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Escrever é ato político: precisamos de mais biografias

Silvana Vilodre Goellner 8 de julho de 2020

Junho de 2020, em meio à quarentena procuro disposição para escrever. Seria outra se não fosse o cenário devastador no qual o Brasil está mergulhado. Há três meses praticamente sem sair de casa, a Covid-19 não é minha única preocupação, apesar das crescentes taxas de mortalidade e de contaminação. O autoritarismo, a perda de direitos sociais, o crescimento da violência doméstica e do feminicídio e o aumento da pobreza são alguns dos fatos que me têm afetado profundamente. Desolada, busco esperança em Neruda quando escreve:

Se cada dia cai

dentro de cada noite,

há um poço onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira

do poço da sombra

e pescar luz caída

com paciência.[1]

Gostaria de ser mais otimista, mas vejo cada vez mais fundo o poço no qual poderíamos pescar alguma luz caída. Com relação ao tema desta coluna, as mulheres do futebol, também está difícil vislumbrar claridades. Ancoro minha observação em alguns fatos que aconteceram nesses três meses iniciais da pandemia. Não vou discorrer sobre eles porque já foram noticiados, em especial, nas redes sociais e nas mídias não oficiais.

Refiro-me ao descaso de alguns clubes que não destinaram para as atletas o valor repassado pela CBF como ajuda de custo para as que estavam competindo no Campeonato Brasileiro, séries A1 e A2[2]; o caso do 3B, time de Manaus, cidade amplamente atingida pela pandemia, cujo dirigente determinou a continuidade dos treinos apesar de jogadoras e membros da equipe testarem positivo para COVID-19[3]; a dificuldade financeira enfrentada pela lendária Léa Campos (pioneira da arbitragem brasileira) que mobilizou uma rede de solidariedade para arrecadação de fundos[4]; a retirada da candidatura do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2023[5]; a declaração do dirigente do Esporte Clube Vitória manifestando desprezo ao futebol de mulheres[6], sem contar  a  perda salarial e de emprego de várias mulheres que atuam no futebol. 

Tais acontecimentos têm profunda relação com a sub-representação da modalidade, sua precária profissionalização e, reitero, a inequidade de gênero presente no futebol e fora dele. Nossa cultura minimiza as conquistas das mulheres, muitas delas celebradas no momento em que acontecem, mas logo esquecidas ou colocadas nas sombras. Vou destacar uma delas: o não reconhecimento de que a maior artilheiras das Copas do Mundo é uma mulher: Marta Vieira da Silva!

Há um ano, no Mundial da França, no jogo contra a Itália, nossa camisa 10 superou o alemão Miroslav Klose ao marcar seu 17º gol. Reverenciada na época, a detentora de seis títulos mundiais foi notícia em jornais de vários países: “Women’s World Cup: Brazil forward Marta breaks men’s and women’s tournament goal record”[7], “Marta, la número uno, es la máxima goleadora en mundiales”[8], “Marta, la reine militante qui a détrôné les rois”[9], “Marta becomes the 1st player – male or female – to score 17 World Cup goals”[10], “M come Marta, battuto il record di Klose per i gol segnati in Coppa del Mondo”[11]. Por aqui também não faltaram elogios à atleta: “É recorde! Marta supera Klose e se torna a maior artilheira em Copas do Mundo”[12], “Marta supera Klose e se torna a maior artilheira em Copas do Mundo”[13], entre muitas outras. A conquista de Marta foi celebrada e, simultaneamente, minimizada, inclusive pela FIFA ao descartar o ranking unificado por considerar que eram competições diferentes[14], [15].

A posição da FIFA foi reiterada no dia 9 de junho de 2020 quando publicou um post no Twitter parabenizando Klose pelo aniversário de 42 anos, conferindo-lhe o título de maior artilheiro de todos os tempos da Copa do Mundo.[16] Ou seja, o argumento das competições diferenciadas não se fez cumprir, pois o anúncio não especifica que foi a Copa do Mundo dos homens. Ao fazer essa menção, a instituição perde a chance de fazer valer o que frequentemente proclama: a necessidade de uma maior valorização do futebol de mulheres. Não reconhecer que uma jogadora é detentora do recorde vai na contramão do protocolo de boas intencionalidades e revela, outra vez, a desigualdade de gênero.

Considerando a recorrente falta de vontade política para reconhecer os feitos das mulheres no amplo universo que circunda o futebol, faz-se imprescindível produzir e partilhar informações relacionadas as suas histórias. Você já se deu conta que praticamente inexistem biografias sobre jogadoras, técnicas, árbitras e gestoras? Faça esse exercício ao entrar em uma livraria ou pesquisar conteúdo na internet. As histórias deles circulam em diferentes formatos: livros, filmes, documentários, edições comemorativas, enquanto as histórias delas amargam esquecimentos. Vou apresentar os três únicos livros que conheço, e aqui corro o risco de não mencionar outros que possam ter sido publicados. Caso existam, peço a gentileza de nos enviar informações.

Mulher – da essência da vida à essência da bola. Histórias e vida de Maria Cristina de Oliveira[17]

Escrito pela jornalista Lúcia Andrade, o livro apresenta fragmentos de vida de Maria Cristina de Oliveira, a primeira treinadora da seleção brasileira de futsal feminino. Publicado em 2005 com o apoio da Associação Sabesp, celebra os 50 anos da treinadora e, concomitantemente, os 50 anos da criação da Federação Paulista de Futsal. A narrativa é construída a partir de depoimentos de Maria Cristina e de outras pessoas ligadas a este esporte, os quais são complementados com a reprodução de reportagens e fotografias. Nas palavras da autora:

Cris, que hoje é estrela das quadras, conta muito da sua vida nesta obra, principalmente como venceu os entraves da veia machista do mundo esportivo, além das vitórias batalhadas na sua própria história pessoal, com a superação da pobreza, dos preconceitos, decepções e demais percalços.

O livro assinala que em 2001 foi formada a primeira Seleção Brasileira Feminina de Futsal com uma comissão técnica formada unicamente por mulheres: um fato inédito no universo futebolístico. Além de Maria Cristina, integravam a comissão Inês dos Santos (chefe da delegação), Vanda Cristina Sanches (supervisora), Fernanda Mazalla (preparadora física) e Cristina de Souza Macedo (fisioterapeuta). Foram convocadas 12 atletas, 8 de São Paulo, 2 do Paraná, 1 do Distrito Federal e 1 do Ceará, que disputaram dois amistosos contra a seleção do Paraguai, os quais venceram por goleada (13 x 5 e 13 x 2). Ao articular a história de Maria Cristina com a do futsal, o livro aborda temas bastante variados, os quais são significativos para compreender aspectos relacionados ao desenvolvimento da modalidade. No entanto, seu maior mérito é registrar o protagonismo de uma mulher que fez história no futsal, uma mulher cuja trajetória é marcada pelo amor ao esporte, pela dedicação e perseverança, atributos que até hoje são reconhecidos por quem atua no futsal ou conhece sua história.  

Sabe aquele gol que o Pelé não fez? Eu fiz! A trajetória esportiva de Duda[18]

Capa do livro “Sabe aquele gol que o Pelé não fez? Eu fiz!”

Produzido inicialmente em 2016 como a dissertação de mestrado de Suellen Ramos, sob minha orientação, o texto foi adequado para o formato livro em 2018. O material aborda a trajetória esportiva de Eduarda Maria Luizelli (Duda), um nome significativo para o esporte gaúcho, em especial para o Sport Clube Internacional, clube pelo qual a atleta atuou, criou escolinhas esportivas, coordenou categorias de base e, desde 2016, é responsável pelo futebol de mulheres. Além de seu vínculo com o Inter, Duda fundou sua própria escola[19], que atualmente conta com dezesseis unidades, nas quais se desenvolve um trabalho direcionado para a formação de meninas e meninos no futebol, e também para a qualificação de profissionais de Educação Física que almejam trabalhar com o esporte.

Com passagem pelo futebol italiano e pela Seleção Brasileira, a história de Duda está profundamente imbricada com a história do futebol gaúcho, temas que discorremos no livro, cuja narrativa foi produzida a partir de documentos, reportagens, fotografias e entrevistas com a protagonista do estudo e também familiares, amigos e amigas, jogadoras e pessoas ligadas ao futebol, fundamentalmente, o praticado por mulheres. Ao visibilizar fragmentos de sua trajetória no futebol, revelamos histórias que a história oficial não contou e não registrou. Histórias que atestam o protagonismo de mulheres que, de outra forma, seriam ignoradas, e cujos detalhes estavam circunscritos em suas memórias e seus afetos.

Você é mulher, Marta![20]

Diego Graciano iniciou uma pesquisa sobre Marta Vieira da Silva no ano de 2004, quando a jogadora tinha 18 anos e ainda não havia conquistado seu primeiro título de melhor jogadora do mundo, que ocorreu em 2006. Fruto de um investimento pessoal, o jornalista levou dois anos para produzir a obra, que envolveu a realização de viagens (inclusive a Dois Riachos onde encontrou a jogadora), a produção de quase 70 entrevistas e o registro de aproximadamente 250 fotografias. Proprietário dos direitos autorais, Diego fez impressão do livro no ano de 2008, o qual, no entanto, não pôde ser publicado: “a camisa 10 e seu estafe não autorizaram”[21].

Em entrevista ao programa Futebol Alternativo, em 2011, Diego descreve o processo de produção do livro e sua experiência em Dois Riachos, inclusive o discurso que fez, a pedido de Marta, na praça central da cidade no Natal de 2004, prometendo terminá-lo. Ao escrever sobre Marta, antes de ela ser, digamos assim, “a Marta”, Diego pressentiu o talento e antecipou uma história até então não registrada. Nessa entrevista, ao ser indagado sobre o que admirava na atleta, responde:    

Sua determinação. Por quê? Porque Marta nasceu mulher, nordestina, pobre, num dos lugares mais marginalizados do Brasil e sua maior paixão era jogar bola no país exclusivo do futebol masculino. Marta estava condenada à discriminação, Marta tinha tudo para desistir, mas graças a sua determinação, a sua força de vontade e graças também a um herói anônimo que tirou Marta de Dois Riachos para ela fazer um teste no Vasco da Gama, no Rio, aos 14 anos, Marta driblou o cartão vermelho que lhe foi decretado pela vida. Isto é muito admirável, de uma mulher, uma nordestina, estar lá no topo do mundo[22].

Lamentavelmente o livro não pôde ser publicado por nenhuma editora, por isso não o encontramos nas livrarias ou à venda. Marta chegou ao topo do mundo e sua trajetória possibilita a escrita de muitos livros. Triste saber que um deles, apesar de muito bem escrito, foi colocado na marginalidade.

*** ***

Por fim, quero enfatizar que iniciativas como estas devem ser louvadas não somente porque reconstroem histórias necessárias. Esses textos de inspiração biográfica evocam potencialidades: do ponto de vista acadêmico, se constituem como fontes e podem gerar novos estudos; do ponto de vista da informação esportiva, traduzem-se em suportes para a produção de matérias em um terreno árido de informações; do ponto de vista político, criam representatividade e empoderam mulheres; do ponto de vista ético, minimizam uma distorção histórica que invisibiliza as mulheres, suas memórias e histórias.

Além desses livros, quero registrar a publicação, em 2019, de um número especial da Revista Placar, dedicado inteiramente ao futebol de mulheres[23]. Surfando na onda da visibilidade adquirida pela modalidade com a realização do Mundial da França, a revista que circula desde 1970 buscou a parceria dos coletivos Planeta de Futebol Feminino[24], #jogamiga[25], Elas no ataque[26] e Jogadelas[27] para produzir conteúdo sobre a modalidade. O texto de abertura, assinado por seu editor, Ricardo Corrêa, fornece indicativos para entendermos a sub-representação das mulheres no jornalismo brasileiro, inclusive o esportivo. Depois de mencionar alguns aspectos relativos ao ano de 2019, como o Mundial da França, o Campeonato Brasileiro e o protagonismo de algumas mulheres na mídia, escreve:

“Placar aos poucos vai corrigindo seus erros do passado na abordagem sobre as mulheres no futebol. Na edição de julho, inclusive, num editorial, escrevi um pedido de perdão às mulheres por nosso passado machista. Depois, comentado em seu blog por Juca Kfouri, nosso mais icônico ex-diretor de redação, o pedido ganhou uma correção do mestre. Escrevi que nossa abordagem era “quase sempre sexista e objetificava as mulheres”. Juca, que assinou embaixo o pedido me disse: “não era quase sempre, era sempre”. Tem razão Juca, era sempre. Então, reforço aqui, com esta edição, nosso pedido de perdão às mulheres. Boa leitura!”[28]

*** ***

De lá para cá muitas águas rolaram. A pandemia nos pegou de surpresa, instaurou protocolos, mudou atitudes, reordenou planos e redimensionou possibilidades. Temo que este cenário de exceção aprofunde algo que historicamente tem marcado o futebol de mulheres: o amadorismo, a sub-representação e a invisibilidade. Por esse motivo, mais uma vez, afirmo: escrever sobre elas, com elas e por elas é ato político!


[1] Neruda, Pablo. Últimos Poemas. Porto Alegre, LP&M, 2005.

[2] Atletas denunciam clubes à CBF por falta de ajuda ao futebol feminino

[3] Mesmo com oito jogadoras infectadas, equipe volta a treinos em Manaus

[4] Primeira mulher a apitar no futebol fica sem casa nos EUA; arbitragem se une para ajudar

[5] CBF retira candidatura brasileira para sediar Copa Feminina em 2023

[6] O histórico desrespeito que acomete o Futebol Feminino no Brasil e o coronelismo dos cartolas

[7] Women’s World Cup: Brazil forward Marta breaks men’s and women’s tournament goal record

[8] Marta, la número uno, es la máxima goleadora en mundiales

[9] Marta, la reine militante qui a détrôné les rois

[10] ADVERTISEMENT SOCCER SPORTS Marta becomes the 1st player — male or female — to score 17 World Cup goals as Brazil beats Italy 1-0

[11] M come Marta, battuto il record di Klose per i gol segnati in Coppa del Mondo

[12] É recorde! Marta supera Klose e se torna a maior artilheira em Copas do Mundo

[13] Marta supera Klose e se torna a maior artilheira em Copas do Mundo

[14] Fifa descarta ranking unificado em Copas e não vê Marta à frente de Klose

[15] Quase um ano depois, Fifa tem dificuldade de reconhecer recorde de Marta… – Veja mais em https://dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2020/06/11/quase-um-ano-depois-fifa-tem-dificuldade-de-reconhecer-recorde-de-marta/?cmpid=copiaecola

[16] FIFA World Cup

[17] Andrade, Lúcia. Mulher – da essência a vida à essência da bola. Histórias de vida de Maria Cristina de Oliveira. São Paulo: 46 Indústria Gráfica e editora, 2005.

[18] Ramos, Suellen dos Santos e Goellner, Silvana Vilodre. Sabe aquele gol que o Pelé não fez? Eu fiz! A trajetória esportiva de Duda. Rio e Janeiro: Drible de Letra, 2018.

[19] Ver em: www.duda.com.br.

[20] Graciano, Diego. Você é mulher Marta!  São Paulo: All Print, 2008

[21] MMarta a história da brasileira seis vezes eleita melhor do mundo

[22] Biografia jogadora Marta (primeira parte) Entrevista ao jornalista Diego Graciano

[23] Revista Placar lança primeira edição sobre futebol feminino em 50 anos de história

[24] Planeta Futebol Feminino

[25] Joga Miga

[26] Ela no ataque

[27] Joga Delas

[28] Corrêa, Ricardo. Revista Placar, Edição 1457, novembro de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Silvana Goellner

Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Aposentada).  Ex-coordenadora do Centro de Memória do Esporte (CEME) e  Vice-Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Esporte Cultura e História (GRECCO). Pesquisadora e ativista do Futebol de Mulheres. Integrante do Grupo de Estudos Mulheres do Futebol (GEMF).

Como citar

GOELLNER, Silvana Vilodre. Escrever é ato político: precisamos de mais biografias. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 18, 2020.
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