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Felipe Baloy: O maior gol de honra

Maurício Brum 13 de fevereiro de 2021

Série do Puntero Izquierdo conta a história de personagens que um dia serão lembrados pelo que fizeram na Copa do Mundo de 2018; neste episódio, os passos do estreante mais veterano a marcar num Mundial que jamais será esquecido no Panamá

Felipe Baloy Panamá
Ilustração: gustavo berocan

Na Copa do Mundo de 2018, a primeira da história do Panamá, o técnico “Bolillo” Gómez colocou para jogar quase todo o elenco, como quem tenta dar uma chance aos comandados para que toquem a glória tão rara, nem que seja por alguns minutos. Em apenas três jogos, a Seleção Panamenha utilizou vinte jogadores diferentes. Nenhum dos que entrou em campo jogou menos do que o veterano Felipe Baloy, escolhido para substituir o volante Gabriel Gómez quando faltavam 21 minutos para o fim do massacre sofrido contra a Inglaterra. Nenhum deles, porém, será tão lembrado quanto Baloy.

A meio mundo de distância dali, na Cidade do Panamá, uma multidão havia se reunido nos arredores do Estádio Rommel Fernández para acompanhar a partida por um telão. Em uma cena raramente vista nas preguiçosas madrugadas de domingo, milhares de pessoas ocupavam a Vía España às cinco da manhã, tentando garantir um bom lugar para testemunhar a história. Pelo fuso horário, o jogo começaria às sete, duas horas mais tarde. O céu estava cinzento e a chuva parecia tão certa quanto o resultado do jogo que se avizinhava: derrotado na estreia por uma Bélgica que fez 3 a 0 em ritmo de treino, o Panamá sabia não ter qualquer chance de superar a Inglaterra. Não que isso importasse para quem estava ali.

A chuva torrencial começou a cair aos vinte minutos de partida, logo antes do momento em que os ingleses começaram a transformar uma vitória normal na maior goleada do Mundial de 2018. John Stones havia inaugurado o placar muito cedo, e o artilheiro Harry Kane dobraria a vantagem aos 22, cobrando pênalti, começando a unir as duas chuvas — a de água e a de gols — que despencavam sobre o Panamá. Antes do intervalo, os britânicos já venciam por 5 a 0, e Kane ainda fez outro (seu terceiro no dia) na volta dos vestiários. Felipe Baloy entrou em campo após o sexto gol dos adversários. Aos 33 do 2º tempo, fez o seu — e desatou a loucura de seus compatriotas, na Vía España e em Nizhny Novgorod, em uma das maiores celebrações já vistas de um time que marcava o gol de honra.

Orlando

Para muitos, ele não deveria sequer ter viajado. Aos 37 anos, idade que acabou lhe dando o recorde inesperado de mais velho estreante a marcar em uma Copa, “Pipe” Baloy era criticado por parte da imprensa panamenha como um símbolo antigo, digno de respeito, mas já ocupando um lugar que deveria ser da nova geração. Um histórico, sim, um autêntico pioneiro neste século em que o futebol panamenho se profissionalizou de vez — mas parte de um passado que já não condizia com o primeiro Panamá classificado ao Mundial. Não era o único: na Copa do Mundo, a equipe panamenha teve a maior concentração de veteranos, com seis jogadores (incluindo Baloy) tendo disputado ao menos 100 partidas pela seleção ao longo da vida. Nenhum outro time tinha mais que quatro. A maioria, um, dois, ou ninguém nessas condições.

Em novembro do ano passado, Baloy foi o jogador mais criticado pela derrota que poderia ter matado o sonho panamenho de viajar à Rússia, mais uma decepção tardia — antes da Copa de 2014, o Panamá já havia deixado de disputar a repescagem graças a uma absurda virada sofrida diante dos Estados Unidos, em casa, com dois gols nos acréscimos. Em fins de 2017, novamente contra os norte-americanos, a equipe do Canal precisava resistir bravamente em Orlando para não depender de milagre na última rodada. Mas tudo foi catástrofe: os jogadores de soccer atropelaram por 4 a 0, três ainda no primeiro tempo. Baloy foi substituído no intervalo, brigou na zona mista com repórteres que questionaram sua lentidão, e perdeu definitivamente o lugar no time.

Com a derrota, o Panamá já estava conformado com a repescagem — um duelo complicado contra a experiente Austrália, que tinha tudo para ser perdido (Honduras, que acabou representando a Concacaf nesse confronto, não conseguiria vencer em casa e seria facilmente superada em Sydney). Após a decepção na Flórida, uma ida direta à Copa dependia de uma combinação que beirava a loucura: mais do que vencer o bom time da Costa Rica, que só havia sido derrotado pelo México no Azteca ao longo da campanha, precisava ainda de uma derrota dos Estados Unidos contra a lanterna Trinidad e Tobago, cujos resultados eram desalentadores — oito derrotas em nove rodadas disputadas. Qualquer empate classificava os norte-americanos.

De maneira improvável, os Estados Unidos saíram perdendo. Mas o Panamá também. Só que os Estados Unidos seguiram perdendo — e o Panamá, não. Enquanto os estadunidenses chocavam o mundo com uma derrota diante de mil e quinhentas testemunhas na pequena ilha de Trinidad, os canaleros deram a volta no placar. No segundo tempo, um gol de Blas Pérez e outro de Román Torres, já no finzinho da partida, concluíram a virada e conquistaram a classificação. Baloy não entrou em campo naquela noite.

Porto Alegre

Por outro lado, era difícil imaginar um Panamá sem Felipe Baloy envolvido de alguma forma. Um dos jogadores mais experientes não só de sua seleção, mas de toda a Copa, o zagueiro atingiu uma aura de líder que o fez ser considerado o capitão de fato da equipe mesmo fora de campo. Ele fardou pela primeira vez com a camisa vermelha ainda em 2001, quando dava seus primeiros passos na Colômbia, espécie de estágio obrigatório para os futebolistas panamenhos que queriam fugir do semiamadorismo de seu campeonato doméstico. Defendia o Envigado e, tendo feito uma temporada de destaque, atraiu o interesse do então campeão colombiano: o Independiente Medellín anunciou o zagueiro como um dos reforços para a Libertadores de 2003.

Aquela acabaria sendo a melhor campanha continental da vida do DIM. Com vitórias sobre gigantes sul-americanos a cada fase, os encarnados de Medellín só pararam nas semifinais, contra o Santos. A caminhada atraiu olhares cobiçosos de todos os lados para os principais nomes da equipe, e um dos focos de interesse era a impressionante dupla de zaga formada por Baloy e Perea, duas torres de ébano por quem quase nada passava.

Suas histórias acabariam tendo continuidades bem diferentes: o colombiano Luis Amaranto Perea foi contratado pelo dominante Boca Juniors, que acabou campeão da América, mas havia sido derrotado em Medellín na fase de grupos. Na esquadra da Bombonera, Perea foi titular na conquista do mundo em cima do Milan e, em seguida, transferiu-se para o Atlético de Madrid, onde fez carreira e jogou em alto nível por toda a década seguinte. Já Baloy assinou com o Grêmio, que havia sido eliminado pelo Independiente nas quartas-de-final e vivia um dos momentos mais conturbados da sua história. Ainda assim, em uma época em que o futebol brasileiro estava prestigiado como o melhor do planeta, após três finais de Copa do Mundo consecutivas e com o Penta recém-ganho, ser o primeiro panamenho a chegar à Série A não era pouca coisa — e Baloy fez isso aos 22 anos.

No Panamá, onde o beisebol e o boxe reinam supremos, o futebol ainda engatinhava. Não parecia qualquer exagero considerar o zagueiro o maior jogador do país em atividade. Uma convocação de junho de 2004, durante as eliminatórias para a Copa do Mundo seguinte, ajuda a entender o nível do futebol do país naquele momento: dos dezenove chamados pelo técnico José “Cheché” Hernández para enfrentar a pequenina ilha de Santa Lúcia, catorze jogavam na incipiente liga panamenha, onde o salário-base não extrapolava os duzentos dólares. Outros dois atuavam na Moldávia, o goleiro jogava em Honduras, e havia até mesmo um jogador sem clube na convocação, o atacante Alberto Zapata. Baloy, no poderoso Brasil, era uma luz de esperança para dias mais destacados para o futebol do país (na Copa de 2018, apenas três jogadores da seleção atuavam no Panamá).

Em Porto Alegre, porém, Baloy só encontrou desgraça. Nos dois anos em que o zagueiro fardou de tricolor, o Grêmio perdeu muito mais do que ganhou, levou muito mais gols do que fez, salvou-se do rebaixamento na última rodada em seu primeiro ano e caiu na lanterna no segundo. Baloy foi considerado um dos vilões, um zagueiro que tentava enfeitar demais sem ter a técnica necessária para isso, e essa marca ajudou a sepultar sua carreira no Brasil — um traumatizado Atlético Paranaense, que perdeu o Campeonato Brasileiro em parte graças a um gol do panamenho, até tentou dar-lhe uma chance em 2005, mas o zagueiro perdeu espaço no time titular e já não era a opção preferida quando os rubro-negros chegaram ao vice-campeonato da Libertadores daquele ano.

Desde então, Baloy tornou-se “mexicano”, no futebol e na segunda cidadania, e do Brasil restaram apenas frustrações de parte a parte. Na Liga MX, o panamenho construiu uma trajetória sólida, valorizado como um dos melhores defensores do campeonato por vários anos. A má impressão que deixou nos brasileiros, entretanto, nunca foi totalmente superada por aqui. Quando fez seu gol histórico contra a Inglaterra, a Zero Hora, principal tabloide gaúcho, deu a manchete: “ex-jogador do ‘pior’ time do Grêmio marca o primeiro gol do Panamá na história das Copas”.

Nizhny Novgorod

Foram onze anos de sucesso no México antes de ensaiar um regresso para casa. Entre Monterrey, Santos Laguna, Monarcas de Morelia e Atlas, Felipe Baloy ergueu as taças de dois campeonatos nacionais e uma supercopa mexicana. Em 2016, quando a idade finalmente começou a pesar, Baloy lentamente iniciou seu caminho de volta para casa. Primeiro, espelhando o início da carreira, deu um último adeus à Colômbia, defendendo o Rionegro Águilas. Em seguida voltou ao Panamá, para defender o Tauro, bem a tempo de ganhar o Clausura no primeiro semestre de 2017. Mas já havia se tornado uma questão de, principalmente, permanecer ativo. Estava aceitando qualquer proposta para seguir atuando profissionalmente e concluir a última tentativa de colocar seu país no maior cenário do futebol.

Seus últimos dias foram passados no Club Social y Deportivo Municipal, da Guatemala, e lutando contra as críticas na Seleção Panamenha. Baloy chegou ao Mundial no banco, certo de que se aposentaria do selecionado nacional após o torneio, também cogitando um adeus ao futebol de clubes — que acabou se confirmando alguns dias após o fim da participação panamenha na Copa. Do banco, o zagueiro só saiu para jogar a menor minutagem de toda a equipe em solo russo. E, no entanto, foi quem mais fez. As lágrimas no seu gol eram um misto de emoção com desabafo, um agradecimento pela confiança do “Bolillo” e um cala-boca para os críticos que o julgavam acabado. Na estreia que também era adeus, Baloy virou história.

Quando a bola estufou as redes inglesas, era como se o Panamá tivesse acabado de abrir o placar após um jogo renhido. De súbito, os seis gols ingleses pareciam nunca ter existido. E, bem, de certa forma, havia um fundo de verdade: no único jogo de Baloy na Copa, nos vinte e um minutos em que esteve em campo, os canaleros venceram os criadores do jogo por 1 a 0.

Felipe Baloy encerrou a sua carreira com um gol em Copa do Mundo.


Puntero menorPublicado originalmente no Puntero Izquierdo em 2018. O Puntero em parceria com o Ludopédio publica nesse espaço os textos originalmente divulgados em sua página do Medium.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Maurício Brum

Jornalista e historiador. Editor do Impedimento e sócio no Estúdio Fronteira. Autor dos livros “La Cancha Infame: A História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile” e “Morte e Vida de Victor Jara, a voz da Revolução Chilena”.

Como citar

BRUM, Maurício. Felipe Baloy: O maior gol de honra. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 28, 2021.
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