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Essa irreversível cultura dos árbitros de vídeo

Leandro Marçal 31 de outubro de 2017

Parece haver muito de 1984 em nossos tempos. Pouco me importo quando falam em uma nova profecia de Nostradamus sobre o fim do mundo. Mas se me alertarem de uma previsão na distopia orwelliana, tremo de medo. São câmeras e flashes nos observando por todos os lados.

E o futebol imita a vida lá fora: já reparou nos ângulos invisíveis para olhos de moscas, mas recuperados pelos infinitos replays da TV? Transformamos zagueiros e árbitros em vilões, como condena o tribunal da internet. Um julgamento que não é em câmera lenta, como a que ajuda os comentaristas.

O júri cibernético diário já me fez desistir de cutucar o nariz ao parar no semáforo e fazer sexo em locais públicos. Não pela proibição óbvia do bom senso, mas pelo medo de virar meme depois de um flagra das lentes ligeiras. E se houver ato de violência próximo às fortalezas apelidadas de condomínios, câmeras de segurança num país inseguro fazem a festa dos programas vespertinos e sanguinários.

E assim padronizamos nosso comportamento fora de casa ou dentro de campo. Eles põem a mão sobre a boca para fugir de leituras labiais. Nossa pisada no cocô do cachorro da madame é visualizado pelo porteiro em sua cabine fechada, protegendo-o do mundo e dos maus tratos da mesma madame e seu cãozinho das selfies.

Nem adianta reclamar ou discutir, os árbitros de vídeo são o caminho sem volta de um mundo distópico e filmado, reprisado, previsto. Somos o jogador gritando por um replay no gol impedido quando deixamos de curtir o momento do show ou balada, preocupados com um bom ângulo para aquele post no Instagram. As cabines vendo a repetição imitam os preciosos minutos parados em frente à tela para ver quantas curtidas ou visualizações tivemos.

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O árbitro de vídeo. Foto: Marcos Paulo Rebelo/CBF.

Não há muito que estranhar. Parar e reclamar fará de nós, no futuro, os velhos chatos das gerações passadas, os retrógrados parados no tempo. Mesmo que não haja vídeo nas divisões inferiores, onde mal há pagamento para quem produz o espetáculo.

Vai ser assim daqui em diante: câmeras, ângulos, cliques, filmagens de todos os lados e para todos os gostos. Se errar é humano, vamos nos render à tecnologia antes que O Exterminador do Futuro também vire obra profética, como o 1984 essencial para esses tempos tão Black Mirror.

Ninguém mais sairá impune ao passar a mão na bunda do atacante como Waldir Peres na final do Brasileiro de 77. Só os malucos pensarão em Zidanear um Materazzi folgado.

O sonho urbano será ter 15 minutos de anonimato. Nesse exato momento tem alguém te olhando. Quem sabe não acontece uma espionagem pelo olho orwelliano à sua frente no notebook ou no celular enquanto você lê essas mal traçadas linhas?

Talvez perca a graça discutir se houve impedimento ou não. A regra do futebol vai ser aplicada com tanta certeza que falaremos com sotaque saudosista dos erros humanos de outrora.

– No meu tempo, filho, as pessoas torciam pelos times de seu próprio país e havia discussões sobre gols mal anulados – repetirão os nostálgicos, em meio à impaciência do rebento.

Devo ser precocemente arcaico por não enxergar nesse esporte de 300 câmeras em campo o mesmo que a molecada joga na rua. E quando duvidam de mim ao comentar minha ida ao estádio na rodada passada por não ter tirado nenhuma foto, percebo estar em um caminho sem volta. Seus atalhos me assustam.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Essa irreversível cultura dos árbitros de vídeo. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 31, 2017.
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