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Fernando Diniz e o futebol humanizado

Gabriel Said 22 de julho de 2019

I, I will be King
And you, you will be Queen
Though nothing will drive them away
We can beat them, just for one day
We can be heroes, just for one day
– David Bowie

 

Neste texto tentei explicar de uma forma sintetizada o quê é o futebol para Fernando Diniz, treinador do Fluminense enquanto o texto é escrito. Para isso foram assistidas várias horas de conteúdo em vídeo do Diniz produzido ao longo dos últimos 5 anos, seja em coletiva de imprensa, programas televisivos, reportagens ou seminário, além, é claro, dos jogos.

Para Fernando, o futebol brasileiro pode ser melhor compreendido e trabalhado por questões psicossociais do que por aspectos táticos ou estatísticos isolados, como ele mesmo diz: “Futebol extrapola muito a parte tática”. A maneira como ele entende o futebol é como ele entende a vida, e parece que consegue perceber como o futebol faz parte da sociedade brasileira.

Um levantamento organizado pelo sociólogo Maurício Murad entre todos os municípios brasileiros apontou que o futebol é uma das poucas instituições sociais onipresentes em todo o país, com todos os municípios tendo campinhos de futebol. Nem prisões públicas ou templos religiosos são tão presentes. Então, para falar de futebol e Fernando Diniz, o treinador formado em psicologia, é preciso falar de muito mais. “No futebol, o pior cego é aquele que vê só a bola”, já disse Nelson Rodrigues.

Fernando Diniz em entrevista coletiva, no CT Pedro Antônio. Foto: Rener Pinheiro/MoWA Press.

O treinador de base no profissional

Todo garoto na base de um clube tem o sonho de jogar futebol por prazer e normalmente também a ilusão de ter no futebol-espetáculo, criado e transmitido pela televisão, a chance de grande mobilidade social acompanhada pelo sucesso e a possibilidade de viver do futebol mesmo depois de aposentado.

Os clubes tratam os jogadores como coisa e não se preocupam devidamente com a formação do cidadão. Os garotos muitas vezes chegam com 12 ou 13 anos nos clubes, vêm de famílias com poucas condições financeiras e oportunidades e é comum o menino não ter também uma figura paterna. O próprio Diniz é um exemplo, sendo órfão de pai aos 8 anos.

Diante deste cenário, os clubes deveriam assumir suas responsabilidades sociais na educação daquele jovem que, mesmo que provavelmente não vire jogador do elenco principal do clube, certamente será mais um cidadão que faz parte da sociedade. O grande problema é que, uma vez vistos como objetos, os jogadores são tratados melhor ou pior pelo valor que representam, seja futebolística ou mercadologicamente. Aí está a maior distorção do futebol:

Aqueles que jogam melhor são tratados como seres superiores. […] As pessoas não diferem um grande jogador de uma grande pessoa. Geralmente o grande jogador é tratado como uma grande pessoa e às vezes uma grande pessoa, que tá batalhando, que não tá vivendo um bom momento, é tratada como uma pessoa menor.

O futebol brasileiro ainda tem a cultura de priorizar os garotos mais talentosos, deixando valores coletivos e solidários de lado. O jovem excepcional tem mais tolerância para chegar atrasado no treino, se joga no ataque não é muito exigido para defender e pode ser um pouco mais indisciplinado. Esse relaxamento moral que os privilégios dão acabam criando dificuldades na transição para o profissional e problemas na formação tática e ética dos jogadores, que desde cedo são inseridos em um ambiente demasiadamente competitivo que costuma dar muito valor ao resultado em detrimento da formação dos jovens.

É possível imaginar um menino talentoso que pode estar se tornando um jogador arredio por causa de algumas broncas e acaba até mesmo perdendo espaço no time. De uma forma geral, o futebol brasileiro ainda tem o pensamento de que os jogadores mais técnicos devem jogar mais avançados e a defesa deve ser formada por jogadores mais físicos e intimidadores. O estilo de jogo voltado muito para a marcação queima muito jogador talentoso ainda na base porque esse estilo de jogo não o beneficia.

Trazendo a rua para os gramados

Ao botar um time em campo, há uma tentativa de recuperar o futebol de quando os jogadores eram crianças e brincavam na rua. Ter a bola, jogar um futebol que seja bonito de ver e prazeroso de jogar é, além de todas as argumentações táticas que podem surgir, uma forma de trazer de volta o caráter lúdico.

Os resultados estão fora do controle de qualquer um, e jogar só por eles leva a algumas ilusões porque se o resultado é tudo, quando ele não vem não sobra nada. Tem no país um argumento falacioso muito grande que aparece naquela pergunta do perder jogando bonito ou ganhar jogando feio. Normalmente as comparações são entre as Seleções Brasileiras de 1982 e 1994, a primeira encantava, mas saiu derrotada e a segunda era muito mais pragmática, mas foi campeã do mundo. No futebol só um time sairá vencedor no final, pode ser encantando ou não. Se o Brasil de 82 não jogasse bem como jogava, teria menos chances de ser campeão. Essa dualidade que persegue o futebol brasileiro dá a entender que se o time de Zico e Sócrates jogasse um futebol feio o Brasil seria campeão com folgas.

Fernando Diniz, quando treinou o Grêmio Osasco Audax no Campeonato Paulista de 2017. Foto: Wikipedia.

Futebol pode ser prazeroso. Não se encerra no placar do jogo e em “quem ganhou é bom e quem perdeu é ruim”. Penso que o futebol e a vida são muito mais do que isso. Não me importa se o Santos perdeu pro Corinthians na semifinal porque eu gosto mais do Santos. Nem que o City perdeu pro Tottenham, porque eu continuo gostando mais do City. A gente não controla a vida, mas podemos tentar controlar o desempenho.

Jogar bem ou mal não é um debate, jogar bem é imperativo e jogar bem é jogar bonito. Apesar de o resultado ser o norte sempre, como se joga, se ganha e como as relações são cultivadas são também obsessões. O time deve jogar o melhor que conseguir e, uma vez que o seu melhor foi feito em campo, o resultado será uma consequência.

Quando um time treinado por Diniz entra em campo é possível ver traços do futebol de rua. Todos participam do jogo – até o goleiro – transformando o campo em uma espécie de grande roda de bobo. Ficar com a bola e não devolvê-la para o adversário com um chutão na primeira dificuldade requer coragem e trabalho em equipe, essas são as espinhas dorsais do jogo de Diniz. Os jogadores são incentivados a deixarem de ser arredios e a voltarem a ter o prazer de jogar para se sentirem leves em campo. Um jogador leve e com confiança é a sua melhor versão em campo.

A metáfora de D. Quixote e os leões

Dom Quixote é uma personagem de Miguel de Cervantes conhecido por sua loucura. De tanto ler livros sobre cavaleiros medievais, Quixote inverteu a ordem da sua realidade já pós-medieval e começou suas próprias aventuras como cavaleiro com seu fiel escudeiro Sancho Pança, que representa a realidade e sanidade.

No capítulo XVII do livro II, a história começa com Sancho Pança comprando requeijões às pressas e os esquecendo no elmo de Dom Quixote que o põe na cabeça sem notar o requeijão. Assustado com o líquido derretendo de sua cabeça, Quixote pergunta a Sancho se eram seus miolos que estavam derretendo. Não era, mas de certo poderia ser.

Enquanto Quixote limpava seu rosto e suas barbas do requeijão, passou ali um carro cheio de bandeiras, conduzido por um domador de leões. Questionado pelo cavaleiro, o domador disse: “O carro é meu — respondeu o carreiro — o que vai dentro dele são dois bravos leões engaiolados, que o governador de Orã envia à corte, de presente a Sua Majestade; as bandeiras são de El-Rei nosso senhor, em sinal de que vai aqui coisa sua.”

Os leões eram imensos, os maiores que já tinham vindo desde a África para a Espanha. Era um macho e uma fêmea em cada uma das duas jaulas, e estavam famintos, pois ainda não haviam comido naquele dia e por isso estava com pressa, para alimentá-los logo.

Dom Quixote pediu de prontidão para o domador abrir as jaulas que ele queria enfrentar os leões que seriam dados ao rei. Dom Quixote de La Mancha estaria diante de outra aventura de bravura. No primeiro momento, o fidalgo pensou que aquele homem era realmente louco e os miolos estavam mesmo derretidos como o requeijão fazia parecer, mas de tanto Quixote insistir o domador cedeu à pressão.

Com lágrimas nos olhos, Sancho Pança tentou implorar para Dom Quixote largar a doidice e desistir de enfrentar os leões, mas não tinha como convencer um cavaleiro de defender sua honra. Quixote chamou Sancho de homem de pouca fé e ainda largou o cavalo para poupá-lo porque ia enfrentar os leões em pé.

A primeira jaula – do macho – foi aberta. O leão era mesmo de grandeza extraordinária, mas a primeira coisa que ele fez foi espreguiçar-se todo, bocejar e ficar só com a cabeça para fora da jaula observando a todos e sem prestar atenção em ninguém. Todos ali em volta estavam espantados, exceto Dom Quixote, que estava atento desejando que o animal avançasse para que ele pudesse derrotá-lo com suas próprias mãos. O leão depois de ver o que estava acontecendo ali deu as costas para Quixote, retornou à jaula e se deitou.

Questionado pelo fidalgo sobre a loucura de Dom Quixote, Sancho Pança o definiu: “Não é louco, mas é atrevido”. O grande leão não devoraria ninguém, é um leão conformado com a vida de jaula que tem. Não tem ambições. Se esqueceu de ser o rei da selva e aceita o comodismo imposto nas limitações da pequena jaula.

O futebol brasileiro não parece como o leão? Conformado em fazer só o mais fácil, jogar um futebol horrível de assistir que só se preocupa com o resultado, com um campeonato em que quase todos os times parecem ter medo de ficar com a bola porque não sabem bem o quê fazer com ela. Um futebol que parece se mostrar um tanto prepotente e com traços de xenofobia a profissionais estrangeiros.

O medo de arriscar pode paralisar, mas o risco faz parte da vida. Onde está o risco? Com os que arriscaram ou com os que não arriscaram nada?

Fernando Diniz durante o treinamento do Fluminense, no CT Pedro Antônio. Foto: Rener Pinheiro/MoWA Press.

Diniz e o quixotismo

Quixotismo pode ser definido como a atitude de defender, mesmo nas mais adversas situações, causas que podem parecer estranhas até mesmo aos seus próprios interesses. Talvez seja um amor às causas perdidas, talvez seja atrevimento.

O maior objetivo de Fernando Diniz é que os jogadores sejam o Messi, o Zico ou o Romário que estão dentro deles, que consigam ser aquele jogador que sonharam em ser quando mais jovens. É quase certo que o jogador não será tão bom quanto esses três citados são ou foram, e não tem nenhum demérito nisso, mas trabalhar para que o jogador consiga ser o melhor que conseguir pode parecer uma obviedade, porém, quando se trata de um futebol que trata os atletas como coisa, isso se torna uma tarefa que requer um pouco de insanidade.

Jogadores são frequentemente tratados como peças de uma grande engrenagem, como se fossem máquinas. Pouco é discutido sobre as questões humanas do futebol. Em 2018, o argentino Di María deu entrevista falando sobre como procurou um psicólogo para ajudar a superar as piadas na internet pelos fracassos com a seleção argentina. No mesmo ano, o português André Gomes, então jogador do Barcelona, deu uma entrevista confessando não sentir mais prazer algum em jogar futebol.

Em bares do Rio de Janeiro, se escuta a lamentação: “O quê o Diniz tenta fazer é legal, mas falta material humano, faltam peças”. A ironia é que o futebol que o treinador quer é o que mais favorece os jogadores mais medianos, afinal consiste em jogo coletivo e domínio de fundamentos como o passe. O comodismo é tanto que até mesmo no programa Redação SporTV do dia 20 de dezembro de 2018, quando o treinador foi anunciado pelo Fluminense, a mesa de jornalistas chegou a discutir quando aconteceria sua demissão. Ninguém acredita que o leão possa ser derrotado.

Fernando Diniz durante o treino do Fluminense, no CT Pedro Antônio. Foto: Rener Pinheiro/MoWA Press.

Ao tentar trazer de volta o lúdico ao futebol, Diniz se apresenta como um treinador quixotesco; inconformado com os novos tempos. É inegável sua influência no crescimento de diversos jogadores nos anos recentes: Tchê-Tchê, Sidão, Camacho, Santos, Léo Pereira, Caio Henrique, Danielzinho e tantos outros. Talvez ainda esteja lhe faltando resultados no campo, e como ele tenta um futebol diferente muitas vezes quando as coisas dão errado, as pessoas acabam achando culpa onde era uma solução.

O problema que Fernando Diniz enfrenta pode ser porque ele está fora de seu tempo, inconformado, pensando nos “comos” e “porquês” em tempos que pouco se pensa. Se preocupando em fazer com que os jogadores não sejam só esses objetos de gerar dinheiro para uns. Mas com Diniz o jogador pode ser o craque que sempre sonhou, mesmo que só por 90 minutos. Ele não é louco, só é atrevido, e o futebol brasileiro precisa de atrevimento.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. Fernando Diniz e o futebol humanizado. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 29, 2019.
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