 – transcrição minha)

Richarlyson trata também das repercussões negativas que tal escrutínio trouxe a sua carreira e da pressão que sentia para ter de se mostrar mais bem preparado do que outros jogadores para não perder o seu espaço nos times que jogou, por se sentir mais visado; das múltiplas vezes em que era chamado a contragosto a falar sobre (a sua) sexualidade, enquanto outros atletas, dirigentes, profissionais da mídia podiam existir, exercer suas funções, sem ter que passar por olhares de desconfiança e interrogação sobre quem são e a forma como gostam de se expor e de se relacionar na intimidade e na vida pública.

Passados quatro anos da escrita do artigo publicado neste mesmo espaço, reafirmo que Richarlyson é um transgressor do universo da bola. Não só por mais uma vez se mostrar como uma voz crítica e combativa contra a LGBTIfobia no futebol, como fez em outras circunstâncias, em que pese o pessimismo demonstrado quanto a uma mudança de cultura no futebol e na sociedade brasileira. Richarlyson transgride, entre outras coisas, pelo fato de seguir bancando quem é, mesmo diante de críticas e olhares de reprovação, contrariando expectativas normativas e imagens de controle[3] que ainda recaem tanto sobre boleiros, como em relação a homens negros em um país como o Brasil. E faz isso ao permitir-se relacionar com quem gosta, independente do imperativo de dar declarações e posicionamentos públicos:

Eu sempre fui eu. Queria mostrar para as pessoas que independentemente do que elas falassem, eu iria viver a minha vida, faria o que me desse prazer, [seja] brincando de peteca, jogando vôlei, [ou] colocar uma braque rosa no vôlei. (ASSIS, 2022) 

Ricky transgride também ao não cair na fórmula fácil de aceitar ser um herói, símbolo individual de uma causa, chamando a atenção para a responsabilidade de todes no enfrentamento do problema da LGBTIfobia na sociedade e nos esportes. Ao mesmo tempo em que diz levantar bandeira, sem desejar fazê-lo, ele faz cobranças importantes por posicionamentos e ações concretas por parte de instituições ligadas ao futebol, de atletas, dirigentes e torcedories que se dizem aliades, para a construção de ambientes futebolísticos mais inclusivos e acolhedores a pessoas LGBTI+.

Os próprios jogadores têm que se posicionar melhor sobre a situação, especialmente os héteros. Não é questão de vestir a camisa com um arco-íris. É quando acontecer essa situação de homofobia, sair de campo. “Espera aí, a torcida não está respeitando o meu companheiro ou meu adversário como ser humano? Então, eu não vou voltar a jogar”. (ASSIS, 2022)

richarlyson
Fonte: Reprodução/SporTV

Se novamente escrevo sobre Richarlyson (talvez, correndo o risco de, mais uma vez, associar o seu nome e imagem a um tema ao qual preferisse não ser mencionado), o faço com um duplo propósito: o de externar a minha admiração pelo atleta, profissional e ser humano que é, e para manifestar o meu desejo para que essa declaração pública não venha representar um impedimento ao exercício pleno da liberdade de fazer o que gosta. Que ele possa seguir sua vida, de acordo com as suas próprias vontades e escolhas, sem ter que lidar com situações de constrangimento e hostilidade. Aliás, que o respeito ao exercício da liberdade de ser quem é, possa vir a ser uma premissa básica para a convivência em todas as esferas da vida, inclusive nos futebóis. Creio que este seja um objetivo que deva ser perseguido por todes que gostam e visualizem ambientes futebolísticos inclusivos e acolhedores para todas as pessoas. 

Permitindo-me a fazer mais uma alusão a grande pensadora bell hooks, concluo este ensaio acreditando que além de transgressora, a trajetória de Richarlyson pode ser considerada educadora, por nos convidar também a (re)pensar a maneira como entendemos o futebol e por abrir possibilidades para uma maior humanização deste universo.

Notas

[1] Registro o agradecimento a Caroline Soares de Almeida, pela gentil e atenta leitura prévia que fez deste texto.

[2] Em 2010, Jamerson Michel da Costa, o Messi, ficou conhecido nacionalmente por ser o primeiro jogador de futebol profissional em atividade da história do futebol brasileiro a se declarar publicamente homossexual. Messi atuou como goleiro, tendo passagens por equipes do futebol do Rio Grande do Norte, como o Palmeira de Goianinha e o Alecrim (KNEIPP, 2010).

[3] Alusão ao conceito formulado pela socióloga estadunidense Patricia Hill-Collins (2020), uma das expoentes do pensamento feminista negro

Referências

ASSIS, Joanna de. Pelo direito de ser quem é: Richarlyson declara bissexualidade em podcast inédito sobre homofobia no futebol. GE.com, 24/06/2022. 

hooks, bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.

KNEIPP, Mariana. Goleiro assume homossexualidade e enfrenta preconceito no interior do RN. GE.com, 08/10/2010.

NOS ARMÁRIOS DOS VESTIÁRIOS: Não pergunte, não fale. Apresentação e Entrevista: Joanna de Assis e William de Lucca. GE, Feel the Match, 24/06/2022. Podcast. 

PINTO, Maurício Rodrigues. Richarlyson, um transgressor da bola. Ludopédio, São Paulo, v. 106, n. 20, 2018.

______ . Pelo direito de torcer: das torcidas gays aos movimentos de torcedores contrários ao machismo e à homofobia no futebol. Dissertação (Mestrado em Mudança Social e Participação Política) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Rodrigues Pinto

Bacharel em História, pela Universidade de São Paulo (USP, com especialização em Sociopsicologia, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e mestre pelo programa interdisciplinar Mudança Social e Participação Política, da USP. Corinthiano, no seu mestrado pesquisou masculinidades e a atuação de movimentos de torcedorxs contrários à homofobia e ao machismo no futebol brasileiro. Integrou o coletivo HLGBT (Histórias de Vida LGBT) e participou do projeto que resultou no livro “Histórias de Todas as Cores: Memórias Ilustradas LGBT”, projeto selecionado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (ProaC), no edital de Promoção das Manifestações Culturais com Temática LGBT.

Como citar

PINTO, Maurício Rodrigues. Ensinando a transgredir. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 22, 2022.
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