Ocidente, século XVI. Várias religiões surgiam na Europa, além da católica. Muitas delas permanecem ainda nos dias atuais (luteranos, calvinistas, presbiterianos, batistas, metodistas, etc.). Uma pluralidade de verdades absolutas (todos tinham a pretensão da “verdade” e de futuro) o que acabou culminando em guerras religiosas. Por isso, o Estado moderno se constituiria confinando as religiões, ou melhor, os sentimentos ao foro privado. Na esfera pública deveriam “manifestar-se” apenas as obrigações, e absoluto só o rei!
Vieram as revoluções burguesas, o contrato social entre os cidadãos, e a fé absoluta na razão e no progresso do século XVII e XVIII. Nesse contexto, os sentimentos (antes destrutivos, segundo a experiência histórica) continuaram confinados a esfera privada, mas ganhariam uma conotação artística com o romantismo, inspirando os nascentes esportes modernos: ainda hoje usamos os distintivos dos clubes na altura do coração, numa entrega que se promete única, eterna, absoluta, sublime….transcendental!
“Uma vez Flamengo, sempre Flamengo…”
“Até a pé nós iremos, Para o que der e vier. Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver…”
“Meu Coritiba amo você, eu vou cantar o jogo inteiro pra você vencer!”
Poder-se-ia supor que o processo de profissionalização dos jogadores de futebol (no Brasil ele se dá mais efetivamente a partir de 1930) teria promovido uma forma mais desapaixonada de vivência do esporte pelos futebolistas, em relação ao restante da comunidade esportiva. Não é o que parece:
Para o caso brasileiro, o antropólogo Arlei Damo afirma ser disseminado entre os atletas, em todo o processo de sua formação e quando atletas profissionais, uma ética do “dom” como dádiva. Ou seja, o futebolista geralmente remete sua habilidade, como jogador, as ideias de predestinação e religiosidade, incluindo este atleta em uma rede de reciprocidades e retribuição da dádiva quando famoso (por exemplo: ajudar familiares ou fazer assistencialismo). Se atentarmos para a força do cristianismo, sobretudo a partir do catolicismo e da religiosidade na América Latina, de uma forma geral, seria razoável imaginar que essa situação se estende por toda essa região.
E mesmo em sociedades de raiz anglo-saxônica sabemos, pela leitura weberiana, que a “ética do trabalho” e toda a formalidade daí decorrente, tem raízes numa “ética protestante” em que o mérito (e aí entram outras percepções interligadas a “dom”, “talento” e mérito esportivo dos atletas) tem relações diretas com outras percepções de predestinação: a recompensa, nesse caso o sucesso e a riqueza, são revelações pela vontade individual extremada. Um exemplo possível é o enredo de “Rocky um lutador”: o sujeito pobre, mas que com muita luta, e por isso mérito individual, alcança o sucesso nos ringues e na vida.
Joseph Campbell, incorporando elementos da psicologia junguiana, diria que essas expressões não são limitadas ao ocidente. A narrativa de um sentimento absoluto que inspira a jornada de um sonho > luta > realização, seria um arquétipo comum em forma de religiões e mitos heróicos de diferentes povos ao redor do mundo. Historicamente, os “heróis de mil faces” como Moisés, Cristo, Maomé, Buda. No plano individual, o arquétipo marcaria a passagem do indivíduo à vida adulta. No esporte, sustentaria a simbologia do atleta enquanto ídolo esportivo.
Norbert Elias chamaria a atenção de que não há jogo sem adversários. O jogo, e portanto a vitória, seriam formas civilizadas de, por alguns momentos, superar o “mal estar” de viver em sociedade. O descontrole controlado das emoções, sem destruir as diferenças. Diferenças que também nos constituem: afinal, “ser Ceará”, por exemplo, é antes de tudo “não ser Fortaleza”.
Esse conjunto de situações, até aqui, não tem maiores pretensões do que convergir para uma hipótese, bem polêmica é verdade, para explicar o sucesso dos esportes modernos nas sociedades contemporâneas: uma possibilidade civilizada de expressão máxima das subjetividades.
O vídeo abaixo “why do we fall?”/ “Por que caímos ?”, é um vídeo que viralizou nas redes sociais, em tempos recentes, e traz justamente essa leitura: o esporte como realização máxima, transcedental, do indivíduo.
Num dos trechos cita uma passagem da bíblia,
O reino de Deus está dentro de vós (Lucas, 17)
Pra fechar, em tempos de pós-modernidade, em que se lamenta o indivíduo líquido (Bauman), o indivíduo apenas das sensações superficiais e não dos sentimentos (Haroche), a certeza é que figura no mínimo instigante o porquê dessa permanência e sucesso na forma de vivenciar o esporte.
Aproveitem o vídeo e até a próxima!