Sair da área exígua delimitada pelas relações de poder, romper a linha de cor traçada pelo racismo e ascender à direção técnica do grande time, exigia do comandante negro a vontade inquebrantável de superar tais barreiras, bem como contar com a sorte e agarrar as oportunidades que surgiam, quase sempre em condições adversas, como a do Botafogo no transcorrer da disputa do Campeonato Brasileiro de 1972.
De fato, para avaliarmos a gravidade da situação do time de General Severiano, basta dizer que a imprensa da então Guanabara o rotulava como a “vergonha do futebol carioca”. As críticas incidiam sobre os atletas, acusados de “indisciplinados, irresponsáveis, arruaceiros”, e respingavam no treinador, Tim, condenado por perder o controle do grupo e demitido em função dos resultados negativos, os quais tornavam iminente a desclassificação da equipe na competição, àquela altura dada como “certa”.
Pois bem, foi nesse cenário de caos e descrença, em meio às suspeitas a respeito da capacidade técnica e do comportamento moral do elenco, bem como da crise de autoridade do treinador, que a diretoria do alvinegro decidiu entregar o time aos cuidados do auxiliar técnico, Sebastião Leônidas: “Uma escolha feita sem muita convicção”, salientava a matéria de O Estado de S. Paulo, mas que provara ser “a única capaz de arrumar o Botafogo”. [1] Já a cobertura do Jornal do Brasil adotava um enfoque diverso, ressaltando que a escolha do novo técnico se afigurava “lógica e natural”, à medida que se enquadrava na categoria da “solução caseira”, antiga tradição do clube da Estrela Solitária, ilustrada pelas trajetórias de João Saldanha, Paulo Amaral e Mario Zagalo.[2] A naturalidade que o periódico carioca atribuía à troca na direção técnica, no entanto, ocultava as tensões e conflitos presentes no episódio. Rudolph Fischer, o atacante argentino do Botafogo, não escondia de ninguém sua posição a respeito do novo técnico: “Não aceito ordens de um negro”.[3] Na imprensa carioca, recordava o próprio Sebastião Leônidas, muitos o viam como “um homem sem condições de comando”.[4] A solução, ao contrário do que sugeria a reportagem do Jornal do Brasil, estava muito longe de ser “lógica e natural”.
Considerado um “jogador clássico”, dotado de técnica “impecável”, Sebastião Leônidas chegara a General Severiano em meados dos anos sessenta, contratado junto ao América do Rio de Janeiro, clube que, por sua vez, o havia contratado ao América de Minas Gerais onde iniciara a carreira. Bicampeão carioca com o Botafogo, em 1967 e 1968, foi convocado para a Seleção Brasileira em 1970, sendo cortado no período de preparação em virtude dos problemas físicos que lhe abreviaram a trajetória, encerrada, afinal, no ano seguinte. Ato contínuo, o antigo zagueiro foi contratado pelo Botafogo para exercer a função de auxiliar técnico. Com a queda do treinador Tim, selada no início de outubro de 1972, ele obtinha a oportunidade de ocupar o cargo deixado vago. Pouco a pouco, Sebastião Leônidas foi restituindo à Estrela Solitária a confiança perdida e a calma necessária para voltar a brilhar nos gramados:
Para favorecer o velho amigo e ex-companheiro, para ajudá-lo a se firmar na posição – que ocupa até hoje apenas provisoriamente – os jogadores se transformaram.[5]
A transformação passava pelo caráter democrático da liderança exercida pelo comandante negro. Descontente com o recurso repetido e inócuo do “chuveirinho”, jogada que havia se tornado “um vício”, Sebastião Leônidas reuniu o elenco e promoveu um debate sobre a necessidade de recolocar a bola no chão, de sorte a resgatar o estilo de jogo da equipe, baseado na troca de passes. “Os jogadores ficaram satisfeitos já que há muito não tinham diálogo e quase todos falaram, opinando sobre a conduta do time”.[6] As contusões dos principais nomes do grupo: Roberto, Zequinha e Jairzinho, os salários atrasados do elenco e o problema contratual de Nei Conceição, figura-chave do meio de campo, constituíam, no entanto, um duro obstáculo para o trabalho de recuperação da confiança do Botafogo. Um mês após assumir o cargo, o Jornal do Brasil considerava ameaçada a classificação, mercê da “melancólica campanha” no Campeonato Brasileiro.[7] O ponto de inflexão, não resta duvida, chegaria numa quarta-feira à noite, no Maracanã, no clássico contra o Flamengo, a histórica goleada de 6 a 0, com direito a gol de letra de Jairzinho.[8]
Não é difícil imaginarmos o clima de euforia instaurado nos vestiários do Botafogo, invadido por jornalistas, dirigentes e torcedores em estado de êxtase. “A um canto”, porém, “quase sem ser percebido e muito menos solicitado, um negro alto, com um sorriso tímido, observava tudo”. Tratava-se de Sebastião Leônidas, que “saiu sem ser notado, assim como quando assumiu a direção do time”.[9] A cena simbolizava aos olhos da crônica esportiva a figura discreta do treinador alvinegro. Ele era caracterizado como um “crioulo de fala mansa”, dotado de “poucas teorias”, cujo principal traço de comportamento residia na “humildade”. Em síntese: o “bom negro”.[10] Esta identidade era evocada de forma obsessiva nas matérias que lhe eram dedicadas a fim de realçar a “liderança pacífica” que ele exercia, situando-o na condição do “antichefe”. Somente assim, isto é, como um “chefe” desprovido do exercício do poder e despojado do atributo intelectual, autorizava-se a presença do comandante negro em um lugar reservado ao treinador branco.
No entanto, exercendo o cargo com a discrição exigida pelo discurso de poder, restabelecendo a troca de passes na equipe, e assegurando aos atletas o direito de opinião, Sebastião Leônidas trouxe de volta a confiança perdida, conduzindo o Botafogo à decisão do título do Campeonato Brasileiro contra o Palmeiras, em dezembro, no Morumbi.[11]
Sem dúvida, uma reviravolta surpreendente, que nem o mais otimista e crédulo torcedor do alvinegro carioca esperava presenciar. Ela agora exigia uma explicação e a imprensa se dedicava em fornecê-la aos leitores. A metamorfose pela qual passara o time, desdobrando-se em campo, debatendo-se pela vitória, acumulando pontos, devia-se à figura de Sebastião Leônidas, cuja escolha para o cargo de treinador traduzira uma “antiga reivindicação” dos atletas.[12] Com ele no comando o elenco do Botafogo chegara às finais “por amizade” ao antigo companheiro.[13]
Temos, assim, mais uma variável a ser considerada na trama complexa envolvendo o destino do técnico negro no futebol brasileiro. Todavia, se as relações de amizade obviamente não esgotam a análise da questão em tela, ajudam-nos, no entanto, a compreender melhor a margem de ação que os sujeitos coletivos possuem para combater os preconceitos raciais, contornar as práticas discriminatórias e instaurar relações mais democráticas na esfera do futebol, porquanto restritas muitas vezes a uma determinada e solitária equipe, a qual, de resto, achava-se enquadrada pelas estruturas de poder mais abrangentes como revelava a sequência dos acontecimentos no clube de General Severiano.
Pois, mesmo levando o alvinegro ao vice-campeonato Brasileiro, não obstante tê-lo classificado para a disputa da Taça Libertadores da América, Sebastião Leônidas permanecera sempre na condição de “tapa-buraco”, conforme o termo utilizado pela revista Placar.[14] De fato, o revés dentro de campo determinara o fim da interinidade, admitia Sebastião Leônidas: “Sai porque disputei quatro títulos e não ganhei nenhum”. [15] Ele aludia, além dos dois torneios acima mencionados, à Taça Guanabara e ao segundo turno do Campeonato Carioca. Contudo, se a pressão decorrente dos resultados negativos torna compreensível, embora não necessariamente justificável, a demissão do treinador, o fato dele não encontrar a chance de prosseguir na profissão em outro clube de expressão nacional, constitui um mistério aparentemente impenetrável.
Com efeito, por que razão, após realizar um trabalho convincente em um grande time, o técnico negro quase sempre regredia na carreira, quer reassumindo as categorias de base do clube que o projetara, quer dirigindo uma esquadra pequena que o condenava ao ostracismo? Quais mecanismos impediam-no de trilhar o caminho da mobilidade vertical, de ascender e se firmar no exercício da profissão, pleiteando, por exemplo, o cargo de treinador da Seleção Brasileira? São estas as questões que abordaremos no próximo artigo, o último da série sobre o comandante negro.
[1] Cf. “Da indisciplina à grande decisão”, O Estado de S. Paulo, 23 de dezembro de 1972.
[2] Cf. “Novo técnico já estava preparado para assumir”, Jornal do Brasil, 4 de outubro de 1972.
[3] Cf. “Um crioulo muito digno”, revista Placar, nº 176, 27 de julho de 1973. Rudolph Fischer era atacante do San Lorenzo, e da Seleção Argentina, tinha sido contratado por indicação do técnico Tim. O Globo registraria posteriormente uma declaração bem diversa de Fischer sobre o técnico negro: “Leônidas é uma das pessoas mais leais que encontrei na vida”. Cf. “Fischer: a lição de responsabilidade”, 4 de novembro de 1972.
[4] Cf. “Leônidas acha que a união fez renascer velho estilo”, Jornal do Brasil, 17 de novembro de 1972.
[5] Cf. “Da indisciplina à grande decisão”, O Estado de S. Paulo, 23 de dezembro de 1972.
[6] Cf. “Leônidas não quer cruzamentos sobre a área”, Jornal do Brasil, 18 de outubro de 1972.
[7] “Botafogo perde de novo, é uma rotina”, Jornal do Brasil, 8 de novembro de 1972.
[8] Cf. Botafogo vence de 6 e deixa Fla em má posição”, Jornal do Brasil, 16 de novembro de 1972.
[9] Cf. “Leônidas, a humildade do aluno aplicado”, Jornal do Brasil, 16 de novembro de 1972.
[10] Cf. “Um crioulo muito digno”, revista Placar, nº 176, 27 de julho de 1973. “Sebastião Leônidas”, revista Placar, nº147, 5 de janeiro de 1973. Cf. “O Ajax que se cuide”, revista Placar, nº 160, 6 de abril de 1973.
[11] O título foi decidido em partida única, realizada em São Paulo, devido à pontuação obtida pelo Palmeiras, primeiro colocado na classificação geral.
[12] Cf. “Jogadores ficaram alegres com mudança”, Jornal do Brasil, 4 de outubro de 1972.
[13] Cf. “Da indisciplina à grande decisão”, O Estado de S. Paulo, 23 de dezembro de 1972. Ver, também, a reportagem “Esforço por Leônidas”, Jornal do Brasil, 15 de outubro de 1972.
[14] Cf. “Sebastião Leônidas”, revista Placar, nº 471, 5 de janeiro de 1973.
[15] Cf. “Um crioulo muito digno”, revista Placar, nº 176, 27 de julho de 1973.