“Eu lembro quando meu irmão estava no intercâmbio e eu ia a uns jogos bem meia-boca no Monumental, que ninguém queria ir.

Minha mãe perguntava:

– Vai sozinha?

– Não, mãe. Terão outros dez mil comigo”.

(Mairana Medeiros)

A microcrônica que abre este artigo, como já informado, é de autoria da amiga Mairana Medeiros, uma gremista de Porto Alegre que já morou alguns anos em João Pessoa, época em que passou a acompanhar de perto e a nutrir afetos pelo Botafogo da Paraíba. Foi desse período em terras paraibanas que a conheci.

O texto foi retirado, com a autorização dela, de um post do Twitter. Escrito despretensiosamente, com a coloquialidade que as redes sociais nos autorizam, eu me resumi a fazer poucos ajustes pontuais para apresentá-lo aqui, sem no entanto mudar palavras ou sentidos do que foi escrito por ela.

É uma microcrônica de beleza ímpar, que em certos aspectos lembra as crônicas curtas que o escritor Eduardo Galeano (2010) incluiu em seu magnífico “Futebol ao Sol e à Sombra”.

Aliás, já que estamos falando de Galeano, não é muito difícil perceber, ao conhecê-la, que Mairana é também “uma mendiga do bom futebol”, tal como se arvorava o uruguaio. Que se encantava em andar pelo mundo, chapéu na mão, de estádio em estádio, independente de ser partida de seu clube do coração, a suplicar por uma linda jogada.

Mas, naquele dia citado, era sim jogo do Grêmio. E o local a que ela se referia era o mítico e saudoso Estádio Olímpico Monumental.

Estádio Olímpico Monumental
Estádio Olímpico Monumental. Foto: Wikipédia

É por tudo isso, pois, que a crônica de Mairana me encantou tanto.

Em poucas palavras, em um texto bem curto, numa mensagem aparentemente simples e direta, a autora fala de muitas outras questões que há muito são analisadas pela antropologia das práticas esportivas.

Mairana nos remete à ideia de “casa” que o estádio de futebol nos oferece. Estádio com “memória”, que “suspira de nostalgia pelas glórias do futebol”, apenas para insistir no diálogo com Galeano (2010). Lugar antropológico (AUGÉ, 1994) de sentimentos topofílicos (Bale, 2003) aflorados.

Não é apenas um prédio, uma construção inanimada. É parte de sua vida, de suas conquistas, de suas experiências sensoriais, de suas alegrias e temores. O nome é o próprio endereço e não precisa de mais nada para dialogar com os seus pares.

Pares esses, aliás, que não a permitirá estar sozinha jamais. Uma coletividade torcedora que nasce mesmo em meio a diferenças existentes na própria cidade, que possui divisões e conflitos internos, mas que, justo na percepção da existência de um “outro” em relação a um “nós”, se enxergará como uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008) formada por gremistas apaixonados que se reconhecem aonde estiverem.

Comunidade imaginada, a propósito, que é forjada nas dores e nas glórias. Nas derrotas e nas vitórias. Nos choros e nos arrebatamentos. Na negociação estratégica das diferenças diante de anseios comuns. No ritual semanal de voltar à casa, para cantar, pular e viver, mais uma vez para junto dos dez mil que, não raro, se acolherão mutuamente.

Não tem mesmo como se sentir sozinha em meio a uma imersão coletiva dessas que o futebol proporciona.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

AUGÉ, Marc. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1994.

BALE, Jhon. Sports Geography: second edition. London and New York: Routledge, 2003.

GALEANO, Eduardo. Futebol ao Sol e à Sombra. Trad. Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2010.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. “Eu e mais dez mil”. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 38, 2022.
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