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Entre a razão e a paixão: o futebol como meio de reflexão sobre posicionamentos conflitantes de uma sociedade exaltada

A observação da realidade brasileira nos dias atuais mostra, dentre diversas características, uma recente (mas não inédita) exacerbação dos embates políticos entre as pessoas de nosso país. Em decorrência disso, tornou-se comum que um considerável número de analistas aproximem o cenário atual do debate político nacional às oposições frequentemente observadas na seara esportiva, mais precisamente àquelas encontradas no futebol.

Reconhecido como um esporte capaz de mobilizar sentimentos apaixonados de seus apreciadores, o futebol no Brasil é historicamente um terreno fértil para debates acalorados, nos quais, muitas das vezes, a razão acaba ficando em segundo plano. Ganha destaque, assim, um modo de expressão do torcer calcado em uma profunda identidade entre o torcedor e seu clube do coração. Mais do que um apoiador, esse indivíduo passa a se ver como parte integrante do clube para o qual ele torce. Dessa forma, qualquer abordagem negativa sobre seu time é passível de ser percebida como uma ofensa a esse próprio torcedor, que, em muitos casos, passa a defender seu clube sem se importar com as questões éticas e/ou morais relacionadas às suas ações.

Neste texto, trabalharemos com algumas situações em que a manifestação ou a defesa apaixonada de um determinado clube acabou por ferir princípios morais básicos de nossa sociedade, além de mostrar como essas situações guardam proximidades com fatos recorrentes em outras esferas da vida social. Tendo em vista a nossa localização geográfica, tomaremos por base três acontecimentos ocorridos no estado de Minas Gerais, envolvendo seus dois principais clubes de futebol. Adotando a cronologia do mais antigo para o mais recente, trataremos, de modo inicial, sobre o caso relativo à condenação por estupro do atacante Robinho, em novembro de 2017, quando o jogador ainda atuava pelo Atlético Mineiro.

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Robinho. Foto: Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro.

Após a divulgação da sentença condenatória ao jogador, emitida pela justiça italiana, houve uma divisão entre os posicionamentos da torcida do Galo. Para além do silêncio de grande parte dos torcedores do clube – em consonância com a atitude da própria diretoria do Atlético –, duas formas de manifestação entraram em conflito: enquanto parte da torcida se posicionou pela saída do jogador e condenou a falta de atitude dos representantes do clube perante essa situação, outra parcela optou por desmerecer a importância de se posicionar sobre o ocorrido e divulgou conteúdo jocoso e preconceituoso sobre o fato. De forma mais extrema, houve até mesmo torcedores que atuaram reprimindo e ameaçando o grupo que se colocou contra as atitudes do jogador e do clube, como mostrado em notícia divulgada pelo portal de esportes do Estadão[1].

Tal como no cenário da política institucional, a situação mostrada revela uma cisão entre os posicionamentos de pessoas pertencentes a um mesmo grupo social (torcedores de um clube ou cidadãos de um determinado país), algo normal e desejável em sistemas políticos democráticos. Cabe destacar, entretanto, que essa divergência no pensar se torna problemática ao analisarmos alguns elementos que a sustentaram.

Guardado o direito das pessoas de se posicionarem contra ou favoráveis ao jogador – por ter sido uma condenação em primeira instância, é possível que a sentença seja modificada e a inocência seja provada –, é preocupante notar que, em um país que apresenta 164 casos registrados de estupro por dia[2], a notícia da condenação de um importante jogador de futebol por esse crime vire motivo de brincadeira por parte de seus torcedores. Mais do que isso: na intenção de “proteger” a imagem do clube a que pertencem, alguns torcedores se sentem no direito de ameaçar seus pares que se indignam e cobram um posicionamento da diretoria sobre a situação.

Em outras palavras, é possível dizer que na busca por defender um símbolo de identidade, alguns torcedores acabam por fechar os olhos para a importância do que se está sendo colocado em discussão, adotando uma postura passional perante o ocorrido. De maneira análoga, podemos ver essa situação em outros campos da sociedade. Pegando-se discussões político-partidárias, vemos indivíduos tanto de esquerda, quanto de direita, que não visualizam falhas cometidas por políticos aliados a cada um desses espectros ideológicos. Como consequência, os erros cometidos deixam de ser discutidos e, conversas que poderiam servir para traçar caminhos para a construção de um lugar melhor para se viver, acabam se tornando campos de batalhas verbais, onde ficam em evidência posicionamentos que objetivam comprovar uma suposta infalibilidade de um ou de outro ponto de vista.

dualidade de manifestações da torcida do Atlético Mineiro perante a condenação por estupro do jogar Robinho, pela justiça italiana

Seguindo com as reflexões acerca de acontecimentos do meio futebolístico, podemos citar, também, a negociação que culminou na saída do jogador Fred do Atlético Mineiro e sua chegada na equipe do Cruzeiro. No contrato de desligamento desse atleta com sua antiga equipe ficou previsto que, se houvesse sua contratação imediata pelo time rival, o jogador deveria pagar uma multa ao Galo no valor de 10 milhões de reais. Durante as negociações entre Fred e Cruzeiro, essa cláusula foi discutida e o clube contratante se comprometeu a arcar com o pagamento dessa multa, a fim de contar os serviços do atacante.

No entanto, efetuada a transação, o Cruzeiro passou a contestar a necessidade de efetivar aquele pagamento. Em comentários de notícias divulgadas na internet sobre o assunto, vários torcedores da equipe azul se manifestaram favoráveis ao não cumprimento do contrato, o que representaria para eles, uma vitória do Cruzeiro sobre seu rival, visto que, além de ter contratado o atacante, teria conseguido fazer isso enganando a diretoria do Atlético e sem dispender de recursos financeiros. Do lado atleticano, por sua vez, diretoria e torcedores condenam a atitude do clube rival e adotam postura favorável ao pagamento da multa.

Vemos, portanto, outro caso em que torcedores e diretoria de um clube, movidos pela paixão e pela tentativa de defender seus interesses, acabam por tomar partido de um posicionamento eticamente contestável. Aceitar e se comprometer a realizar o pagamento de multa imposta por uma cláusula contratual e, em momento posterior, passar a contestar a legalidade do que já era sabido é, no mínimo, uma atitude contraditória. A adoção dessa postura pode ser vista como tendo maior relação com a defesa do clube para o qual se torce, do que com o mérito da questão propriamente dita. Assim como no primeiro caso apresentado, atitudes similares a essa podem ser vistas, também, em outros espaços de nossa dinâmica social.

BELO HORIZONTE / BRASIL (04.02.2018) Fred, no jogo entre Cruzeiro x América-MG, pela quinta rodada do Campeonato Mineiro, no Mineirão, em Belo Horizonte-MG. © Washington Alves/Light Press/Cruzeiro
Fred em partida pelo Cruzeiro após sair do Atlético-MG. Foto: © Washington Alves/Light Press/Cruzeiro.

Por fim, chegamos à terceira e última situação a ser abordada nesse texto, que trata de um fato ocorrido no clássico estadual envolvendo as equipes do Atlético e do Cruzeiro, realizado no dia 16 de setembro de 2018. Disputado no estádio Mineirão, em Belo Horizonte, o referido jogo foi válido pela primeira divisão do Campeonato Brasileiro de Futebol e terminou empatado em 0 a 0. Mesmo com o pouco brilhantismo apresentado dentro de campo, o destaque negativo do jogo acabou vindo de um lamentável acontecimento ocorrido nas arquibancadas.

Em meio aos (infelizmente) já naturalizados cantos homofóbicos que povoam os estádios de futebol, parte dos torcedores do Atlético Mineiro desenvolveram uma nova música com a intenção de provocar a torcida rival. Fazendo menção a um controverso candidato da extrema-direita brasileira, reconhecido por seus posicionamentos preconceituosos e agressivos contra diversos grupos da sociedade, esses torcedores alardearam a possibilidade da vitória desse candidato culminar no genocídio de pessoas homossexuais. Assim, diziam para os cruzeirenses tomarem cuidado porque o referido candidato iria “matar veado”.

Mais uma vez é possível notar como as fronteiras da razão são frequentemente perdidas no futebol. A pretexto de enaltecer uma equipe, de se afirmar como membro de determinado grupo e de demarcar diferenças para com torcedores rivais, houve o rompimento de barreiras daquilo que é estabelecido como sendo valores morais de uma sociedade, através de atitudes que escapam às condutas éticas.

Em muitos casos, tal como o mostrado acima, essa transgressão do que é moral vem acompanhada da incitação de atitudes violentas contra populações vistas como diferentes. É sabido que no meio do futebol a instrumentalização da violência por vias simbólicas se configura como algo recorrente nas arquibancadas, não sendo uma novidade do contexto atual. Nesses espaços impera uma lógica pautada em um ideal de masculinidade, fazendo com que as atitudes dos torcedores acabem sendo regidas por uma certa imposição para que todo homem se sinta no “dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade”, sendo esta entendida como sua “capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência” (BOURDIEU, 2012, p. 64). A reprodução dessa lógica pode explicar a presença dos cânticos homofóbicos de uma torcida para com seus rivais.

No entanto, o caso em questão apresenta um ponto que extrapola esse costume já tristemente enraizado no futebol brasileiro. O cântico mencionado reproduz, naturaliza e aprova a postura intolerante e preconceituosa adotada por um candidato a presidência da república. Rompe, portanto, com os valores de tolerância, pacificação e respeito que deveriam ser esperados de um chefe de Estado na medida em que, se adotarmos um entendimento aristotélico sobre a política, nos depararemos com a finalidade última do Estado em construir caminhos para a educação moral de seus cidadãos (busca da virtude).

Por outro lado, não podemos deixar de mencionar a repercussão desse fato entre os próprios torcedores do Atlético. Em contraposição àqueles que entendem a paixão clubística como uma justificativa para a reprodução de posturas intolerantes que ultrapassam as fronteiras do futebol, muitos torcedores do clube se colocaram contra a atitude da parcela da torcida que entoou o referido canto, exigindo um posicionamento imediato do Atlético sobre o assunto.

Devido às proporções atingidas pelo fato, que passou a ser noticiado por vários veículos de comunicação do Brasil, o Atlético soltou uma nota ainda no dia do jogo repudiando as ações preconceituosas de parte de seus torcedores. Nesse comunicado, o clube procurou expressar suas raízes populares e democráticas, além de ter se colocado contra qualquer tipo de atitude discriminatória. Muito embora tal atitude tenha recebido críticas de algumas pessoas que desejavam a efetivação de uma ação mais representativa acerca do ocorrido, foi um bom começo para a diretoria que há menos de um ano atrás se calou sobre o caso de estupro envolvendo um de seus principais jogadores.

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Torcedores do Atlético-MG durante a partida contra o Cruzeiro. Foto: Pedro Souza/Clube Atlético Mineiro.

Finalmente, cabe destacar que os exemplos citados e as questões abordadas sobre cada uma das situações trabalhadas aqui são apenas parte de uma problemática que se revela como algo maior e mais complexo. O entendimento do futebol como um artefato cultural faz com que esse esporte atue como um elemento capaz de reproduzir modelos de condutas e contradições presentes na sociedade, ao mesmo tempo em que se configura como um espaço com potencial de promover reflexões e construir caminhos para a superação de problemas.

Com nosso país imerso em um cenário conturbado em suas relações políticas e sociais, temos nos deparado com a abertura de espaço para posicionamentos e posturas intolerantes e de radicalismo, vindas de diferentes segmentos da sociedade. O futebol se configura como mais um desses espaços e, por essa razão, é preciso que todas as pessoas que atuam com esse esporte tenham consciência de seu papel na luta pela superação de situações excludentes, violentas e preconceituosas ocorridas nesse meio.

Imprensa, jogadores, clubes, federações, torcedores e todos os demais profissionais envolvidos com o futebol devem estar atentos às diversas formas de manifestação da violência nesse esporte. Acreditamos que, devido à representatividade social carregada pelo futebol, bem como pelas paixões que ele mobiliza, as reflexões acerca de ações ocorridas em seu interior têm potencial de mobilizar a adoção de posturas diferentes por parte dos indivíduos que estão com ele envolvidos.

Nesse sentido, ver posicionamentos de lideranças de torcidas organizadas contra o voto em um candidato com discursos abertamente preconceituosos e ofensivos a diversos grupos sociais minoritários, pode representar um belo começo para que o futebol atue como um agente importante na defesa da sociedade brasileira contra a institucionalização do radicalismo e do preconceito, fato esse que poderia se efetivar pela chegada do referido candidato ao comando do poder executivo nacional.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 11ª edição, 2012. 160p.

 

G1 PORTAL DE NOTÍCIAS. Brasil registra 164 casos de estupro por dia em 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/08/10/brasil-registra-164-casos-de-estupro-por-dia-em-2017.ghtml>. Acessado em 24/09/2018.

PORTAL DE ESPORTES ESTADÃO. Torcedoras do Atlético-MG são ameaçadas após cobrarem posicionamento contra Robinho. Disponível em: < https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,torcedoras-do-atletico-mg-sao-ameacadas-apos-cobrarem-posicionamento-contra-robinho,70002111066>. Acessado em 24/09/2018.

PORTAL TERRA. Torcedoras pedem saída de Robinho após condenação na Justiça. Disponível em: <https://www.terra.com.br/esportes/lance/torcedoras-do-galo-pedem-fim-do-contrato-de-robinho-com-atletico-mg,665808029c56cf0cdad20ef699acde7ba5t39auy.html>. Acessado em 24/09/2018.

VOZ DO GALO – FACEBOOK. Único abuso que o Robinho cometeu na vida!. Disponível em: < https://www.facebook.com/vozdogalo/photos/a.368537359901503/1543320782423149/?type=3&theater>. Acessado em 24/09/2018.


[1] Notícia veiculada no dia 07 de dezembro de 2017, disponível no link a seguir:

https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,torcedoras-do-atletico-mg-sao-ameacadas-apos-cobrarem-posicionamento-contra-robinho,70002111066

[2] Informação procedente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada pelo portal de notícias G1, em 10 de agosto de 2018, através do link: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/08/10/brasil-registra-164-casos-de-estupro-por-dia-em-2017.ghtml

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mauro Lúcio Maciel Júnior

Bacharel em Educação Física - UFMG; Mestrando em Estudos do Lazer - UFMG; Membro do GEFuT - UFMG; Membro do Oricolé - UFMG; Editor Júnior da Revista Licere - UFMG.

Flávia Cristina Soares

Realiza estágio de pós-doutoramento Interdisciplinar em Estudos do Lazer na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora e Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Gestão Social pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro (2010). Formação em Psicanálise pelo Instituto de Psicanálise e Saúde Mental. Coordena o curso de pós-graduação em "Esporte e Sociedade: perspectivas interdisciplinares" da UNESAV; Professora de "Psicossomática", "Teorias e Técnicas de grupo" e "Psicologia aplicada à Saúde" pela Faculdade Pitágoras. Participante do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas de Esporte e Lazer (NeoPolis) na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO) da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar

MACIEL JúNIOR, Mauro Lúcio; SOARES, Flávia Cristina. Entre a razão e a paixão: o futebol como meio de reflexão sobre posicionamentos conflitantes de uma sociedade exaltada. Ludopédio, São Paulo, v. 111, n. 27, 2018.
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