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Essa violência é tão estranha assim? Revisitando memórias de perrengue em estádios

“Passar perrengue” é uma expressão corrente no Rio de Janeiro. Significa passar sufoco, passar veneno, passar (por) dificuldade. Talvez fosse mais corrente nos anos 1980 e 1990, quando eu era moleque e, depois adolescente. Guardo desta época vivas memórias de jogos de futebol assistidos nos estádios – quase sempre no Maracanã, próximo a minha residência atual. Às vezes, no Caio Martins, a algumas quadras de onde morei durante a maior parte da vida, em Icaraí (Niterói/RJ).

Uma violência estranha

Deixa eu começar essa história direito. Algumas semanas atrás, terminei a leitura de Entre os vândalos, livro-reportagem do jornalista estadunidense Bill Buford. Com alguns anos de residência na Grã-Bretanha, ele decidiu mergulhar no universo dos torcedores de futebol violentos (hooligans) e escrever um relato. Mas não, não farei uma resenha. Não quero discutir a forma, o conteúdo, a ética jornalística ou demais aspectos desta obra impressionante. Escrevo sobre o que a leitura me levou a pensar.

De cara, digo que o relato me causou impressões vivas – causaria em qualquer um, acho. Três trechos:

a) “E então Mick arrotou. Foi um arroto espetacular, longo e terrível, uma explosão lenta e brutal de inúmeras efervescências gástricas insalubres. Era um arroto que convidava a uma especulação: quanto às beberagens, às comidas e às possíveis quantidades que haviam contribuído para um borrifo tão potente que parecia elevar-se indefinidamente bem do fundo do torso torturado de Mick.” (p. 33).

b) “Harry não se deu conta de que a festa estava sendo promovida pela polícia (…), mas então era tarde demais. Harry já estava em pleno exercício de sua rotina – a pá, a mobília arremessada contra a janela, as garrafas quebradas, e assim por diante. Na briga que se seguiu, Harry atirou um dos policiais ao chão, ergueu-o pelo peito e então deu-lhe uma cabeçada – causando-lhe uma rachadura na testa, no limite do couro cabeludo. Com o golpe, o policial deve ter perdido a consciência, pois pareceu oferecer pouquíssima resistência ao que Harry fez a seguir: agarrou o policial pelas orelhas, levantou a cabeça até a altura de seu próprio rosto e se pôs a sugar um dos olhos do policial, forçando-o para fora da órbita até senti-lo estalar atrás de seus dentes. Então arrancou-o de vez.” (p. 242)

c) “Eu nunca estivera em uma multidão na qual as pessoas disparassem armas.” (p. 296)

Porém, como eu vinha dizendo, não é das reações ao relato que quero tratar. Falarei daquilo que o livro me vez repensar e relembrar. Sim, porque muita coisa aflorou à memória durante as semanas de leitura. Aliás, fazia tempo que eu não devorava um livro tão rapidamente. Freud explica?

Nas primeiras dezenas de páginas, pensava assim: “estranho”, “bizarro”, “como é que pode?”, “feio”, “o que é isso?”, “diferente de tudo que consigo imaginar”, a ponto de ser incompreensível. Será?

Revisitando memórias de perrengue em estádios

Com o correr dos dias, comecei a lembrar de episódios que vi ou vivi em idas a partidas de futebol. São histórias que recordo – memória, portanto. Não são exemplos com total fidelidade em relação ao efetivamente ocorrido, mas são o melhor que consigo em termos de exprimir em palavras aquilo que a mente é capaz de lembrar.

1) Na primeira metade dos anos 1990, nos jogos do Flamengo no Caio Martins, eu não só frequentava uma certa torcida organizada, usando camisa e boné dela, como entoava gritos sobre enfiar a porrada nos adversários e, em especial, nos membros de suas respectivas torcidas organizadas. Contudo, nunca fui de briga, muito menos por causa do Flamengo. Correspondia, portanto, ao que o senso comum vulgar (futebolístico ou não) carioca e de outras quebradas classifica como cuzão.

2) Em dezenas de partidas, entoei cânticos machistas, homofóbicos e xenófobos contra jogadores, dirigentes, juízes e, claro, torcedores adversários. Me atrevo a dizer que só não rolou racismo porque estava (e estou) na torcida do Flamengo: no caso do preconceito racial, as vítimas éramos e continuamos sendo nós.

3) Minha estreia em estádios foi aos oito, num Vitória x Flamengo, na Fonte Nova, pelo Brasileiro de 1986. O Flamengo ganhou de 1 x 0, gol de Bebeto – justo ele, ex-jogador do adversário. Havia muitos flamenguistas no estádio, reforçados pelos adeptos do tricolor baiano. Ao final da partida, confusão pra tudo que é lado. A partir daqui, a memória desvanece. Lembro vagamente de um tiroteio, de meu pai me mandando deitar na arquibancada e se deitando sobre mim, para me proteger. E acho – acho – que um amigo dele (em cujo carro fomos ao jogo), gente boa à beça, sacou o 38 da cintura e deu uns tiros.

4) Por falar neles, houve pelo menos duas ocasiões em que peguei um tiroteiozinho na saída do Maraca. Uma, na Avenida Maracanã. Eu e um amigo corremos para trás de uns carros estacionados próximo a um posto de gasolina e lá ficamos, até a coisa amainar. Outro foi na Rua Barão de Mesquita, perto do Colégio Militar (região tradicional de brigas e confusões). Mesmo procedimento: procurar um carro estacionado por perto e refugiar-se debaixo dele.

Briga de torcida – Corinthians (Instalação de jovens no Colégio Guilherme Dumont Villares, em São Paulo, sobre a violência das torcidas de futebol) – Foto: Milton Jung/Flickr

5) Certa vez, fui de geral a um Flamengo x Botafogo. Fomos no setor popular – extinto durante o Governo Rosinha Garotinho (então no PMDB) – porque éramos estudantes e, consequentemente, duros. E também porque minha companhia eram dois amigos: um, flamenguista; o outro, botafoguense. A geral nos possibilitava vermos o jogo juntos.

Na saída, a empresa responsável pela linha 703, a única que liga Niterói ao Maracanã, simplesmente retirara de circulação os ônibus. Resultado: uma caminhada do Maracanã até a Leopoldina, onde, pensávamos, conseguiríamos um ônibus para Niterói. Foram cerca de três quilômetros de caminhada por avenidas com raros pedestres, salvo alguns que saíam do jogo. Pouco após passarmos sob a passarela em frente ao início da Rua Senador Furtado, uma gangue pertencente a uma torcida organizada do Flamengo, aparentemente inspirada pelo nome da via, nos assaltou. Eu e o amigo flamenguista perdemos nossas camisas do mais querido e o dinheiro da passagem. Levaram o relógio velho que eu usava. Embora não tenha reagido e tenha obedecido às instruções, ainda apanhei: levei uma voadora no peito. Imagine o que teria ocorrido se meu amigo botafoguense estivesse com uma camisa do alvinegro…

A partir daí, só – novos – problemas: o contato com a polícia (“Quem manda ficar vindo ao Maracanã? Não sabe que aqui é violento?”, me aconselhou o PM), o fato de alguns passantes acharem que eu e meus amigos éramos criminosos (três moleques sem camisa sentados ao lado do carro da polícia), a dificuldade para voltar para casa sem dinheiro.

Conseguimos tomar o rumo de volta após caminharmos até a Praça da Bandeira, onde entramos num ônibus que ia para São Gonçalo. De cara, explicamos ao trocador – e a dois seguranças da empresa, sentados no último banco e aparentemente armados – o que ocorrera e, ainda bem, todos foram solidários. Para completar, ao finalmente ver aberta a porta de casa – horas após deixar o Maraca -, levei um esporro da minha mãe por estar “sem camisa”, ato classificado por ela como “irresponsabilidade”.

6) Teve também uns dois jogos entre Flamengo e Vasco, ali pela primeira metade da década de 1990, com estádio lotado, em que a principal (à época, ao menos) torcida organizada do cruzmaltino simplesmente começava a correr pelo meio do anel da arquibancada em direção da torcida adversária – em nossa direção. Estou falando de um movimento de dezenas de milhares de pessoas correndo e do pânico que se instalava na multidão pelo caminho – que, ato contínuo, começava a correr, em fuga. O horror, o horror. O resultado, à parte os envolvidos nas brigas, eram pessoas perdidas (de familiares e amigos), crianças chorando, gente pisoteada.

7) Lembro de quase ter sido esmagado nas colunas do acesso à rampa do Bellini, junto com meu pai, na confusão da entrada para assistir à vitória do Brasil sobre o Uruguai na última rodada (“final”) da Copa América de 1989. A pressão da multidão, como Buford relata, é algo impressionante e exige o aprendizado de técnicas avançadas de sobrevivência. No meu caso, incluíam uso de braços e cotovelos para não ser esmagado em quem estava à frente e para tentar desviar das colunas.

Briga de torcida – São Paulo (Instalação de jovens no Colégio Guilherme Dumont Villares, em São Paulo, sobre a violência das torcidas de futebol) – Foto: Milton Jung/Flickr

Polícia para quem precisa

8) Já na década passada (a primeira do século XXI), quando o padrão de civilidade avançara, em meio à confusão para a compra de ingressos para um Flamengo x São Paulo, um policial militar teve a brilhante ideia de aspergir spray de pimenta para ajudar a organizar uma fila. Foi a primeira e desagradável experiência que tive com o maldito spray.

O comportamento costumeiro da polícia nas bilheterias é um capítulo à parte. Não raro, em vez de chegar cedo e ordenar a distribuição das pessoas pelo espaço, garantindo a segurança de todos, aparece quando o pandemônio já está instalado e limita-se a distribuir porrada a torto e a direito, num comportamento completamente fora de lugar num Estado Democrático de Direito.

Teve também a vez em que a polícia montada usou os cavalos para esmagar os torcedores junto ao muro e, desta maneira, organizar a fila para entrada no Maracanãzinho. Mas, vá lá, nesse caso, não foi futebol – era uma final de basquete entre Flamengo e Vasco.

9) Lembro também de um jogo a que fui de geral, ainda adolescente, com um amigo. Otário, perguntei a um policial militar onde ficava a bilheteria que vendia entradas para o setor. Ele respondeu: “compra com ele ali”, apontando um cambista. Tentamos escapar, mas não teve jeito: compramos do cambista. Não satisfeito, o policial nos conduziu até a roleta de entrada:

– Agora vocês dão o ingresso pra ele [o bilheteiro] e passam por baixo.

– Como é?

– É isso que você ouviu, porra. Anda logo.

Fico pensando quantas vezes aquele mesmo ingresso foi reciclado, o quanto de dinheiro não entrou na renda do jogo e quantas pessoas estavam no estádio além do registrado no borderô.

Minha torcida, outras torcidas

10) Há ainda a experiência com torcidas organizadas adversárias. No caso dos times de fora do Rio, sem dúvida, minhas piores foram com as do Palmeiras, especialmente a maior delas. Uma vez, acho que em 1994. Se não me falha, o Flamengo venceu por 2 x 0, dois gols de Sávio, à época jogando o fino. Fui de geral (talvez tenha sido o mesmo jogo da história anterior). A certa altura, vejo pessoas correndo apavoradas, incluindo um cara com a cabeça sangrando. A tal torcida, da arquibancada, atirava pedras nos geraldinos flamenguistas.

Tem outra. Primeira rodada do Brasileiro de 2007. Eu caminhava sozinho rumo ao Maracanã quando, na altura da UERJ, avistei os ônibus das torcidas organizadas do Palmeiras chegando. Parei atrás de um poste, a cerca de 100 metros de onde os coletivos – acompanhados por escolta da PM fluminense – passariam. Sendo o único flamenguista nas redondezas, fui xingado por todos que acorreram às janelas dos coletivos. Em seguida, um estrondo bizarro: uma bomba explodiu a cerca de 50 metros de mim. Tal qual um jogo de xadrez, fui calculando os movimentos e levei cerca de meia hora para chegar à bilheteria, caminho que normalmente faria em cinco minutos. Durante o trajeto, passei ao largo dos ônibus, já estacionados, pois todas as janelas estavam fechadas. É que a polícia montada já havia descido a madeira (como diria Bezerra da Silva) e as espadas nos que estavam nas janelas.

Briga de torcida – Palmeiras (Instalação de jovens no Colégio Guilherme Dumont Villares, em São Paulo, sobre a violência das torcidas de futebol) – Foto: Milton Jung/Flickr

11) Teve também um Fluminense 1 x 0 América, no Caio Martins, cujo segundo tempo assisti na torcida do América. Eu levava, malocada na bermuda, uma bandeira do Fluminense que pertencia a um primo (que deveria ter me encontrado antes do jogo, mas não o fez, dado o pandemônio causado pelo afluxo de público – se não me engano, foram 7 mil pessoas naquela tarde maldita). Fui ameaçado por um integrante de torcida organizada do clube tijucano e escapei porque disse que era flamenguista, fato confirmado pelos amigos de escola que estavam comigo. No fim do jogo, quem apareceu para dar porrada foi uma torcida do tricolor, aproveitando a notória desigualdade numérica. Escapei, mas foi humilhante quase apanhar das duas torcidas presentes no estádio.

12) Houve um Fluminense x Botafogo pela Copa Sulamericana, ao qual fui acompanhando minha namorada na época, alvinegra. Clima horroroso do lado de fora: correria, bombas, pedras voando. Depois soubemos que, naquela tarde, houve troca de tiros – com morte de um torcedor – entre torcidas organizadas dos times próximo à sede de uma delas, no Méier.

13) Na final do estadual de 1995, conhecida como “jogo do gol de barriga”, daco o clima da semana e o fato de os ingressos haverem se esgotado antecipadamente – coisa rara na época -, parte dos problemas era previsível. Ainda residente de Niterói, fui na véspera para a casa do avô de um amigo, na rua Torres Homem, em Vila Isabel. No dia seguinte, almoçamos e caminhamos até o Maraca. Já saímos com os ingressos e o dinheiro dentro do tênis. No empurra-empurra próximo às roletas, meu amigo comenta: “Rafael, ainda bem que você falou pra trazer o ingresso no tênis. Já meteram a mão várias vezes no meu bolso.” Entramos.

O jogo foi emocionante e teve um desfecho trágico para o rubro-negro. Na saída, cenas de horror. Na pior, pai e filho caminhavam lado a lado, de mãos dadas, vestindo camisas do Fluminense. Torcedores do Flamengo obrigaram o pai a tirar a blusa e lhe espancaram na frente do filho. Horrores afins aconteceram nessa noite.

Em escala menor, também os vi após a fatídica final da Copa do Brasil contra o Santo André. Após a partida, sentados no finado Só Kana da Vila, eu e amigos assistimos a cenas feias do outro lado do Boulevard 28 de Setembro. Por exemplo, um cara que falava ao orelhão e apanhou de bobeira de um grupo que passava.

14) Houve uma saída de jogo em que caminhava com amigos pelos lados da Rua Arthur Menezes. Vimos um policial dominar um garoto que, acreditávamos (ou presenciáramos em flagrante, não lembro ao certo), havia roubado alguém. Um amigo solta a pérola:

– Mata logo.

– Não pode atirar! Tá errado.

– Não é pra matar? Não é pra matar um cara desses?

E seguiu-se uma discussão atravessada e um tanto rasa sobre direitos humanos, enquanto passávamos ao largo do policial, que, a essa altura, algemava o (provável) ladrão.

Não conclusão

Bom, o que concluir disso tudo? Não sei. Mas algumas coisas me ocorrem:

a) Não obstante esse cenário bizarro, nunca deixei de ir a jogos. Maluquice? Provavelmente.

b) Nos tempos em que a selva que descrevi era usual, por incrível que possa parecer, comprar ingressos com frequência era mais fácil que hoje em dia.

c) Aliás, parece que estamos passando da selva para a era dos ingressos (e tudo mais) a preços extorsivos sem termos chegado à garantia de direitos e à oferta de serviços decentes ao torcedor (ao menos do torcedor do Flamengo). Federações e confederações, clubes, empresas de comunicação, empresas patrocinadoras e empresas que gerem serviços relativos ao futebol (venda de produtos nos estádios, venda de ingressos etc.) violam sistematicamente o Código de Defesa do Consumidor, o Estatudo do Torcedor e, por que não, o Código Penal.

d) Continuam havendo problemas com as torcidas organizadas, mas eles me parecem significativamente menores que no passado. Para mim, a primeira metade dos anos 1990 é, de longe, o período mais violento. Já há alguns anos, a redução de problemas dentro dos estádios é notável – em parte, devido à lógica de restringir a circulação e separar radicalmente as torcidas.

e) Obviamente a situação no Brasil guarda distinções com a narrada por Buford – que, mesmo na Europa, melhorou desde então. Por exemplo, há uma enorme distância entre a ausência de armas de fogo por lá e a presença banal das mesmas por aqui.

Adendo sobre a tradução

A edição que li saiu em 2010 pela Companhia de Bolso, selo mais barato (na verdade, menos caro) da Companhia das Letras. O original inglês é de 1991 e a primeira edição da empresa brasileira saiu logo em 1992. Isto, talvez, ajude a explicar os graves problemas da tradução. Fico com três exemplos vocabulares (há problemas de semântica, de ritmo etc.):

a) usa-se “lançamento a gol” em vez do simples, direto e corrente “chute a gol”

b) “O [pub] Green Man, prosseguiu, jamais servira uma pessoa de cor. Nenhum negro ou asiático jamais tomara um drinque no Green Man. E todos os que trabalhavam no Green Man tinham orgulho daquele recorde.” (p. 142) Alguma dúvida de que a tradução apropriada do termo em inglês record, neste caso, seria histórico?

c) chama-se de Campeonato Inglês aquilo que seria mais apropriado denominar Copa da Inglaterra. E denomina Liga aquilo que o senso comum chama Campeonato Inglês.

São três entre os muitos que poderia citar. E olha que falo apenas dos que saltaram aos olhos, sem sequer ter visto o original em inglês.

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Rafael Fortes

É um dos editores do Blog História(s) do Sport: http://historiadoesporte.wordpress.com/

Como citar

FORTES, Rafael. Essa violência é tão estranha assim? Revisitando memórias de perrengue em estádios. Ludopédio, São Paulo, v. 38, n. 3, 2012.
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