Em memória de Selvino Assmann, torcedor do Inter, tifoso da Roma.

 

Em 1990, meses antes da Copa do Mundo daquele ano, dentro de um ônibus lotado, eu vi duas menções a jogadores brasileiros grafitadas nas paredes do Estádio Olímpico, em Roma. A primeira, nada lisonjeira, era dedicada a Renato Portaluppi, que atuara, sem brilho, por uma temporada pelo clube que leva o nome da cidade. A segunda era sobre Falcão, e logo depois do seu nome aparecia o título que se lhe outorgara na capital italiana: Rei.

Ouvi falar de Paulo Roberto Falcão ainda na infância mais antiga, ao começar a me interessar por futebol e vê-lo ser bicampeão brasileiro com o Internacional de Porto Alegre, vencendo o Corinthians em jogo único no Beira-rio. Estávamos em 1976 e o time se tornara octacampeão gaúcho. Equipe muito bem montada, tinha na zaga o chileno Elias Figueroa e Marinho Perez, titular do Brasil na Copa de 1974, além de um ataque demolidor com Valdomiro na ponta-direita e Dario no centro. No gol estava o veterano Manga, famoso pelos anos de Botafogo e que fora contratado junto ao Nacional, de Montevidéu. No meio-campo reinava, soberano, o jovem Falcão. Habilidoso, técnico, com uma condição física excepcional, corria de área a área, marcando, armando, finalizando. Dizia-se que seu coração em repouso não batia mais que 36 vezes por minuto, e que o resultado de seu Teste de Cooper (a máxima distância a ser percorrida em doze minutos, instrumento muito em voga na época) superava os 3600 metros.

Falcão não viajou ao Mundial de 1978, na Argentina, naquela que foi a maior injustiça da convocação de Cláudio Coutinho. No ano seguinte, já frequente no selecionado nacional, foi o grande protagonista do terceiro título nacional do Inter, com direito a atuações antológicas, como a contra o Palmeiras, no Morumbi, na vitória por três a dois, com dois gols dele, os da virada, um de cabeça, outro ganhando uma dividida. O alviverde paulista, uma das sensações de 1979, era dirigido por Telê Santana, que logo se tornaria treinador da seleção brasileira e que fora técnico do Grêmio no ano anterior, quando o tricolor gaúcho quebrou a sequência de oito título regionais seguidos do Colorado.

O Inter chegou perto de vencer sua primeira Copa Libertadores em 1980, às vésperas da transferência de Falcão para a Roma. Fiquei desapontado pela perda do título frente ao Nacional, no mítico Centenário, em Montevidéu, menos porque se tratava de um time brasileiro, mais porque era a despedida de Falcão. A chance do título inédito, que ele tanto quanto o time mereciam, foi perdida, mas não sem muita luta. O troféu foi erguido por Hugo de León, capitão uruguaio, que seria ainda campeão pelo Grêmio e novamente pelo Nacional, da mesma Libertadores. O ótimo zagueiro, que também se destacou na seleção uruguaia, foi vencedor ainda das três Copas Intercontinentais que jogou.

Paulo Roberto Falcão, com a camisa da Roma, na temporada 1983-84. Foto: Wikipedia.

Nos anos seguintes Falcão tornou-se, como todos sabemos, o Rei de Roma. A TV Bandeirantes ainda não inaugurara as transmissões do calcio nas manhãs de domingo, de forma que fomos nos surpreendendo, pelos lances isolados mostrados na TV e pelas notícias da imprensa escrita, com a ascensão meteórica do novo time daquele gaúcho nascido em Santa Catarina. De equipe de meio de tabela a Roma chegou ao vice-campeonato no primeiro ano com seu novo camisa 5, para no segundo alcançar o scudetto depois de quase quatro décadas de jejum. Ele foi o grande astro em uma squadra em que também jogava um dos principais treinadores do mundo hoje, o ótimo jogador Carlo Ancelotti. Três Copas da Itália também foram vencidas naquela primeira metade dos anos 1980. Antes do Milan de Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Marco van Basten (e de Silvio Berlusconi), brilhou a Roma. De Falcão.

Por tudo isso foi para mim tão emblemático chegar à velha Roma, duas décadas depois da última vez em que aqui estivera, e, ao procurar um canal de esportes na TV, deparar-me com um programa especial sobre Falcão e sua trajetória na Itália. Gols de todos os tipos, passes geniais, ocupação de espaços, comando da equipe, glória nas arquibancadas, nas ruas, na memória onírica dos tifosi romanos.

Depois de encerrar a carreira de jogador (sua primeira morte, como disse certa vez), Falcão atuou principalmente como comentarista de televisão e técnico de futebol. Com muito sucesso na primeira função, teve êxito ocasional na segunda, que se iniciou – como aconteceria com Dunga anos depois – nada menos que como treinador da seleção brasileira de futebol. Incumbido de renovar o escrete depois do fracasso no Mundial de 1990, quando a equipe nacional, mesmo jogando bem, sucumbiu nas oitavas de final frente à Argentina de Diego Maradona e Claudio Caniggia, o novo comandante dirigiu o time em uma partida histórica, o amistoso contra a seleção da FIFA. Entre os onze que iniciaram aquela partida, Cafu estava no meio-campo e Pelé envergava, claro, a camisa 10. Era seu cinquentenário e em sua honra a partida seria jogada. O maior jogador que o mundo já viu atuou bem enquanto teve fôlego e poderia ter feito um gol, não fosse Rinaldo, atacante do Fluminense, tão fominha a ponto de negar-lhe a assistência e tentar, ele mesmo, a finalização. Suponho que ninguém no San Siro, em Milão, tenha deixado de vaiar o que se acabara de presenciar. Pelé seria substituído por Neto, a grande estrela do segundo semestre daquele ano, comandante do Corinthians em seu primeiro título brasileiro. O combinado adversário foi vencedor e nos meses seguintes seguiu o processo de remontagem da equipe nacional.

O epílogo da primeira experiência de Falcão como técnico foi logo em 1991, quando a seleção alcançou o segundo lugar na Copa América. Não bastou. Havia meses que parte da imprensa, e logo também alguns astros do futebol, fazia campanha encarniçada contra o ex-jogador. Eram tempos de comentários muito mais ácidos e sem cuidados, de discussões mais calorosas ao vivo e, em uma delas, Falcão chegou a dizer a um dos comentaristas que este já não percebia o quanto era preconceituosa a avaliação que fazia, uma vez instalada, já de forma inconsciente, a má vontade em relação ao trabalho que ele vinha desenvolvendo.

Falcão é um grande personagem do futebol, um gentleman que nunca deixou de mostrar a garra necessária para um competidor de alto nível. Foi um jogador genial. A linda homenagem de Kleiton e Kledir Ramil à cidade de Porto Alegre diz, lá pelas tantas: “Que saudade da Redenção / do Fogaça e do Falcão”. Vida longa ao Rei de Roma.

Roma, janeiro de 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Falcão. Ludopédio, São Paulo, v. 116, n. 9, 2019.
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