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Família, paternidade e “o psicológico” na Copa do Mundo de 2022

Na semana de estreia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de Futebol Masculino FIFA 2022, chamou-nos a atenção no noticiário a relação entre as famílias dos jogadores e os momentos finais da preparação da equipe para o mundial.

Em alguns grupos de whatsapp frequentados por profissionais da Psicologia do Esporte, antes mesmo do início do mundial, circulava uma reportagem sobre a abordagem motivacional do técnico Tite no Centro de Treinamento em Doha, onde a Seleção Brasileira passaria, com muita torcida, o próximo mês. Conhecido, não somente, mas também pelas suas frases de efeito, o técnico solicitou que mensagens fossem estampadas em paredes do CT: “Confiança não se pega e se solta quando se quer”, “Aproveite o momento de confiança”, “Preparem-se bem para merecer vencer”, entre outras.1

As estratégias motivacionais não param por aí. Além das frases, impossíveis de não serem notadas no contraste entre o verde e o amarelo, chamou também a atenção dos jornalistas que conheceram o local a “modernidade” do CT, equipado com um bom gramado e tecnologia de ponta, com imagens de ídolos de outras copas, e com a privacidade proporcionada por sua arquitetura (e, seguramente, pela vigilância) contra espiões internacionais da bola.2

seleção brasileira
Foto: Lucas Figueiredo/CBF

No “moderno” CT, ainda, um espaço de convivência destinado a familiares, amigos e convidados dos atletas. Sobretudo os familiares, sabemos, os maiores e mais próximos torcedores dos jogadores, não somente pelo esporte, mas também pelos vínculos afetivos, diferenciados dos de outros torcedores, e pelo sucesso de um empreendimento familiar.

Em meio a notícias e debates sobre a contusão de Neymar e Danilo, na cobertura televisiva aberta, era notícia a participação de filhos dos jogadores nos treinamentos (chamado de “momento fofura”), o jantar com amigos e familiares após à primeira vitória da seleção, em meio a comentários de que os jogadores ficariam mais felizes perto das famílias.

Outros comentaristas, mais “mal-humorados”, criticavam esse ponto da estratégia familiar-motivacional de Tite, questionando essa presença tão próxima, ainda sob um paradigma que entende que a concentração máxima de jogadores só é possível no isolamento quase total de suas vidas.

Acompanhando as notícias quatro dias antes da estreia do Brasil na Copa, o menino Benício, de quatro anos, gritou pelo pai, Lucas Paquetá. Distantes desde a concentração da Seleção, na Itália, o menino chorou pelo pai que subiu as arquibancadas para acudi-lo. Ao mesmo tempo que a chamada do Instagram do programa Globo Esporte já antecipava o “momento fofura”, o comentarista esportivo João Paulo Cappellanes, da Rádio Bandeirantes, criticou o episódio no Twitter: “Cara, não quero ser chato, mas será que os jogadores não conseguem ficar 30 dias totalmente focados e longe da família?! 30 dias não vai [sic] tirar pedaço de ninguém, né?! Porra?”… Pedaço talvez não tire, mas acreditamos que a pergunta mais pertinente deveria ser: precisa? É necessário ficar trinta dias longe da família? Um jogador de futebol não pode ser pai? A paternidade dificulta o desempenho esportivo do jogador? É isso que poderia nos tirar do caminho do hexa?

Paquetá
Paquetá abraça os filhos e a esposa. Foto: Reprodução

Sim, filho demanda, sim, filho atrapalha,3 sim, filho é atribuição dos adultos responsáveis por seus cuidados. Em 2018, seis dos onze titulares da seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia cresceram distantes do pai biológico.4 Em agosto deste ano já tínhamos mais de cem mil crianças nascidas em 2022 no Brasil registradas sem o nome do pai.5 E isso, será que não atrapalha?

Questões paternas não apareceram nos noticiários somente relacionados à Seleção Brasileira. O grande destaque individual do jogo de abertura da Copa do Catar foi o equatoriano Enner Valencia, autor dos dois gols de sua equipe diante da seleção local. Em 2016, o atacante fingiu uma lesão para sair do estádio e não ser preso pela falta de pagamento de pensão para sua filha.6 A polícia não conseguiu prender o jogador por ele ter saído de ambulância direto para o hospital. Neste intervalo, entre o estádio e o hospital, seus advogados conseguiram reverter a ordem de prisão e o jogador permaneceu em liberdade. Nos pareceu bastante curioso o tom anedótico apresentado nas reportagens sobre o episódio. Não conseguimos perceber um esforço jornalístico para buscar verificar se era um caso isolado ou se a relação de atletas com filhos de relacionamentos anteriores e o pagamento de pensão pode ser entendido como um problema com alguma regularidade. Na Seleção Brasileira, o jogador Éder Militão também enfrentou disputas judiciais referentes ao pagamento de pensão para sua filha. Tal situação acabou gerando um grande número de “memes” sempre com o defensor como protagonista.

Nos discursos expostos anteriormente convivem, portanto, “duas famílias”: a) a primeira, que sustenta “o psicológico”,7 essa “entidade” mistificada e, com frequência, pouco discutida abertamente e com profundidade no futebol masculino, contribui para o bem-estar e a motivação do jogador e do time, podendo até mesmo fazer as vezes de substituta de profissionais de psicologia, que, segundo Tite, embora não rechaçados, não teriam tempo hábil para construir conexões e vínculos com os jogadores na Copa.8 Essa família impõe um sobrenome e pode produzir um lugar um tanto fixo na relação entre seus membros. Essa fixidez imposta pela família ajudaria a controlar a irrupção de comportamentos masculinos não canalizados para a competição, que poderiam atrapalhar durante o período da copa do mundo. Ela acaba funcionando como uma instância que poderia refrear os impulsos e ordenar os comportamentos de forma bastante ativa; b) a segunda família é a que atrapalha a concentração, interrompe o descanso dos jogadores e, também, coloca os atletas em dificuldades com a justiça. Atravessando esses discursos, ampliando o foco sobre essas famílias (cisheteronormativas, as enaltecidas, nesse caso), vemos diferentes paternidades em jogo, que circulam no dispositivo pedagógico do futebol, que naturalizam a desresponsabilização paterna pelo cuidado de suas filhas e de seus filhos. É interessante como essa família que “sustenta o psicológico” poderia ser, em alguma medida, a família que “centra” os jogadores. Jogadores, geralmente homens jovens adultos, que frequentemente são considerados incapazes de responderem por seus filhos. Há até uma racionalidade para autorizar que esses atletas não precisem (ou mesmo não devam) cuidar dos seus filhos e filhas.

Nos permitimos apostar que o sujeito neoliberal individualista seja o grande propulsor desses dois elementos. Parece que a lógica de conjunto ou de grupo se esvai e a concentração para a Copa não é possível de ser conseguida através do coletivo de atletas que compõem o selecionado brasileiro, mas cada um precisa, individualmente, buscar seu equilíbrio ou sua saúde mental com suas próprias famílias, seus primeiros investidores. Ao mesmo tempo, essa família pode ser descartada ou utilizada em nome de um desempenho esportivo de excelência. Em nome do espetáculo esportivo podemos produzir mais alguns pais ausentes reforçando representações estereotipadas de gênero. Os filhos podem até deixar os jogadores felizes desde que não atrapalhem, desde que alguém assuma a responsabilidade por seus cuidados.

***

Olhando em movimento podemos ver tímidos passos em busca de uma diminuição da desigualdade entre os gêneros nos espaços futebolísticos, mas quando olhamos o cenário congelado, como uma fotografia, ele ainda é muito marcado por condutas que reforçam as diferenças e ampliam essas e outras desigualdades. Infelizmente, os conteúdos que compõem essa pedagogia seguem sendo muito difundidos em nossa cultura. O futebol não produz uma cultura exclusiva. Quando se naturaliza a ausência paterna no futebol, também se naturaliza essa ausência em outros espaços.

Notas

1 MAGATTI, Ricardo. Seleção Brasileira dispensa psicólogo na comissão e tem Tite como motivador no Catar. Terra.com.br. Copa do Catar. 28 nov. 2022 Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/copa-2022/selecao-brasileira-dispensa-psicologo-na-comissao-e-tem-tite-como-motivador-no-catar,d5852c6058e70984f3b2c162eefd1f9c76zyugt0.html . Acesso em 05 jan. 2023.

2 VESTIÁRIO DA SELEÇÃO TEM FRASES MOTIVACIONAIS PEDIDAS POR TITE. R7. Futebol. Copa do Mundo. 19 nov. 2022. Disponível em: https://esportes.r7.com/futebol/copa-do-mundo/videos/vestiario-da-selecao-tem-frases-motivacionais-pedidas-por-tite-19112022 . Acesso em 05 jan. 2023.

3 Sobre esse “atrapalhar”, sugerimos a leitura da seguinte análise: SAHD, Luiza. Afinal, a quem o filho do jogador Paquetá atrapalhou nessa Copa do Mundo?… Tab UOL. Coluna. Opinião. 22 nov. 2022. Disponível em: https://tab.uol.com.br/colunas/luiza-sahd/2022/11/22/afinal-a-quem-o-filho-do-jogador-paqueta-atrapalhou-nessa-copa-do-mundo.htm. Acesso em: 05 jan. 2023.

4 A SELEÇÃO DOS FILHOS SEM PAI. El País. Esporte. Seleção Brasileira. 21, jun. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/21/deportes/1529536206_588160.html. Acesso em: 05 jan. 2023.

5 AGÊNCIA BRASIL. Mais de 100 mil crianças não receberam o nome do pai este ano. 28 ago. 2022. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-08/mais-de-100-mil-criancas-nao-receberam-o-nome-do-pai-este-ano. Acesso em: 05 jan. 2023.

6 NEVES, Marcello.  Enner Valencia: autor do primeiro gol da Copa fingiu lesão para evitar ser preso por pensão alimentícia não paga. O Globo. Esportes. Catar 2022. 20 nov. 2022. Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/catar-2022/noticia/2022/11/enner-valencia-autor-do-primeiro-gol-da-copa-fingiu-lesao-para-evitar-ser-preso-por-pensao-alimenticia-nao-paga.ghtml. Acesso em: 05 jan. 2023.

7 Recomendamos aleitura da  crônica de QUADROS, Laura; QUADROS, Letícia. O futebol e “o psicológico”. Blog do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte. 13 nov. 2020. Disponível em: https://comunicacaoeesporte.com/2020/11/13/o-futebol-e-o-psicologico/. Acesso em: 05 jan. 2023.

8 MAGATTI, Ricardo. Seleção Brasileira dispensa psicólogo na comissão e tem Tite como motivador no Catar. Terra.com.br. Copa do Catar. 28 nov. 2022 Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/futebol/copa-2022/selecao-brasileira-dispensa-psicologo-na-comissao-e-tem-tite-como-motivador-no-catar,d5852c6058e70984f3b2c162eefd1f9c76zyugt0.html . Acesso em 05 jan. 2023.

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Gustavo Andrada Bandeira

Possui graduação em Pedagogia (2006), especialização em Jornalismo Esportivo (2012), mestrado em Educação (2009) e doutorado em Educação (2017) todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é técnico em assuntos educacionais da UFRGS. Foi professor nos cursos de Especialização em Jornalismo Esportivo na UFRGS (2012-2013), Coordenação Pedagógica e Gestão Escolar na Escola de Gestores (2012-2016), Autor do livro Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações de Gênero (Geerge), do Seminário Permanente de Estudios Sociales del Deporte e do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Marina de Mattos Dantas

Psicóloga (CRP 04/28.914). Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP (com estágio pós-doutoral em Estudos do Lazer na UFMG) e mestre em Psicologia Social pela UERJ. Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais. Pesquisadora no Grupo da Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG), no Grupo de Estudos Socioculturais em Educação Física e Esporte (GEPESEFE/UEMG), no Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Social do Esporte (GEPSE/UFMG) e no Grupo de Trabalho Esporte e Sociedade do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO). Compõe a diretoria da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP/2024-2025). É produtora no Programa Óbvio Ululante na Rádio UFMG Educativa e colunista no Ludopédio.

Como citar

BANDEIRA, Gustavo Andrada; DANTAS, Marina de Mattos. Família, paternidade e “o psicológico” na Copa do Mundo de 2022. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 15, 2023.
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