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Entre grandes premiações e supersalários: como vieram e para onde vão os grandes fluxos de dinheiro no futebol?

Em meio aos diversos assuntos que diariamente povoam o noticiário futebolístico, nos deparamos, frequentemente, com informações relativas às elevadas cifras financeiras que cercam esse universo. Longe de ser uma exclusividade da modalidade, ou de representar a realidade vivida pela maioria das pessoas que com ela trabalham, as vultuosas quantias de dinheiro que envolvem a elite do futebol masculino profissional continuam subindo, quase que independentemente das diferentes crises que se materializam no plano global.

Em meio a um cenário de guerras, tensionamentos políticos, inseguranças de abastecimento energético e alimentar, emergência climática, expansão inflacionária, crescimento das desigualdades econômicas e do prolongamento da pandemia de Covid-19, o futebol chegou ao final do mês de maio com pelo menos duas notícias impactantes do ponto de vista do dinheiro: os valores acertados para a renovação de contrato do jogador francês Kylian Mbappé com o Paris Saint-Germain e a quantia arrecadada pelo Real Madrid com as premiações recebidas ao longo de sua vitoriosa participação na última Liga dos Campeões da Europa.

No primeiro caso, o jovem futebolista de 23 anos, se tornará o atleta mais bem pago do mundo, entre esportistas de todas as modalidades. Ao assinar seu novo contrato com o PSG, Mbappé receberá 100 milhões de euros por ano (aproximadamente 515 milhões de reais), ao longo das próximas três temporadas. Soma-se a isso, o dinheiro acordado em luvas pela renovação e chega-se a outros 300 milhões de euros (algo acima de 1,5 bilhão de reais), que ingressarão nas contas do atleta e da equipe que administra sua carreira[1] [2].

Na situação que remete à Liga dos Campões, por sua vez, ainda que as cifras sejam menores, elas não deixam de impressionar, sobretudo quando comparadas às premiações pagas por outros campeonatos de futebol pelo mundo. Ao longo de toda a sua campanha no principal torneio de clubes da Europa na temporada 2021-2022, o campeão Real Madrid arrecadou 82,3 milhões de euros em prêmios pelo seu desempenho (cerca de 428 milhões de reais). A título de comparação, essa quantia é mais do que o dobro dos 40 milhões de euros (aproximadamente 205 milhões de reais) que receberá a seleção que se sagrar campeã da próxima Copa do Mundo, a ser disputada no Catar, entre novembro e dezembro de 2022[3].

Juntos, esses dois fatos são reveladores das dimensões que têm atingido o dinheiro dentro do futebol espetáculo e ensejam reflexões que remetem a variados aspectos da organização dos esportes em meio à lógica capitalista. Sabendo da complexidade que permeia esse cenário, no presente texto será feita uma exposição de acontecimentos históricos relacionados às raízes da entrada mais massiva de capital no futebol, a fim de que, tendo conhecimento desses fatos, possamos refletir sobre caminhos que o dinheiro atrelado à modalidade parece tomar.

Mbappé
Fonte: Wikipédia

A estruturação de um futebol hiper mercantil: breves olhares sobre uma história recente

Ao tratar especificamente da compreensão do futebol como produto, é possível abordar os processos de adequação da modalidade a um modelo comercial, ocorridos, sobretudo, a partir da década de 1960. Sem desconsiderar que em períodos anteriores já existiam atividades produtivas e comerciais ligadas ao consumo do esporte, pode-se dizer que, é a partir da segunda metade do século XX, que se reúnem um conjunto de transformações responsáveis pela formação de uma indústria do setor (PRONI, 1998).

Conforme demonstrado por Simões (2020), ainda que a literatura da área tenha o hábito de mencionar o contrato entre FIFA e Coca-Cola, firmado em 1976, como o grande símbolo da transformação do futebol em mercadoria, esse papel poderia ser mais bem atribuído ao início da venda dos direitos de transmissão da Copa do Mundo, que ocorreu pela primeira vez na edição de 1966.

Ao buscar informações históricas sobre as raízes desse acontecimento, obtém-se, através do trabalho de Rocha (2019), que foi Stanley Rous, presidente da FIFA entre os anos de 1961 e 1974, o responsável por negociar os primeiros contratos televisivos de grande magnitude ligados ao futebol.

Em 1966, ele negociou diretamente com a BBC da Inglaterra a venda dos direitos de transmissão da Copa do Mundo e, em 1970, foi ao México negociar com a Televisa de Emílio Azcarraga e Guillermo Cañedo. Esse segundo contrato chegou aos 5 milhões de dólares, um valor relativamente expressivo para a época (ROCHA, 2019, p. 22).

Como consequência, esse processo ampliou o volume de dinheiro circulando em torno do futebol, dando formas à um cenário que, nos anos seguintes, iria experimentar significativos movimentos de expansão. Com a chegada do brasileiro João Havelange à presidência da FIFA, cargo por ele ocupado entre 1974 e 1998, pode-se dizer que foram dados os passos rumo à consolidação do futebol como um negócio e um produto a ser consumido por um grande contingente de pessoas.

Posteriormente acusado de envolvimento em episódios de corrupção[4], Havelange conquistou e expandiu seu poder na FIFA se valendo de estratégias voltadas ao alargamento das fronteiras do futebol. Como exemplos, foram criadas competições e ampliadas as vagas para as seleções participantes da Copa do Mundo, garantindo uma maior participação de equipes da Ásia, África, CONCACAF e Oceania no mapa futebolístico mundial (PIZARRO, 2021).

Assim, ao mesmo tempo em que atuava para garantir sua manutenção no poder, trabalhava para inserir o futebol no mundo globalizado e tornar a FIFA uma empresa transnacional. Dentro desse contexto, também foram significativos os papeis desempenhados pelo estabelecimento de contratos com patrocinadores e das transmissões ao vivo do futebol no meio televisivo.

Sobre o primeiro aspecto, Pizarro (2021, p. 40) afirma que Havelange, enquanto esteve na presidência da FIFA, “aumentou os contratos publicitários como mais uma medida dentro da lógica de governança desportiva da entidade, transformando-a em um grande modelo empresarial”. Como fatos emblemáticos ligados aos acordos publicitários fechados na era Havelange, podem ser mencionadas as parcerias com empresas como Coca-Cola, Visa e Adidas, as quais, ainda hoje, mantêm-se como patrocinadoras oficiais da Copa do Mundo.

No que se refere às transmissões do futebol na televisão, podemos visualizar suas influências na ocorrência de situações bem conhecidas atualmente. Tendo ampliado progressivamente os valores que as emissoras pagavam à FIFA pelo direito de transmitir suas competições, Havelange foi importante para um movimento que também contribuiu para mudar o cenário financeiro das competições entre clubes.

Com os maiores valores pagos pelas competições entre equipes de futebol, a expansão do apelo publicitário e a exposição de marcas e atletas a nível global, foram crescendo os salários e as premiações pagas pelas conquistas dentro da elite da modalidade. As ações anteriormente mencionadas foram, então, essenciais para o desenvolvimento do futebol em meio às lógicas do consumo e do esporte espetáculo, contribuindo para a construção gradual do cenário que conhecemos na atualidade.

João Havelange
João Havelange como presidente da FIFA em 1982. Foto: Wikipédia

Manifestações do dinheiro no futebol contemporâneo: rumos e reflexões

Vivendo em uma era marcada pela presença de formas culturais pós-modernas, de modos flexíveis de acumulação do capital e da ressignificação do tempo-espaço (HARVEY, 2008), o futebol, os esportes e outros tipos de divertimentos aparecem, muitas vezes, como protagonistas dos modos de vida contemporâneos. Ao observar o cenário que caracteriza esses fenômenos na atualidade, é difícil não notar suas relações com as dinâmicas de poder, de dinheiro e de integração ao cotidiano das pessoas.

Com o futebol crescentemente visualizado como um negócio, os torcedores têm sido vistos, cada vez mais, como consumidores e fontes de receitas para os clubes, seleções e empresas patrocinadoras. Como consequência, os/as dirigentes têm adotado medidas para fidelizar e extrair os maiores ganhos possíveis a partir da relação com estes sujeitos, o que se dá pela promoção de ações que extrapolam a busca pela obtenção de bons resultados dentro de campo. Nesse contexto, cabe a seguinte pergunta: para onde e de que forma o dinheiro progressivamente investido na modalidade tem sido direcionado?

Para além de ações mercantis consolidadas, como a compra e venda de ingressos, de produtos licenciados e/ou de pacotes de jogos na TV, as agremiações esportivas têm lançado mão de diferentes estratégias comerciais para se relacionarem com suas torcidas. Programas de sócio torcedor (PST´s) e fans tokens[5] são, nesse sentido, dois exemplos de práticas que têm ganhado força nos dias atuais.

Entretanto, estão longe de serem as únicas. A convergência entre o futebol e as mídias sociais tem feito com que as estratégias de relacionamento em redes como Facebook, Instagram, Twitter, YouTube e TikTok se tornem parte importante do marketing e da gestão de clubes da modalidade.

Em outra direção, ao tratar de instituições que não promovem a prática esportiva, mas buscam cativar esse público, podemos visualizar o crescimento dos sites e aplicativos de apostas que, em diversas partes do mundo, têm entrado forte patrocinando equipes e campeonatos de futebol. Sem aprofundar em questões relativas aos riscos éticos e à lisura do jogo, pode-se dizer que tais empresas têm aportado elevadas quantias em busca de retornos ainda maiores, com a venda ao público da promessa de obter dinheiro fácil e rápido, através de palpites acerca de situações que envolvem as partidas de futebol.

Em outra ponta, há de se falar também dos clube-empresas e das controvérsias que envolvem as compras dessas instituições por pessoas físicas, grupos empresariais privados ou fundos soberanos estatais. Mesmo que tais atores coloquem muito dinheiro nas equipes e consigam sucesso esportivo, há questionamentos diversos às suas atuações, os quais vão desde a perda de identidade dos clubes e elitização, até questões sobre uso político do futebol como estratégia de “soft power” ou suspeitas de lavagem de dinheiro proveniente de atividades ilícitas.

Nota-se, assim, que são variadas as destinações e as formas como o dinheiro se manifesta no futebol atualmente. Aportado, de maneira preferencial, na elite masculina e espetacularizada da modalidade, esse capital traduz e reproduz mecanismos de desigualdades e contradições que imperam, também, em outras esferas da sociedade. Assim, mais do que trazer caminhos ou fazer prognósticos, estar atento e procurar conhecer esse cenário é uma forma de compreender nuances relativas ao mundo no qual estamos vivendo.

Notas

[1] Visto em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/05/21/veja-quanto-recebe-mbappe-por-segundo-com-o-novo-salario-pago-pelo-psg.htm

[2] Visto em: https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/qual-o-salario-de-mbappe-quanto-ganha-o-atacante-frances/blt01421fd91918dfc5

[3] Visto em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/05/25/qual-a-premiacao-para-o-campeao-da-champions-league.htm

[4] Em 2010, Havelange e seu genro, Ricardo Teixeira, então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) foram acusados de receber milhões de dólares de propina de uma agência suíça de marketing esportivo, a ISL (International Sport and Leisure), para que a empresa tivesse exclusividade nos contratos com a FIFA. Dois anos depois, a justiça da Suíça afirmou que Havelange Teixeira teriam recebido propinas de cercade R$45 milhões pela venda de direitos de mídia de torneios da FIFA (BBC, 2016).

[5] Fans tokens são criptoativos que conferem, àqueles/as que os adquirem, o direito de participarem de campanhas promovidas por instituições esportivas, que tenham aderido ao programa. Nesse processo, quanto maior o número o número de tokens uma pessoa possuir, maior o seu poder de influenciar nas decisões (GLOBOESPORTE.COM, 2021).

Referências

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Trad. Adail Ubirajara Sobral; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 17 ed. 2008.

PIZARRO, Juliano Oliveira. A globalização e o futebol: o processo de acentuação de desigualdade. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 39-59, jan./abr. 2021.

PRONI, Marcelo Weishaupt. Marketing e organização esportiva: elementos para uma história recente do esporte-espetáculo. Conexões: Revista da Faculdade de Educação Física da UNICAMP, Campinas, v. 1, n. 1, p. 82-94, jul./dez., 1998.

SIMÕES, Irlan. Clube-empresa: histórico, impactos reais e abordagens alternativas. In: SIMÕES, Irlan (Org.). Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol. Editora Corner, Brasil, 2020.

ROCHA, Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto. A dança das cadeiras: a eleição de João Havelange à presidência da FIFA (1950-1974). Orientador: Flávio de Campos. 2019. 379 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mauro Lúcio Maciel Júnior

Bacharel em Educação Física - UFMG; Mestrando em Estudos do Lazer - UFMG; Membro do GEFuT - UFMG; Membro do Oricolé - UFMG; Editor Júnior da Revista Licere - UFMG.

Como citar

MACIEL JúNIOR, Mauro Lúcio. Entre grandes premiações e supersalários: como vieram e para onde vão os grandes fluxos de dinheiro no futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 16, 2022.
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