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Febre Tifosi

Melina Nóbrega Miranda Pardini 14 de julho de 2009

A morte de Gabriele, um dos torcedores símbolos da Lazio, durante o confronto entre um pequeno grupo de torcedores desse clube com outro de torcedores da Inter, na estrada perto de Arezzo, provocou manifestações em toda Itália – não apenas por parte de dirigentes e jornalistas, como dos próprios torcedores revoltados pela excessiva violência empregada pelos policiais nos confrontos futebolísticos.

Apesar das diferenças existentes entre o nosso futebol e o italiano, o exemplo de como lidar com essas tragédias deve ser seguido pelo primeiro. A morte de um torcedor não pode ser banalizada como ocorre em nossa sociedade. Ela não somente deve provocar a punição dos culpados, a reflexão da situação por parte dos dirigentes esportivos e a paralisação do campeonato futebolístico, como despertar a pausa reflexiva em toda a sociedade.

As torcidas organizadas foram responsáveis por um padrão de sociabilidade peculiar, expresso em uma determinada maneira de torcer e de participar do futebol profissional, incorporando ao esporte símbolos próprios (distintivos das torcidas), inaugurando performances, estética, comportamentos verbais, regras, organizações, criando um determinado estilo de vida específico na metrópole (com vestimentas próprias, apropriação e conduta específica em determinados lugares no estádio, musicalidade e comportamento desviante e outros elementos diferenciadores desses torcedores com relação aos “comuns”).

No senso comum, as torcidas organizadas, as gangues e os hooligans são enquadrados por vezes como “tribos urbanas” quando se ressaltam as características primitivas e selvagens desses agrupamentos, ou quando se foca a homogeneidade interna de cada um desses grupos, particularizando-os dentro da própria cidade.

Porém, em seu estudo, Toledo nos demonstrou a diferença constitutiva entre esses grupos[1]. De acordo com o antropólogo, o comportamento geral das gangues estaria ligado à transgressão e a violação declarada das normas sociais. Além disso, tais práticas transgressoras seriam marcadas pelo anonimato e os componentes de tal grupo podem ser diferenciados por uma idade limite, práticas e gostos culturais peculiares e pela existência de algumas formulações genéricas e preconceituosas. Os hooligans atribuem ao esporte, e ao futebol no caso, um espaço privilegiado na luta, no protesto político ou racial. Eles se assemelham a outro grupo social, os skinheads – já incorporados nas diferentes esferas da sociedade inglesa, incluindo em suas torcidas organizadas de futebol.

Os hooligans e os skinheads, diferentemente das torcidas organizadas brasileiras, estão calcados nos valores nacionalistas e xenofobias, não usam símbolos específicos, têm as ações pautadas pelo anonimato, filiam-se a partidos neonazistas, não se deslocam em massas aos estádios para burlar a vigilância policial e se relacionam com as outras “firmas” (como são denominados os grupos de torcedores hooligans organizados) ou com outros torcedores dos demais países por um padrão de alianças e oposições seguidoras da seguinte lógica: “amigo de inimigo, é inimigo, inimigo de inimigo é amigo, amigo de amigo é amigo” (lema propiciador de poucas possibilidades de mediação política, negociação ou diálogo).

Pensando os agrupamentos de torcedores organizados de futebol por esse viés, notamos uma clara distinção entre a organização de algumas torcidas européias, como a da própria Lazio, mundialmente conhecida por seu viés fascista, e as grandes torcidas organizadas sul-americanas cada dia mais voltadas ao espetáculo.

As torcidas organizadas brasileiras buscam um lugar oficioso no ritual futebolístico sem negar o aspecto espetacular, de entretenimento e lazer do futebol. Desse modo, elas se caracterizam como um grupo mais fluído, dinâmico e aberto.

Porém, as práticas violentas inviabilizam o desejo de se assumirem como instituições “representativas e legítimas” de uma parcela da torcida dos seus respectivos times. Essa violência anárquica e genérica dos torcedores organizados de futebol revela o estranhamento dos indivíduos na sociedade brasileira com o poder e a esfera pública, com os direitos e os deveres do cidadão.

A violência presente nas torcidas organizadas e a crescente presença de gangues e hooligans no ritual futebolístico ressaltam a banalização da violência, a transgressão de regras, o racismo e o xenofobismo observados com uma maior freqüência e intensidade e nos grandes centros urbanos do mundo.

O jogo de futebol, enquanto drama, através da atuação desses grupos, deixa transparecer outros valores sociais: a proeminência da condição masculina, os códigos de sexualidade, as relações de mando e obediência, os estereótipos sociais, as desigualdades e as hierarquias presentes no mundo globalizado, de maneira geral.

Assim, como personagens constituintes do futebol, as torcidas organizadas e os demais grupos infiltrados nesse esporte participam desse ritual demonstrando e marcando os seus problemas, alegrias, oposições, lutas, tradições e ideologias. Não se trata aqui de fazermos uma relação simplista, de causa e efeito entre a violência, preconceito e a intolerância presente nesses grupos sociais e as anormalidades e os problemas das sociedades onde eles se encontram.

Todos esses fatores devem, em nossa opinião, ser matizados e analisados por meio de uma esfera maior: o papel dos jogos nas sociedades modernas, pois os torcedores organizados (assim como os “normais”, gangues, hooligans e os outros personagens integrantes do ritual futebolístico) representam um papel específico dentro de um ritual público – o jogo de futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

PARDINI, Melina Nóbrega Miranda. Febre Tifosi. Ludopédio, São Paulo, v. 01, n. 4, 2009.
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