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Esse coqueiro que dá coco II

Manuel Soriano 16 de abril de 2022

Não é só de lá pra cá. O Brasil, com sua música e ritmo, também influencia a forma como os outros sul-americanos torcem. Manuel Soriano, escritor argentino residente em Montevidéu, se dedicou a investigar origem e influência cultural brasileira na forma de… hinchar

Esse coqueiro que dá coco II

Eu também prefiro que o Brasil perca. Em qualquer momento, em qualquer circunstância , sempre prefiro que perca (isso se restringe ao futebol: não me incomoda que ganhem os seus nadadores, artistas, diplomatas, cientistas, tenistas ou supermodelos).

Não é que eu quero que perca porque não gosto como jogam. Ainda que isso pareça esquizofrênico, é exatamente ao contrário: quero que perca porque eu gosto como joga (eu me refiro ao estereótipo, é claro, e de um estereótipo hoje já quase esquecido).

Assisto a uma coletânea de jogadas do Rivelino no YouTube. É o meu driblador preferido. Depois vejo um vídeo dos dez melhores dribladores da história. Por que será que tantos dribladores são alcoólatras? Será que é possível realizar um estudo sério que relacione uma coisa com a outra? Eu me lembro de um dos primeiros jogos que disputei em umas férias no Brasil. Fiquei impressionado como todos ali tocavam a bola e continuavam a corrida sinalizando (quase obrigando) uma possível devolução. Até mesmo aquele jogador mais limitado tinha isso incorporado como parte natural do jogo. Eu me senti um torcedor.

Fiquei mais tranquilo quando escutei que o Roberto Perfumo dizia algo parecido sobre suas primeiras experiências no Cruzeiro: “Lá não existe esse negócio de tocar e ficar parado. Eles tocam e vão embora. Eu era o único que não fazia isso porque do contrário não ficava ninguém lá atrás”.

Eu queria que o Brasil perdesse até quando jogou contra a Inglaterra na Copa de 2002. Vi esse jogo em um bar, e diante do dilema pseudo-patriótico, a maioria (dos argentinos) terminou torcendo contra o Brasil sem que isso adiantasse muito porque naquela partida o Ronaldinho tinha 22 anos e começou a demonstrar o jogador que seria. Essa Copa, eu me lembro bem, coloquei o despertador para ver a final entre Brasil e Alemanha — que seria disputada na madrugada. Mas alguma coisa não funcionou. Quando acordei e olhei o relógio, alguém já era campeão do mundo há pelo menos duas horas.

Eu estava sozinho no meu quarto, na penumbra. Liguei a televisão sem sair da cama. Era uma TV velha. Primeiro vinha o som: escutei tambores, gritos e o agudo de uma cuíca. Depois uma espécie de faísca iluminava a tela e ela ligava: a primeira imagem que vi foram as pernas fortes e brilhantes de uma passista. Decidi desligar o aparelho, virei para o lado e nem fui atrás dos melhores momentos em outro canal.

A única coisa que não me torna completamente patético é o fato desse sentimento ser recíproco (estou generalizando, é claro): o Brasil também quer que a Argentina perca. Mesmo sem admitir, todos nós queremos ser o clássico de um rival igual ou melhor que a gente. E o Brasil é, historicamente, o melhor. Seria necessário um time de advogados caríssimos para desmentir isso. Podemos discutir individualidades (o Messi, o Maradona, o Di Stéfano) mas a nível de seleções, os fatos estão à vista e acho que até mesmo o próprio Ruggeri, no fundo, no fundo, sabe disso e acorda, vez ou outra, apavorado por essa certeza.

É bom que o Brasil devolva os maus sentimentos. Uma rivalidade não correspondida é mais triste que um amor não correspondido. Por isso não gosto quando argentinos torcem pelo Uruguai. Moro em Montevidéu há dois anos e desde então (assim como o dentista do Seinfeld que se converteu ao judaísmo para poder contar piadas de judeus) posso falar sobre isso com certa legitimidade. Argentinos, por respeito, torçam contra o Uruguai.

Mas voltando ao Brasil, é curioso que apesar da rivalidade futebolística, suas músicas tenham feito tanto sucesso entre as torcidas argentinas. Muitas dessas canções chegaram até nós através de um remix belga e é provável que esse fator tenha servido como moderador. Mas poucas pessoas sabem que eles são belgas (pouco se sabe sobre os belgas em linhas gerais).

Também faz senetido pensar que o torcedor de todos os domingos não tem a rivalidade com o Brasil como algo prioritário. Qualquer torcedor de um time argentino prefere que o seu rival doméstico perca contra uma equipe brasileira se jogarem por uma Copa internacional. Inclusive há um certo orgulho por pensar dessa forma: primeiro eu sou torcedor do meu time, depois eu sou argentino.

5. Amigo

Em 1977, Roberto Carlos compôs “Amigo”, dedicada a Erasmo Carlos — o seu companheiro na estrada artística. Dois anos mais tarde, um coral composto por crianças mexicanas usou a canção para receber o Papa João Paulo II na Cidade do México.

No YouTube é possível encontrar o vídeo que foi transmitido ao mundo todo naquele momento: do lado de fora, na praça, milhões de pessoas, e na igreja as crianças, vestindo calças brancas e blusas vermelhas com gola rolê, cantam “tu eres mi amigo del alma, realmente mi amigo”. O Papa sobe em direção ao altar e arruma seu chapéu. O diretor de câmeras se concentra em uma garoto loiro que em um determinado momento da música, quando diz “sonrisa y abrazo festivo a cada llegada”, se emociona e seca as lágrimas com o punho vermelho da manga.

A música foi um sucesso mundial e é utilizada como trilha sonora em milhares de vídeos no YouTube, principalmente em montagens de fotos com tom mais nostálgico e evocativo, do tipo “Ainda lembro de você, Andrés”.

Também foi utilizada como transição em um programa de entrevistas a jogadores de futebol. Não consigo lembrar qual era o nome do programa, mas o apresentador era alto e magro. A produção parecia a de um programa de TV a cabo dos anos noventa, mas apesar disso tudo eles conseguiam convidados importantes (como Roberto Carlos, o jogador). No final do programa a música “Amigo” tocava enquanto passavam imagens do entrevistador e do entrevistado trocando passes em uma praça qualquer, simulando uma jogada.

De repente eles marcavam um gol num arco improvisado, feito com moletons, enquanto alguém, provavelmente o produtor, fazia as vezes de goleiro. E era difícil marcar o gol porque o apresentador era alto e muito desajeitado. Porém, quando conseguiam, eles se abraçavam, a música aumentava o volume e ao vê-los assim eu sentia algo que era um misto de emoção, ternura e vergonha alheia.

A música “Se viene la banda de Merlo”, considerada por muitos como uma das melhores adaptações de todos os tempos, mantém o espírito de lealdade e afeto da canção original. É um desses cantos que até os torcedores de outros times reconhecem como algo valioso. Por exemplo, Nicolás comentou no YouTube: “Eu não sou torcedor do Merlo, mas quando cantam essa música eu tenho vontade de ir recuperar as Malvinas”. A parte a qual Nicolás se refere diz assim:

A los jugadores les pido que dejen la vida
Cuando yo me muera los voy a alentar desde arriba
Se viene la banda de Merlo
Se viene la banda de Merlo
Se viene la banda de Merlo
Parque San Martín

6. Ilariê

Essa eu vou apenas citar só para dizer que existe. Ilariê, da Xuxa. Na cancha é utilizada com “Es la hora de ganar”, e por mais que seja uma música que incentiva o time, pode causar um pouco de vergonha quando repete: “Oh, Oh, Oh”.

7. Mamãe eu quero

Mamãe eu quero. Este samba percorreu um caminho que a essa altura já conhecemos todos: foi composto em 1937 como marchinha para carnaval, depois foi feita uma versão em inglês cantada por Carmen Miranda e incluída no inexplicável filme “Down argentine way” (Serenata Tropical). Depois foi cantada também por Bing Crosby, Jerry Lewis, os irmãos Marx, Lucille Ball e Tom e Jerry.

O capítulo de Tom e Jerry é de 1943 e está no YouTube. Entre os milhões de comentários, as pessoas concordam que desenhos mesmo eram os de antes. Mas um usuário reclama dessa visão estereotipada que Hollywood tem sobre o Brasil. Diz que as maracas que o Jerry usa não são as mais apropriadas para tocar samba. Outro usuário responde pedindo para ele deixar de ser chato com todo esse revisionismo, que não são efetivamente maracas, mas sim chocalhos de bebê, e que também não dá pra tocar samba utilizando bigodes de gato, como o Jerry faz no vídeo utilizando os bigodes do Tom.

A música não mudou muito na sua versão de estádio. O torcedor pede a sua mãe que o time X ganhe e o ano todo será carnaval.

Essa música, quase uma pirraça, pode até parecer fora de lugar entre cantos que falam de coragem, brigas e pescoços quebrados, mas é de conhecimento público que nos países com influência italiana, até mesmo os sujeitos mais durões — criminosos, mafiosos, boxeadores — têm uma espécie de licença poética para mostrar seu lado “filhinho querido” sem que isso coloque em risco a sua reputação de macho alfa.

8. Whisky a Go Go

Essa não estava nos meus planos, mas um amigo meu, torcedor do River, chamou minha atenção e eu tive que adicioná-la.

A canção original é “Whisky a Go Go”, da banda carioca Roupa Nova, e só não entrou no CD belga do disco Samba apenas por uma questão cronológica. A versão de arquibancada diz:

Vamos vamos vamos River Plate

Yo te alentaba sin saber por qué

Ahora sé

Somos campeones otra vez

9. Chorando se foi

Madagascar, do insuportável grupo Olodum. A adaptação se aproveita da melodia no refrão e faz um joguinho de rima pré-escolar com algumas vogais.

Aquilo que nós, argentinos, conhecemos como Lambada também tem a sua adaptação de arquibancada. A versão que se adapta é “Chorando se foi”, do grupo Kaoma, que por sua vez se baseou na canção “Llorando se fue“, do grupo boliviano Los Kjarkas.

Llora la Academia

La Boca y el Ciclón

Porque X ya salió campeón

Essa crônica é parte do livro “Canten, puntos! Historia incompleta de los cantitos de cancha” que foi publicado, na Argentina, pela editora Gourmet Musical.


Puntero Izquierdo menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2020. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SORIANO, Manuel. Esse coqueiro que dá coco II. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 23, 2022.
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