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Entre copas vendidas e bodes expiatórios: uma crônica do Brasil ontem e hoje

Túlio Fernando Mendanha 10 de agosto de 2021

Para o imaginário social brasileiro só há uma coisa pior que ficar em último; ficar em segundo. Tirando a série A do brasileirão, em qualquer outra competição que ficarmos em último colocado, pouquíssima gente da bola. Pelo contrário, o assunto vira papo descontraído em boteco, motivo de risadas em almoço e churrasco de família. Nota de página em jornal de grande circulação: fulano ficou em última colocação no campeonato de sinuca. Rimos, fazemos zoeira, atolamo-nos em memes: “que bicho burro. Nunca deve ter jogado campeonato valendo leitoa no boteco do Mauro copo sujo”. Alguns até sentem orgulho: sicrano é o último colocado no aberto de tênis. “Também pudera. Tênis é jogo de playboy. Esporte de bacana”.

Quando o Brasil fica entre os últimos colocados em quadros de medalhas por exemplo, alguns gatos pingados ruminam excertos sobre falta de incentivo, corrupção nos esportes. Falta de apoio governamental. Mas o assunto morre logo. De repente ninguém se lembra. Todo mundo preocupado com o preço do arroz e da carne (e com muita razão diga-si di passagi). Mas, senhoras e senhores (es). Um segundo lugar é imperdoável. Estão aí os vascaínos que não me deixam mentir (eu morro de rir, já que o fogão sempre está entre os últimos mesmo). A fórmula é simples: ficou em segundo, não presta! Olha o Felipe Massa, o Barrichello então. Mas o texto não é sobre fórmula 1, esporte que para muitos que conheço morreu junto com Ayrton Senna por não termos nenhum campeão desde então. No caso do futebol é algo terrível. Vice-campeão? Cadê o bode expiatório? Alguém se lembra do vice-campeão brasileiro de 2018?

Na final da copa de 50, o maracanaço caiu nas costas de Barbosa, e em nome do bode expiatório nacional esqueceram de toda sua trajetória como atleta. Barbosa morreu como o goleiro que frangou na final. Em 2014 choveram fake News (a nova mania nacional) sobre investigações do FBI que comprovavam em letras garrafais aos moldes dos tabloides britânicos: O BRASIL VENDEU A COPA PARA A ALEMANHA EM UM GRANDE ESQUEMA DE CORRUPÇÃO. Mas essa temática não era nova. Eu vi ela nascer e florescer em 1998. Como que uma seleção com tantos talentos me toma 3 na final? Simples, venderam a copa.

Brasil Alemanha 2014
Jogadores após jogo do Brasil contra a Alemanha semifinal da copa do mundo, 08 de Julho 2014. Foto: Bruno Domingos / Mowa Press

Duas coisas precisam ser ditas sobre aquele jogo. Primeira; venceu o melhor time, ganhou o time mais organizado taticamente, psicologicamente mais preparado e mais “inteiro” defensivamente. Lilian Thuram engoliu nosso lado esquerdo, Desaily e Le Boef trabalharam tão bem que o arqueiro Fabien Barthez praticamente não fez uma defesa, salvo um chute de Ronaldo que, sem querer tirar os méritos do goleiro careca, foi em cima dele. Zidane, o senhor Spock do futebol (assim apelidado por um colunista da revista Bula), jogou de terno como de costume. É fato que, apesar de tantos talentos naquela seleção Brasileira, a francesa era melhor. Ou pelo menos jogou muito, mais muito melhor.

Segundo tópico; lembro-me que na época, eu, um desconsolado garoto de 11 anos de idade via muita gente inconsolável, que gritava aos quatro ventos: esse jogo foi vendido. Bem, revendo a partida hoje, percebe-se claramente que 3 a 0 dos le bleus contra os canarinhos de Zagalo ficaram muito barato:  Guivarch, atacante contestadíssimo com razão, perdeu ao menos dois gols que Deivid ou Fábio caça rato (aqui incluído pela beleza do apelido) fariam com a perna ruim.

Christophe Dugarry repetiu o feito no segundo tempo e, em uma finalização que peladeiro de fim de semana nenhum conseguiria fazer, conseguiu jogar a redonda quase na bandeirinha de escanteio diante de um Taffarel atônito. E se Aimê Jacquet por alguma inspiração divina colocasse Henry e Trezeguet para saírem jogando, meus caros, eu não sei quanto pior para nós seria o baile, ou pensando de maneira prática até que isso não seria tão ruim, já que assim anteciparíamos o vexame do 7 a 1, com a diferença de que naquele dia, não conseguiríamos transpor a defesa francesa nem se estivéssemos jogando até hoje. A verdade é que, desde que acompanho futebol não me recordo de ver uma final de Copa do Mundo tão fácil quanto aquele 12 de julho no Stade de France. Tão fácil que Petit meteu o terceiro nas costas de Cafu. Mas definitivamente cabia mais.

França 1998
Foto: Reprodução Twitter

 

Enfim, muito da repercussão envolvendo a final de 1998 é suco de Brasil. E como em nosso caso, futebol sempre é muito mais que um esporte, é ideologia, é amor, ódio paixão, vida e morte, futebol também é sociedade brasileira, é história e cultura nacional.

E, no caso do futebol, me parece existir uma dificuldade do ethos nacional em reconhecer nossa incompetência, nossas falhas, nossa limitação. Ficamos mal-acostumados com seleções lendárias como a de 58, 70, a de 82.

Não conseguimos entender que estamos ficando para trás no que se refere a futebol como um todo: planejamento, tática, organização, equipe. Então quando um adversário nos vence, corremos a caçar os culpados, e para cada mérito do vencedor, caçamos aqui ou acolá um demérito, ou um “se”. Ah, se não fosse o Paolo Rossi. Ah, se Ronaldo não tivesse tido aquela convulsão. Ah, se o Felipe Melo não tivesse sido expulso. Mas aí veio o 7 a 1. E o suco de Brasil azedou de vez. E o que mudou desde então? Nada. Em 2018 o “culpado” foi o arqueiro belga que defendeu um chute (não tão indefensável assim) de Neymar. Mas já deveríamos ter entendido desde 1998 que só talento não vence. Que o esporte mudou, e está mudando hoje e agora. Mas, enquanto isso, continuamos com a síndrome do vencedor imbatível que sempre encontra um culpado dentro do Olimpo em que muitos ainda pensam estar a seleção Brasileira. Aviso, mais com a cabeça que com o coração: não somos mais os melhores em termos do futebol que se joga hoje, e precisamos entender isso para voltarmos a ser. Enquanto não compreendermos a crueza e a dureza dessa constatação, fracassos como o de 1998 e o de 2014 vão continuar sendo reduzidos a meros “e se”, Fake News e conspirações sobre venda de jogos, juntos com emaranhados de bodes expiatórios e deméritos injustos e redutivistas a adversários considerados inferiores.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Túlio Fernando Mendanha

Historiador e Antropólogo. Beque e peladeiro de coração. Amaldiçoado pelo Botafogo e pelo Futebol desde 1994.  

Como citar

MENDANHA, Túlio Fernando. Entre copas vendidas e bodes expiatórios: uma crônica do Brasil ontem e hoje. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 20, 2021.
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