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O Flamengo e a sua relação com o sobrenatural

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 12 de fevereiro de 2021

Deuses, diabos, bruxos, magos, feiticeiros, paranormais… O que eles têm em comum? A partir de uma ideia geral, pode-se dizer que fazem coisas atribuídas a forças desconhecidas, que pertencem à esfera do inexplicável, ou ainda, ao mundo do sobrenatural!

Os seres ou os fenômenos sobrenaturais, como o próprio termo sugere, fazem alusão a algo ou a alguma coisa que ultrapassa a dimensão do “natural”, que extrapola as “leis da natureza”. Sobrenatural é um adjetivo que qualifica um ser ou fenômeno como “transcendente” ao que é naturalmente possível. Mas como podemos pensar o sobrenatural no futebol? Como ele se manifesta?

Você conhece algum jogador com poderes de fazer algo fora do considerado “normal” para a maioria das pessoas? Ou, dito de outro modo, algo fora do comum para a sociedade?

Ou poderíamos também nos perguntar: a quem pertence o domínio das forças extranaturais? Algum jogador pode acessá-las? Alguém que consideramos um “mito da bola” pode ficar possuído por essas forças e desembestar a fazer coisas fantásticas, que habitam o domínio do inominável?

Alguns esportistas do mundo futebolístico receberam denominações que os ligaram a fenômenos místicos. O chileno Jorge Valdivia, por fazer mandinga com a bola, levou o apelido de “o mago”. O futebolista Andrés Iniesta, capitão da seleção espanhola na conquista do mundial de 2010 e multicampeão pelo Barcelona, por suas habilidades com a bola ficou conhecido como “o ilusionista”.[1] O argentino Juan Ramón Verón, tricampeão da Copa Libertadores da América (1968-1969-1970) e do Mundial de Clubes de 1968 (pelo Estudiantes de La Plata) se eternizou como sendo “a bruxa”. Como o senso comum profere que “filho de bruxo, bruxinho é”, Juan Sebastián Verón, filho do jogador mencionado, que, como o pai, jogou no Estudiantes e conquistou pelo clube uma Libertadores (2009), foi alcunhado, carinhosa e consequentemente, de “la brujita”. As quatro linhas eram o caldeirão, dentro do qual pai e filho costumavam cozinhar seus adversários temperados com um grande repertório de poções mágicas, as quais, misticamente, fluíam de seus pés.

Mas o assunto aqui é o Flamengo, e o rubro-negro da Gávea também teve seus seres que acessaram o transcendental para se tornarem místicos. Seres que utilizaram a bola para fazer feitiçaria, para ascender à dimensão do sobrenatural. E aqui vamos falar de três deles: Rondinelli, o “Deus da raça”; Júlio César, o paranormal “Uri Geller”; e Edílson “Capetinha”.

Pôster do filme “O Deus da Raça”. Foto: Wikipédia.

Sim, no Flamengo já jogou um DEUS, um Deus zagueiro chamado “Antônio José Rondinelli Tobias”. Rondinelli foi apelidado pela torcida rubro-negra de o “Deus da raça”, devido à garra e à disposição com que jogava. Quando entrava em campo parecia mesmo vir deportado de algum lugar não acessado por humanos. Ele jogou na base do Flamengo de 1968 até 1971 e no profissional atuou 406 vezes, durante os 10 anos subsequentes 1971-1981. Nesse período foi campeão brasileiro (1980), da Libertadores e do Mundial (1981) e seis vezes campeão Carioca (1974, 1978, 1979, 1979 especial, 1981).

No dia 3 de dezembro de 1978, o Flamengo jogava sua terceira final de Carioca consecutiva contra o Vasco. O relógio marcava 42 minutos do segundo tempo e o placar de “0 x 0” dava o tri ao time cruz maltino. O público de cento e vinte e oito mil pessoas acompanhava, com angústias distintas, o final do jogo. Escanteio para o Flamengo, Zico bate o corner… Rondinelli corre em direção à bola e sobe – como que alçado por anjos – para cabecear a pelota para o fundo das redes do arqueiro Leão. Ato contínuo: ele corre em direção a torcida, porém, no trajeto, faz uma pirueta. Esse gesto acrobático define o antes e o depois de Rondinelli. Caso se fotografasse a sequência do gesto com uma câmera de foto Kirlian[2], visualizaria o movimento que transforma o zagueiro em um ser de luz. Nos fotogramas, visualiza-se a aura divina surgindo em Rondinelli. Acredita-se – não pela evidência da ciência, mas pela vidência da fé – que o movimento da cabeça do jogador (ao girar no ar 360 graus) o transforma num Deus: no “Deus da Raça”. Para além de Rondinelli, o título do Carioca de 1978 é também considerado por muitos como o momento originário, o “ponto zero” da geração vitoriosa de Zico. Para soar mais bíblico: a conquista “gênesis”.

Júlio César Gurjol, esse, sim, foi sobrenatural, ao menos seu apodo é insuperável: “Uri Geller”. O israelense naturalizado britânico Uri Geller foi um famoso ilusionista da década de 1970. Geller se autodenominou paranormal por sua capacidade de telecinese. A telecinese é a capacidade que o ser humano tem de manipular ou exercer força sobre um sistema físico fazendo uso somente dos “poderes da mente”. Júlio César foi comparado a Uri Geller e se eternizou com esse apelido, pois “entortava” os adversários com seus dribles da mesma forma que o paranormal entortava talheres e ponteiros de relógio. Júlio César era “ponteiro”; sua ginga corporal e habilidade com a bola eram o “pêndulo” que induzia ao erro os adversários e hipnotizava a torcida.

O ponta esquerda do Flamengo é cria do futsal da Gávea, por isso sua habilidade com dribles curtos. Tal fato talvez explique porque 1 m2 (metro quadrado) para ele se transformava em muito mais espaço: isso desconsiderando a capacidade de onipresença de um ser sobrenatural. Júlio César jogou no Flamengo nas décadas de 1970-1980 e, entre idas e vindas, foram 133 jogos, 10 gols e 4 títulos (Brasileiro de 1980 e os Cariocas de 1978, 1979, 1979 especial). A maior prova de sua relação com a magia – ao menos para nós, flamenguistas – foi Uri Geller ter jogado no Vasco e lá não ter marcado um único gol sequer.

O goleiro Leão, do Vasco, tenta fechar o ângulo do atacante Júlio César Uri Geller, do Flamengo. Foto: Reprodução.

Por último, Edílson, que teve uma passagem rápida pelo Flamengo, mas que deixou muita saudade pelo grande jogador que foi. O “Capetinha”, apesar de ter feito mais diabruras com a camisa do Corinthians, ergueu dois troféus vestindo o manto do Flamengo: Campeonato Carioca e Copa dos Campeões, ambos em 2001. Na final do Carioca daquele ano, Edílson passou em branco no primeiro jogo em que o Vasco venceu por 2 a 1. No segundo jogo, no antológico 3 a 1, Edílson fez dois dos três gols: tudo bem que nesse jogo o sobrenatural ficou por conta de Petkovic, que marcou o gol do título de falta, nos minutos finais. Meses depois, na final da Copa dos Campeões, que teve o placar agregado de Flamengo 7 x 6 São Paulo (São Paulo 3 x 5 Flamengo – Flamengo 2 x 3 São Paulo), Edílson foi determinante. No primeiro jogo, ele fez o primeiro gol. O quarto do Mengão podia ter sido da “sombra de Edílson”. No entanto, o árbitro da partida colocou na súmula: “gol contra do zagueiro Rogério Pinheiro”. No quinto gol, Edílson deu o “drible da vaca” em Jean e chutou cruzado, a bola novamente bateu em Rogério Pinheiro antes de entrar, mas dessa vez o árbitro, já sem graça, conferiu o gol a ele.  

Nesse jogo, o sobrenatural se manifestou de dois modos. Primeiro, nos dois “encostos” que Edílson fez com o zagueiro tricolor. O encosto é um fenômeno maligno provocado a alguém (no caso aqui, ao zagueiro Rogério Pinheiro) por uma entidade exterior ou nomeadamente um próprio espírito do mal – nomeado, então, o “Capetinha”. Vale dizer que a palavra encosto serve para metaforizar as duas vezes em que a bola saiu dos pés de Edílson e encostou em Pinheiro, antes ainda de entrar. Já a segunda manifestação foi a oferenda da “vaca”, em forma de drible, para o sacrifício. Os estudos das Ciências da Religião comprovam a relação de várias civilizações que cultuavam seus deuses, a partir do sacrifício de um animal. No segundo jogo da final, o placar apontava 2 a 1 para o rubro-negro, que muito cedo foi para os braços da torcida e tomou a virada.

Mas no Mengão, o que há de mais sobrenatural é sua torcida. Essa, quando o time entra em campo, faz os jogadores realmente acreditarem que a magia existe. Mesmo que, muitas das vezes, para estes mesmos jogadores “o feitiço possa virar contra o feiticeiro”. É assim, o hoje, o ontem e o amanhã… Toda a história do Flamengo é (e sempre será) um transitar constante com o sobrenatural: quando perdemos, adentramos às sombras e habitamos o submundo do inferno, onde rastejam baratas, ratos e cobras; quando ganhamos, somos transportados aos sortilégios da glória e habitamos as alturas celestiais, e, então, lá, o urubu voa soberano com sua coroa: URUBU REI.


Notas

[1] Ilusionista é a pessoa que tem a habilidade de fazer truques por meio de movimentos ágeis, os quais levam o espectador a acreditar em algo que não corresponde à realidade, ou seja, parece que o ilusionista tem pacto com alguém de outra dimensão que o ajuda a ludibriar.

[2] Fotografia Kirlian ou Kirliangrafia é um método que captura a imagem “eletrofotográfica”. O resultado da imagem é o aparecimento de uma “aura luminosa” em torno do objeto fotografado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. O Flamengo e a sua relação com o sobrenatural. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 27, 2021.
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