O nome desse artigo é o mesmo do filme que está em cartaz em alguns cinemas de São Paulo. Fora do Jogo é uma produção iraniana que trata da exclusão das mulheres no esporte mais popular do planeta: o futebol. O nome do filme, em inglês, é Offside. Esse termo inglês foi utilizado por muito tempo no Brasil, até ser traduzido como impedimento.

Pretendo nesse texto fazer uma associação entre exclusão das mulheres iranianas e da possível “punição” que a bandeirinha brasileira Ana Paula – que está estampada nas capas da revista masculina Playboy do mês de julho – poderá sofrer. O que está por trás da questão retratada no filme e do desdobramento da atitude da Ana Paula é a velha questão do futebol como um espaço reservado masculino.

No Irã as mulheres não podem assistir aos jogos de futebol, pois há uma lei que as impedem de freqüentar os estádios. O que o filme vai mostrar, num tom até documental, é a tentativa de muitas mulheres em assistir a partida das eliminatórias, contra a seleção do Bahrein, que valia uma vaga na Copa do Mundo da Alemanha de 2006. A gravação do filme aconteceu ao mesmo tempo em que o jogo se passava e mostra a tensão das mulheres que não conseguiram burlar o sistema e foram “presas” pelos seguranças. Presas porque são colocadas numa espécie de “cercadinho”, atrás das arquibancadas. De lá só conseguem ouvir os gritos da torcida, o que faz aumentar ainda mais a ansiedade.

Apesar de existir uma lei que as proíbe as mulheres de irem aos estádios, muitas, inconformadas com essa medida, tentam assistir à partida disfarçadas de homens. A proibição acontece porque as mulheres não devem ser colocadas diante dos palavrões que os homens falam nesses locais; não devem estar em um local em que há predominância do sexo masculino; enfim, consideram que as mulheres devem ficar com a família.

No Brasil, diferentemente do Irã, as mulheres freqüentam os campos de futebol. Atualmente, conquistaram espaços que antes eram exclusivos dos homens: o trio de arbitragem. Há um código estabelecido no futebol de que os árbitros devem ser xingados. Tão logo pisam no gramado, já recebem as saudações da torcida. Quando o jogo inicia, nunca conseguem agradar os dois lados, e muito menos as torcidas.

Com a entrada das mulheres nesse campo que era exclusivo dos homens, elas não conseguiram mudar o quadro estabelecido de que o árbitro deve ser xingado. O que aconteceu é que foi acrescentado uma série de “elogios” quanto ao seu corpo. Termos como gostosa, linda e muitos outros foram incorporados no repertório lingüístico dos campos de futebol.

Em pouco tempo de carreira, Ana Paula conseguiu conquistar um grande espaço no cenário futebolístico brasileiro1. Iniciou em 1998 e após três anos fez sua estréia no Campeonato Paulista da primeira divisão. Chegou a compor o trio de arbitragem em algumas finais (Paulista 2003, 2004 e 2007; Copa do Brasil 2006) e participou do jogo válido pelas quartas-de-final da Olimpíada de 2004.

Após conquistar seu espaço nos campos de futebol, em 2007 cometeu sucessivos erros em algumas partidas (São Paulo x Santos e Botafogo x Figueirense) e foi suspensa pela Comissão de Arbitragem da CBF. Afastada dos grandes jogos chegou até atuar como árbitra de um jogo de várzea. Nesse ínterim, foi reprovada no teste físico promovido pela Federação Paulista de Futebol.

Diante de tantos problemas encontrados nos últimos tempos no futebol, resolveu aceitar o convite da revista masculina “Playboy”, mesmo que isso cause problemas no meio futebolístico. O presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, Edson Rezende, reprovou a atitude da auxiliar: “Acho que profissionalmente isso não vem a acrescentar nada. Uma pessoa pública deve evitar alguns comportamentos”2.

Lembramos que o futebol é um espaço dominado pelos homens e que nos campos de futebol são permitidas algumas atitudes que fora dele são reprimidas. Caso a bandeirinha volte a atuar, terá que estar preparada para ouvir alguns elogios à sua performance fora das quatro linhas. Os comentários podem não ficar somente na torcida, já que os jogadores também podem tecer comentários no sentido de tentar desestabilizar a assistente.

Dunning (1992) afirma que o esporte é uma das principais áreas reservadas masculinas. Analisa os jogos populares medievais e acredita que essas práticas estavam vinculadas à estrutura da sociedade da época, onde a violência era uma característica mais regular e manifestada no dia-a-dia. Para ele, esses jogos expressavam o regime patriarcal daquela sociedade. Os espaços que eram controlados pelos homens serviam para reforçar a masculinidade e denegrir a imagem das mulheres.

Moura (2005) vai mostrar que nos EUA o futebol tornou-se um esporte feminino. Nessa sociedade, outros esportes ocupam e dividem a paixão dos americanos: o beisebol, o futebol americano e o basquetebol. Nesses esportes, afirma o autor, são reforçados os valores da sociedade e do imaginário americano que estão ligados à masculinidade.

Segundo Franzini (2006), apesar do envolvimento cada vez maior das mulheres com o universo do futebol, a identidade masculina criada e constantemente reafirmada ao longo da história da bola no Brasil ainda faz com que boa parte das mulheres sequer se reconheça no jogo – “coisa de homem”.

O que aproxima as mulheres iranianas da trajetória da assistente Ana Paula é a possibilidade de estar fora do jogo. Enquanto as iranianas são proibidas de freqüentar espaços onde predominam os homens (leia-se futebol), Ana Paula poderá ter sua carreira prejudicada por conta das fotos para uma revista masculina.

O que está por trás dessas duas sociedades é a luta das mulheres em busca de um espaço igual ao dos homens. Lutam para que um dia seja normal ter mulheres xingando e torcendo nos campos de futebol do Irã tanto quanto ser normal uma mulher pública posar nua e não ser reprimida moralmente.

Bibliografia
Dunning, Eric. O desporto como uma área masculina reservada: notas sobre os fundamentos sociais na identidade masculina e as suas transformações. In: ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
FRANZINI, F. Em posição de impedimento: as mulheres no país do futebol. ComCiência. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, v. 79, p. 8, 2006. https://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=16&id=154

[1] FOLHA ONLINE. Entenda a saga da bandeirinha Ana Paula de Oliveira. http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u310169.shtml. Acesso em 10.07.07
[2] FOLHA ONLINE. Chefe da arbitragem da CBF diz reprovar decisão de bandeirinha de posar nua. http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u307623.shtml. Acesso em 10.07.07
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. Fora do jogo. Ludopédio, São Paulo, v. 02, n. 9, 2009.
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