Estrela Lusitana – Dakar, Senegal
Dakar, Senegal

O estádio Leopold Senghor, o maior do Senegal, está ocupado pelo exército. Tendas de campanha militar aglomeram-se debaixo das arcadas do recinto, enquanto milhares de recrutas, divididos em grupos distinguíveis pela cor do uniforme (vermelho, amarelo e azul), correm, cantam e montam a cavalo para preparar uma parada militar. Do lado de fora, junto a um dos campos de treino, Luís Norton de Matos reúne-se com a sua jovem equipe do Étoile Lusitana, que se veste ao ar livre mesmo ao lado de um militar que dá banho a um cavalo. O terreno de areia castanha-acizentada é paupérrimo para os padrões europeus mas é muito cobiçado em Dakar: “Todas as equipes da primeira divisão querem treinar aqui mas nós temos um contrato”, diz Norton de Matos. “Eles dão um péssimo uso ao relvado principal. Metem cavalos a pisar a relva, esquecem-se de desligar o sistema de rega e jogam com o campo alagado. Fica tudo estragado”.
Norton de Matos já está familiarizado com tudo o que África tem de bom e de mau. Chegou a Dakar em 2007 com o jogador senegalês que treinava no Vitória de Setúbal, Sogou. Viu dezenas de jogos de pés descalços, nos 21 bairros de Dakar, para escolher os primeiros 25 jogadores do clube que iria fundar – o Étoile Lusitana (Estrela Lusitana) – um investimento com capital de risco de 1,1 milhões de euros, obtidos através de uma parceria com um banco e com um empresário senegalês. “O grande objetivo é formar jogadores no Senegal e vendê-los para os clubes europeus, obtendo o retorno do investimento em seis ou sete anos”. O projeto começa a dar frutos. Dois dos futebolistas, Papadou Camara e Ibrahima M’ Baye, foram recrutados nos últimos meses pelo Standart de Liège e pelo Inter de Milão, respectivamente. “E poderão estar mais a caminho”, afirma o treinador português. Os jogadores africanos só podem entrar na Europa depois de completarem 18 anos, pelo que o trabalho do Étoile é formá-los entre os 15 anos e a maioridade.

Nesta altura, a equipe começa a desenvolver um exercício de contra-ataque. São essencialmente meninos de 16, 17 e 18 anos, muitos altos e com potencial atlético e, alguns deles, com um excelente toque de bola. Apesar da sua jovialidade, conseguiram posicionar-se em sexto lugar na segunda divisão sênior do Senegal e chegar à final da Taça de juniores. A estrutura física dos atletas foi um dos detalhes que fez com que Norton de Matos escolhesse o Senegal e não outro país africano para implementar o seu clube. Mas há mais: “Primeiro, a religião e a democracia tornam este povo muito pacífico. Em quase 60 anos de independência, ainda não tiveram guerra. Não há vistos, não há chatices e tenho voos diários para Lisboa. Depois, há uma desorganização tão grande no futebol que, ao contrário de países como Angola, Nigéria ou Costa do Marfim, os melhores jogadores não são logo recrutados pelas equipes de topo e posso ir buscá-los diretamente às ruas”, diz o treinador.
“Entrar no Étoile mudou a minha vida”, diz Atoumane Diang, atacante da equipe de 18 anos. “Jogava no bairro mas não havia regras. Fazia carrinhos agressivos e corria com a bola sempre para a baliza. Mas aqui aprendi a comportar-me dentro e fora do campo e a acreditar que posso ser profissional, jogar na Europa e ajudar a minha família”. O sentimento é partilhado por todos os colegas, principalmente depois de saberem que Papadou já ganha 4000 euros em Liège. “O Boloni ficou maluco com ele”, diz Norton de Matos. “E aqui pude ver o sentimento de gratidão dos africanos, já pouco comum na maioria dos seres humanos. Os amigos e a família vieram agradecer-me com um brilho nos olhos e disseram-me que nunca iriam esquecer o que fiz por ele”. Até a alimentação faz do Etóile um projeto inovador. Habituados a comer apenas uma grande refeição por dia, à base de arroz, e de complementar a nutrição com bananas e papaias, os atletas encontram no clube uma forma de passar a ter quatro ou cinco refeições por dia. Dos quase 60 rapazes do clube, 25 vivem em regime de internato numa vivenda com duas cozinheiras, que lhes dão os alimentos necessários. “Um jogador africano com 14 anos é superior a um europeu da mesma idade. Só precisa de ser bem trabalhado e bem nutrido”, diz o treinador.
O treino chega a metade. Os jogadores deslocam-se para um pequeno relvado maltratado onde jogam cinco contra cinco ao segundo toque. “Este é da Guiné-Conacry e é formidável. Vejam como corre”, diz Norton, apontando para um dos seus atletas. O português já viu entre 2000 a 3000 jogadores senegaleses. Vai para bairros populares como Pikine ou Medina, vê os jogos de rua, entra em casa das famílias dos jogadores e bebe chá com elas. “A princípio, foi difícil ter aceitação até porque sou o único treinador branco no Senegal. Mas já há quem me pergunte quanto é que se paga para ter o filho no Étoile. Não se paga nada. Nós é que pagamos tudo”, diz. Cada jogador representa um investimento mensal de 150 euros, por alimentação e transporte. “Há meninos que fazem 60 quilómetros para se treinarem. Têm de levantar-se às 5h para estar aqui às 8h”.


*Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes estão rumo à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. O texto foi adaptado ao português do Brasil.