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Esporte, religião e subjetividades

Daniel Vinicius Ferreira 17 de fevereiro de 2016

Ocidente, século XVI. Várias religiões surgiam na Europa, além da católica. Muitas delas permanecem ainda nos dias atuais (luteranos, calvinistas, presbiterianos, batistas, metodistas, etc.). Uma pluralidade de verdades absolutas (todos tinham a pretensão da “verdade” e de futuro) o que acabou culminando em guerras religiosas. Por isso, o Estado moderno se constituiria confinando as religiões, ou melhor, os sentimentos ao foro privado. Na esfera pública deveriam “manifestar-se” apenas as obrigações, e absoluto só o rei!

Vieram as revoluções burguesas, o contrato social entre os cidadãos, e a fé absoluta na razão e no progresso do século XVII e XVIII. Nesse contexto, os sentimentos (antes destrutivos, segundo a experiência histórica) continuaram confinados a esfera privada, mas ganhariam uma conotação artística com o romantismo, inspirando os nascentes esportes modernos:  ainda hoje usamos os distintivos dos clubes na altura do coração, numa entrega que se promete única, eterna, absoluta, sublime….transcendental!

“Uma vez Flamengo, sempre Flamengo…”

“Até a pé nós iremos, Para o que der e vier. Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver…”

“Meu Coritiba amo você, eu vou cantar o jogo inteiro pra você vencer!”

Poder-se-ia supor que o processo de profissionalização dos jogadores de futebol (no Brasil ele se dá mais efetivamente a partir de 1930) teria promovido uma forma mais desapaixonada de vivência do esporte pelos futebolistas, em relação ao restante da comunidade esportiva. Não é o que parece:

RIO DE JANEIRO, BRAZIL - JUNE 15: Lionel Messi of Argentina celebrates scoring his team's second goal during the 2014 FIFA World Cup Brazil Group F match between Argentina and Bosnia-Herzegovina at Maracana on June 15, 2014 in Rio de Janeiro, Brazil. (Photo by Matthias Hangst/Getty Images for Sony)
Messi faz gol e agradece aos deuses. Foto: Matthias Hangst / Getty Images for Sony.

Para o caso brasileiro, o antropólogo Arlei Damo afirma ser disseminado entre os atletas, em todo o processo de sua formação e quando atletas profissionais, uma ética do “dom” como dádiva. Ou seja, o futebolista geralmente remete sua habilidade, como jogador, as ideias de predestinação e religiosidade, incluindo este atleta em uma rede de reciprocidades e retribuição da dádiva quando famoso (por exemplo: ajudar familiares ou fazer assistencialismo). Se atentarmos para a força do cristianismo, sobretudo a partir do catolicismo e da religiosidade na América Latina, de uma forma geral, seria razoável imaginar que essa situação se estende por toda essa região.

E mesmo em sociedades de raiz anglo-saxônica sabemos, pela leitura weberiana, que a “ética do trabalho” e toda a formalidade daí decorrente, tem raízes numa “ética protestante” em que o mérito (e aí entram outras percepções interligadas a “dom”, “talento” e mérito esportivo dos atletas) tem relações diretas com outras percepções de predestinação: a recompensa, nesse caso o sucesso e a riqueza, são revelações pela vontade individual extremada. Um exemplo possível é o enredo de “Rocky um lutador”: o sujeito pobre, mas que com muita luta, e por isso mérito individual, alcança o sucesso nos ringues e na vida.

Joseph Campbell, incorporando elementos da psicologia junguiana, diria que essas expressões não são limitadas ao ocidente. A narrativa de um sentimento absoluto que inspira a jornada de um sonho > luta > realização, seria um arquétipo comum em forma de religiões e mitos heróicos de diferentes povos ao redor do mundo. Historicamente, os “heróis de mil faces” como Moisés, Cristo, Maomé, Buda. No plano individual, o arquétipo marcaria a passagem do indivíduo à vida adulta.  No esporte, sustentaria a simbologia do atleta enquanto ídolo esportivo.

Norbert Elias chamaria a atenção de que não há jogo sem adversários. O jogo, e portanto a vitória, seriam formas civilizadas de, por alguns momentos, superar o “mal estar” de viver em sociedade. O descontrole controlado das emoções, sem destruir as diferenças. Diferenças que também nos constituem: afinal, “ser Ceará”, por exemplo, é antes de tudo “não ser Fortaleza”.

Esse conjunto de situações, até aqui, não tem maiores pretensões do que convergir para uma hipótese, bem polêmica é verdade, para explicar o sucesso dos esportes modernos nas sociedades contemporâneas: uma possibilidade civilizada de expressão máxima das subjetividades.

O vídeo abaixo “why do we fall?”/ “Por que caímos ?”, é um vídeo que viralizou nas redes sociais, em tempos recentes, e traz justamente essa leitura: o esporte como realização máxima, transcedental, do indivíduo.

Num dos trechos cita uma passagem da bíblia,

O reino de Deus está dentro de vós (Lucas, 17)

Pra fechar, em tempos de pós-modernidade, em que se lamenta o indivíduo líquido (Bauman), o indivíduo apenas das sensações superficiais e não dos sentimentos (Haroche), a certeza é que figura no mínimo instigante o porquê dessa permanência e sucesso na forma de vivenciar o esporte.

Aproveitem o vídeo e até a próxima!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Vinicius Ferreira

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e Universitat Autònoma de Barcelona (doutorado sanduíche). Estuda a questão das identidades, pertencimentos e a globalização do futebol.

Como citar

FERREIRA, Daniel Vinicius. Esporte, religião e subjetividades. Ludopédio, São Paulo, v. 80, n. 8, 2016.
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