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Evolução e percalços do futebol feminino no Brasil

O esporte do povo. A alegria do brasileiro. A modalidade que tem um rei. Assim é a imagem do futebol na ótica do povo que veste verde e amarelo a cada quatro anos e ecoa aos quatro ventos aquele famoso “Pátria amada, Brasil”. No entanto, quando essa visão macro se restringe ao futebol feminino, há apenas vultos e confusões.

Corinthians, bicampeão do Campeonato Brasileiro e Estadual. Foto: Lucas Figueiredo/CBF

No início de dezembro, o Corinthians sagrou-se bicampeão da série A do Campeonato Brasileiro Feminino. Já no último domingo, 20, a equipe paulista ergueu a taça do Estadual e também foi bicampeã. Apesar de muitas goleadas, comemorações e supremacias, o clube paulista, infelizmente, é uma exceção diante da realidade do futebol feminino no país.

Para além da exceção, a regra

O jogo entre Guará e Treze, em outubro de 2019, válido pela 3ª rodada do Campeonato Paraibano de Futebol Feminino, foi cancelado, devido à falta de socorristas, fato que marcou um dos problemas estruturais mais comuns do futebol feminino da Paraíba. A Federação de Futebol Paraibano (FPF) não exige a presença de ambulâncias nos campos em torneios dessa modalidade, mas sim de um bombeiro civil ou um socorrista.

Nenhum desses profissionais estava presente até o horário marcado para o jogo. A arbitragem, que ainda esperou até o tempo limite no local, resolveu cancelar a partida. Dois relatórios foram emitidos, um para o Tribunal de Justiça Desportiva de Futebol da Paraíba (TJDF-PB) e outro para o Departamento de Competições da FPF, ambos feitos pela arbitragem e pelo delegado do jogo.

Na segunda-feira, 7 de outubro de 2019, a FPF decretou a vitória do Treze por WO, por meio de um ofício. De acordo com o artigo 20 do regulamento do Campeonato, “fica sob a responsabilidade do clube mandante manter no estádio um socorrista e oficializar o pedido de policiamento para a realização do jogo em questão”. Na ocasião, o Guará detinha o mando de campo.

Incêndio no CT do Guará destrói toda a estrutura e material do time. Foto: Reprodução/Redes Sociais do clube

Em julho de 2020, o alojamento do Guará foi destruído por um incêndio e o time perdeu todo o material esportivo. De acordo com Robson Xaviar, presidente do clube, tudo foi totalmente perdido.

“Todo nosso material de jogo e treino, bolas, cones, geladeira, máquina de lavar, televisão… Perdemos tudo. E o prédio em si está todo comprometido e possivelmente terá que ser demolido para construir outro – comentou o dirigente.” – Robson em entrevista ao Globo Esporte.

Ele também afirmou que a causa do incêndio poderia ter sido um curto-circuito, que já teria acontecido antes, e que daquela vez causou um estrago maior. Desde então, a equipe que nasceu como projeto social e hoje integra o futebol paraibano, luta para se reerguer em meio às dificuldades. Com uma Vakinha Virtual, a qual tem 80 mil reais de meta, o time pretende se estruturar novamente, porém, até a data desta publicação, apenas R$ 350,00 foram arrecadados.

Ajude em: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/ajuda-para-o-incendio-do-projeto-social-guara-esporte-clube

A desordem estrutural

Em junho de 2019, a Federação Paulista de Futebol (FPF) realizou a 3ª edição da peneira feminina na categoria sub-17, a fim de selecionar garotas para atuarem em alguns clubes paulistas. Olheiros de várias equipes do estado observaram mais de 400 jogadoras, que tinham entre 14 e 17 anos. Dentre elas, Maisa Gomes Ferreira foi selecionada para integrar o time Estrela de Guarulhos, com a promessa de que seria beneficiada com alojamento e alimentação. No entanto, a jogadora não pôde ficar no alojamento, pois, segundo Guilherme dos Santos, diretor do time – em entrevista ao Profissão Repórter, da TV Globo –, o lugar já estava lotado e ela ainda precisaria arcar com a alimentação.

Mais um exemplo de desordem aconteceu no Campeonato Paraense de Futebol Feminino, que ainda naquele mesmo mês, só contava com três partidas confirmadas. Três dos dez times que compunham a competição não conseguiram regularizar suas atletas a tempo para o início da disputa.

Situações como estas expõem o despreparo de muitos clubes espalhados pelo país, que sofrem com campos irregulares, repletos de buracos, falta de salário e de estrutura. Condições como essa foram denunciadas, também em 2019, por Sofia Sena – na época, jogadora do Sport Club do Recife -.

O time nordestino oferecia o campo auxiliar da Ilha do Retiro, que não tem grama para que as jogadoras treinem, mas não tem uma preparadora de goleiras. Depois de perder por 9 a 0 para o Santos, Sofia declarou, em entrevista à CBF TV:

“Elas treinam todo dia. A gente mal tem horário ‘pra’ treinar. Elas convivem mais com a bola e a gente mal toca na bola. O que falta mesmo ‘pro’ Sport é foco do clube em nós, (…) é uma dificuldade tremenda ‘pra’ isso acontecer. Não tem prioridade para o feminino. Treina do jeito que pode, tem uma professora para ensinar vocês, tem uma bola, e se vira. E o resto a gente resolve (referindo-se ao time). Isso não vai ganhar jogo. A gente pode ter raça, pode ter amor, mas isso não vai ganhar jogo”.

Ainda no Nordeste, o União Desportiva Alagoas (UDA), em 2019, contava com um teto salarial de 300 reais. O clube é conhecido na região por revelar destaques para o mundo da bola, além disso, é o único voltado exclusivamente para o futebol feminino. Atualmente, a agremiação conta com patrocínio da Secretaria de Esportes do Estado, o que rendeu às jogadoras um lugar fixo para treinos e transporte para os jogos, apoio que antes não existia, porém, foi o único reconhecimento que o clube teve nos últimos anos.

Ventos de mudança

Apesar de sofrer muito preconceito e muita dificuldade, o futebol feminino resiste, diariamente, é inegável, principalmente como espaço de inclusão. No último dia 20 de dezembro, a jogadora Sheila Souza se tornou a primeira mulher trans a se profissionalizar no futebol feminino do Brasil. A lateral-direita de 21 anos atua no clube baiano Desportiva Lucasa, mora no Centro de Treinamento da equipe e recebeu acompanhamento especializado para regularizar sua situação junto à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e à Federação Baiana de Futebol (FBF). Há outros casos de jogadoras trans no futebol, no entanto, todas atuavam em equipes semi-profissionais.

Elenco do Botafogo de 2020. Foto: Reprodução/Site oficial do time.

Nessa semana, a equipe feminina do Botafogo conseguiu o acesso para a série A2 do Brasileirão Feminino. O time venceu o Ceará, por 2 a 1, na partida de ida, e na volta, mais uma vitória, dessa vez por 1 a 0. O futebol feminino do clube carioca existe desde os anos 90, mas foi só naquele domingo, 13 de dezembro de 2020, que pela primeira vez na história do time, seu elenco feminino jogou no estádio Nilton Santos. As gloriosas, como são conhecidas, evidenciam uma onda de reconhecimento, triunfo e respeito que elas consquistaram ao longo dessa trajetória.

Até quando dificuldade ainda será realidade?

Realidades como a que os times femininos de Corinthians e Botafogo vivenciaram em 2020 ainda são vistas como utopia por muitas jogadoras. Um clube que investe no time feminino profissional, que oferce estrutura, apoio e reconhece suas atletas ainda não é, infelizmente, uma ‘regra’, mas sim uma exceção.

O descaso como nos episódios expostos, lamentavelmente, é frequente no futebol feminino do Brasil. Todos os dias, alguma atleta enfrenta as piores condições para ir atrás de seu sonho. Entretanto, nem todas conseguem as mesmas oportunidades. Essa realidade continuará presente, caso as vozes de quem vivencia tais situações continuem silenciadas. No entanto, cada vez que algum clube profissionaliza uma equipe feminina, o futebol respira.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Lúcia Oliveira

Amante da comunicação, da escrita, da fotografia, do futebol, da literatura, do jornalismo, entre outras coisas. Escrevo para eternizar e vivo para escrever.

Como citar

OLIVEIRA, Lúcia. Evolução e percalços do futebol feminino no Brasil. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 51, 2020.
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