164.2

Esboços teóricos sobre o Catar 2022

Fabio Perina 2 de fevereiro de 2023

“O futebol e seus estádios suntuosos ficarão pelo deserto em busca de algum significado. Como alguns dos elefantes brancos erguidos para a Copa do Brasil em 2014. A Fifa faz uma magnífica fagocitose nos países que sediam o torneio. Chega anos antes, cria embargos e leis, coloca suas exigências à mesa, lucra em parceria com uma pequena parcela de empresários e políticos com os quais se associa, e vaza deixando um rastro de ruínas e de espaços vazios.”

Começando com a parte mais simples de listar as principais polêmicas que a recente Copa no Catar de 2022 escancarou: sendo as mais chocantes para temas de trabalho e direitos humanos, embora também outras mais discretas como temas de calendário mundial do futebol de clubes radicalmente modificado por conta de adaptação ao clima de extremo calor. (Obs: e por falar em calor é preciso uma menção curiosa à ironia da monarquia catari ter deixado para a véspera da competição para “bater o pé” diante da FIFA. Ao impor a proibição de bebidas alcóolicas mesmo a despeito de ser uma fabricante de cerveja uma das principais patrocinadoras. Em suma, pensando poder controlar o Catar, por fim a FIFA acabou controlada por ele).

Interessante no texto do link acima por mostrar que a maioria dos elementos já estava presente a pelo menos uma década. Mesmo sem tratar agora delas uma a uma, pensando em seu conjunto acrescento que várias exceções se consolidaram tanto que foram até normalizadas. Em outras palavras, a FIFA rasga os próprios manuais! Um texto encontrado que permite uma demonstração prática, ainda que implícita, do referencial “estado de exceção” do filósofo italiano Giorgio Agamben, pela qual essa entidade cria seus próprios tribunais para escapar de jurisdições internacionais regulares. Ou seja, em seu discurso declarado a FIFA tenta ano após ano se aproximar de outras entidades internacionais respeitáveis sem fins lucrativos como ONU ou UNESCO ao declarar tolerância e direitos humanos, porém na sua prática realmente existente age como uma mistura do pior que um Estado e uma empresa podem oferecer de articular proibições e exclusões. Ainda conforme esse referencial, é um enclave de poder dentro do esporte como representativo de processos mais amplos da mistura entre as formas políticas “democracia” e “ditadura” assumindo relações promíscuas cada vez mais indistinguíveis e talvez até irreversíveis.

Portanto, lida com problemas que não foram agora em 2022 um “raio em céu azul”, mas já tinham seus germes contidos. Como as latentes contradições entre direito nacional x direito internacional e direito público x direito privado. Menciono um possível esboço de definição, diante de um acúmulo bibliográfico com várias áreas de conhecimento, muito com base no geógrafo inglês David Harvey com sua “acumulação por despossessão”. Os megaeventos são como uma espécie de fusão de discursos e práticas de mídia, governo e mercado oficiais para ocultar suas contradições da vida real e apresentar apenas o “produto” de uma cidade nivelada a uma empresa em concorrência “global” permanente com as demais. Assim como também ocorre toda uma adaptação da linguagem do campo econômico dentro do campo político: “oportunidade” = “investimento” + “legado”. Diante das preferências das franquias internacionais do esporte (COI e sobretudo FIFA) primeiro privilegiarem as sedes dos megaeventos em países ditos “emergentes”, principalmente os BRICS, e depois o caso mais recente do Catar. O que foi altamente simbólico dos donos do poder mundial (inclusive do futebol), Estados Unidos e Europa Ocidental, criarem celebrações para alguns países entrarem em seu “clubinho de privilegiados”, o que remete à importante ferramenta de análise entre “estabelecidos x outsiders” do sociólogo alemão Norbert Elias.

Deixo a seguir em outro link uma pequena amostra de protestos, polêmicas e resistências durante o Catar 22 apenas para registrar suas relevâncias, porém sem condições de aprofundar nesse texto para não perder a visão do conjunto. O que faz lembrar do tradicional movimento “Against modern football” com sua nova palavra-de-ordem mais do que nunca necessária: “Created by the poor, stolen by the rich”. E a eles poderiam se somar a intensa vibração de torcedores de Marrocos e Argentina com suas seleções nas semifinais devolvendo vida a estádios tão estéreis. São tão relevantes que me obrigaram a repensar outro esboço teórico que elaborei nos últimos anos sobre “futebol de controle” (com bases nos filósofos franceses Foucault e Deleuze) antes mais com continuidades na preparação para o Catar 2022 e depois agora passar a pensar que uma vez aplicados ocorrem mais descontinuidades e sobretudo contradições. Ao menos daquele texto ainda reescreveria que permanecem as intenções da FIFA de profunda despolitização de tudo ao seu redor como o respaldo para a expansão infinita do capital. Embora com sua coerência entre discursos e fatos cada vez mais difícil de se sustentar.

Catar 2022
Imagem mostra pessoas identificadas como policiais abordando grupo no Catar, ao confundir bandeira de Pernambuco com a da causa LGBTQIAP+. Fonte: Reprodução/Redes sociais

Uma primeira chave de leitura que proponho implica afirmar que o Qatar 2022 tem seu próprio pecado original: pior do que ocorrer em um país sem tradição em futebol, ainda por cima ocorre onde a elite milionária catari não tem o menor interesse por ele, assim como sequer a imensa massa de imigrantes de outros países asiáticos. Ou seja, sequer a promessa de “legado” após o megaevento parece provável de se sustentar. Assim como a soma de imensas restrições pelos costumes autoritários locais somados aos imensos gastos de viagem, hospedagem e custos de vida colocou imensas dificuldades para torcedores e turistas vindos da Europa e das Américas. O que levou ao cenário distópico de ser um evento mundialmente televisionado, porém com estádios longe da lotação física, sendo preciso artificialidades e improvisos da organização com o infame “DJ de torcida” e até mesmo com o financiamento a imigrantes asiáticos se fantasiarem de outras seleções. Em outras palavras, se tem ao mesmo tempo “idéias fora do lugar” (do crítico literário brasileiro Roberto Schwarz) e “não-lugar” (do antropólogo francês Marc Augé). As quais retomarei no desfecho desse texto para tratar da final da copa. Ora, nisso insiro uma reflexão adicional apenas a nível de criativa especulação, mas sem condições de comprová-la pelos limites desse texto. Sobre o imenso “curto-circuito” que se revelou na relação oferta/demanda de ingressos, não seria esse em um forte indício da decadência (ou talvez até da falência) do assim chamado “padrão FIFA” de megaeventos?! Em outros termos, como sustentar o discurso oficial de ser o mais desejado por todos?!

Já uma segunda chave de leitura mais complexa que proponho constata uma série de indignações seletivas da opinião pública “ocidental” e sobretudo europeia. Ou seja, dois pesos e duas medidas para fatores muito similares: tidos como tolerados quando no cenário europeu, porém tidos como inadmissíveis quando no cenário árabe. Dessa forma, fica fácil cobrar apenas da FIFA a cumplicidade diante da monarquia autoritária do Catar em seu megaevento, enquanto no dia-a-dia dos clubes e federações europeus o seu paraíso de dinheiro ilimitado é financiado por igual cumplicidade diante desse regime e outros análogos de Emirados Árabes e mais recente Arábia Saudita. Uma síntese da década de 2010 e que na de 2020 esboça uma continuidade e aprofundamento é do imenso protagonismo desses 3 regimes para inúmeros novas “produtos” em expansão infinita: compra de diversos clubes europeus, sede de diversos eventos inclusive de diversas modalidades, amistosos diversos (inclusive Brasil x Argentina), Mundial de Clubes da FIFA e a Supercopa da Itália e da Espanha. (Obs: sendo que um fato novo da conjuntura da virada de 2022 para 2023 foi a contratação de Cristiano Ronaldo pelo Al Nasser, quem passará a usar sua imagem na “diplomacia” da candidatura saudita para a Copa de 2030. Como breve nota de conjuntura é preciso pensar em articulações com o dia-a-dia dos clubes. Não somente com a imensa capacidade de demonstração de poder, sobretudo para o pós-2022, dos magnatas ao juntar em um amistoso CR7 x Messi, os dois maiores ídolos de uma década. Mas até mesmo como o Catar durante a copa foi um “escritório” velado e provisório de negociações entre dirigentes sul-americanos, como os rumores que a final Palmeiras x Flamengo pela Supercopa poderia ser fora do Brasil em terras árabes e os rumores que em breve mais clássicos e finais do futebol argentino irão para lá diante da profunda dívida financeira dos seus clubes).

Messi Cristiano Ronaldo
Fonte: divulgação

E mesmo no meio do caminho entre 2022 e 2030 ainda haverá 2026, com sede já oficializada na América do Norte, principalmente nos Estados Unidos. Ora, como tratar de parâmetros coerentes de direitos humanos diante do país mais imperialista e belicista de todos?! À seguir um fragmento para pensar nossos atuais dilemas sociais e também esportivos dessas contradições discursivas com base no vergonhoso discurso de Infantino, presidente da FIFA, durante a abertura do evento:

“Mas se Europeus devem se envergonhar por tudo o que envolve o processo de colonização (genocídios, explorações, extorsões, maus tratos, assassinados, escravizações, saques…) como aceitar realizar a Copa dentro de um país que atualizou todo esse horror? O fato de o horror estar acobertado por práticas empresariais de gestão não deveria diminui nossa repulsa”.

Ora, sem me alongar em geopolítica, é inevitável escrever um texto sobre o final de 2022 sem ter em mente a breve menção aos principais fatos correlacionados ao longo do ano como: declínio da globalização, guerra na Ucrânia, crise na União Europeia, aproximação entre Moscou e Pequim, etc. O que intensifica a narrativa de “guerra cultural” Ocidente x Oriente. O que não é uma mera digressão, já que a geopolítica financeira do futebol de alguma forma se assemelha diante dos impactos de clubes cada vez mais ricos fomentar debates cada vez mais urgentes nas ligas europeias de não deixar alguma competitividade esportiva mínima com alternância de vencedores ser sacrificada em nome da lucratividade máxima. O que implicaria um tema espinhoso que não arriscarei sobre o que acontecerá depois como reação como intervenções das federações e improváveis unidades táticas de dirigentes de clubes e até mesmo de jogadores por organizarem suas demandas. Já voltando para o tema desse texto, cabe reforçar que a indignação seletiva pode se manifestar se a discussão for conduzida para que a origem desse dinheiro todo incomode muito mais do que propriamente o seu excesso.

Uma discussão que pode ficar ainda mais embaralhada se os clubes europeus alegarem que já ocorreu o “pecado original”, ou seja, com os governos europeus já estando mergulhados em relações promíscuas com as monarquias árabes. E certamente não estando dispostos a reverter esse processo diante de um alívio imediato para a profunda crise financeira pós-2008 que implicou também a profunda crise social e migratória. O que torna o futebol europeu como um oásis de gastança rodeado de toda uma Europa que naufraga em sua austeridade fiscal permanente. Assim como certamente um alívio imediato para a FIFA foi surgir a oportunidade no Catar 2022 enquanto vieram à tona por reportagens e análises diversos casos de megaeventos anteriores que deixaram enorme corrupção e endividamento nos países sedes. Ou seja, enquanto a Europa recebe o dinheiro vindo de árabes ricos (embora com certas reservas seletivas) também abomina a vinda de árabes pobres.

Um caldeirão de contradições com um tempero clubista, pois certamente torcedores do PSG e do City possuem uma indignação seletiva com o dinheiro dos magnatas árabes que colocou seus clubes em outro patamar de títulos, porém enquanto cidadãos franceses e ingleses tendem a ser bem mais críticos à mesma fonte pagadora. Ora, como estabelecer um marco entre até onde podia algo e depois de então já não se pode mais? Contradições que foram bastante exploradas pelo antropólogo José Paulo Florenzano, quem por sua vez com outros esboços teóricos e com maior rigor de fontes do que esse meu ensaio, em textos recentes aqui mesmo no Ludopédio (aqui e aqui). O que acrescento que a própria naturalização dos conceitos como “sportswashing” e “soft power” são parte de uma epistemologia ocidental, pois já como ponto de partida dos termos que se usa condicionam as possibilidades de afirmações a que se chegue. Sintomático por serem conceitos com bastante intersecção entre o campo acadêmico e o campo midiático, o que costuma ser um indício de ser funcional a objetivos políticos dominantes além de objetivos científicos.

Catar
Estádio Al Thumama, Catar 2022. Fonte: Md Nahid Islam Sumon/Wikipédia

Fazendo a ponte entre as duas chaves de leitura, importante como retrospectiva também o fragmento a seguir de como a cumplicidade entre FIFA, Catar e magnatas e poderosos de todo o mundo em suas relações promíscuas: ocultas uma década atrás para oficializar a candidatura e depois escancaradas nos camarotes desfrutando-o na mais sublime impunidade.

“O jogo foi o ápice do que aquele evento simbolizava para os anfitriões no Qatar: a compra de seu lugar no mundo e a capacidade do futebol de eclipsar a realidade de uma ditadura. Uma das maiores partidas da história abafou, em parte, uma Copa do Mundo conquistada pelo Qatar obtendo os votos de membros da Fifa que, hoje, estão em parte presos ou afastados do futebol. Um evento erguido com o sangue de imigrantes e salários miseráveis. Quem estava nas arquibancadas? Enquanto Messi e outros craques encantavam em campo, os camarotes ao longo do mês de Copa foram testemunhas de um desfile sem precedentes de líderes e magnatas do mundo. Elon Musk, Emmanuel Macron, o secretário de estado norte-americano, Antony Blinken, Erdogan, lideres curdos, parentes de Trump, autoridades sauditas, ministros europeus e até Eduardo Bolsonaro.” 

O que acrescento que novamente a noção de “não-lugar” fica escancarada aos nossos olhos com um ambiente tão neutralizado e segregado que as várias disputas geopolíticas e culturais do dia-a-dia ficaram parcialmente diluídas. Passando a valer uma nova configuração provisória: os super-privilegiados dos camarotes, os torcedores-turistas comuns no restante do estádio e a “ralé” no restante do mundo. Por fim, o que inclusive é muito sugestivo a capacidade de ser representado no futebol (pela enésima vez) as relações de poder reais de forma mais explícita do que qualquer ambiente. Sendo um camarote desses muito sintomático dos tempos atuais de relações promíscuas (e aparentemente irreversíveis) entre neoliberais e neofascistas diante da crise estrutural do capital (tão profunda no pós-2008 e muito mais no pós-2020) em sua dinâmica de auto-destruição. (Obs: breve menção também ao instante de imenso contraste e “ideias fora de lugar” de entrega da taça para Messi por “amarrar” diversos elementos analisados no texto dispersos até aqui. Primeiro com o craque sendo vestido por um tradicional traje árabe como forte símbolo de um misto de apropriação cultural e esportiva pelo país sede. Embora logo depois, com suprema ironia, com o alto-falante do estádio tocando em alto e bom som a tradicional música futeboleira “cumbia de los trapos”).

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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. Esboços teóricos sobre o Catar 2022. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 2, 2023.
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