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A formação do jogador de futebol: a precocidade do presente pode transbordar no futuro

Otávio Baggiotto Bettega 12 de março de 2017

A sociedade atual caracteriza-se pela dinamicidade, sendo essa na busca de informações, bem como nas possibilidades de interação. Quando uma criança vem ao mundo logo já ganha um time de futebol e os pais já relatam: “esse vai ser jogador de futebol”, “meu filho será médico”, “minha filha será advogada”. Essas colocações com tom de brincadeira começam a ganhar realidade muitas vezes ainda na infância, ou seja, o pai coloca o filho na escolinha de futebol e logo já o compara com um jogador profissional, tentando prepara-lo como tal. As atribuições na vida das crianças crescem cada vez mais e sempre pensando no futuro, no que será bom para carreira e quase nunca compreendendo o que é ser criança, o que é imaginar, aprender, descobrir, o que é brincar… Brincar? “Você só pode estar de brincadeira”. “Meu filho tem que pensar no seu futuro, em ser uma pessoa bem-sucedida”.

Essa linha de pensamento reflete e é refletida nas organizações de ensino, a escola formal quer preparar para o vestibular, as escolas não formais para os concursos e até os locais de aprendizagem informal por vezes configuram um ambiente de otimização de tempo para assuntos “relevantes” para a carreira. A visão objetiva de que a vida é um caminho linear de construção da carreira nos leva no sentido do crescimento, sendo esse afunilado ao âmbito profissional. No caso do futebol, a formação do jogador é estabelecida com vistas quase que somente para a questão profissional, sendo que o desenvolvimento das competências interpessoais e intrapessoais vem quase sempre a “reboque”.

Não estou dizendo que ensinar conteúdos referentes a funcionalidade do jogo não seja relevante, João Batista Freire ressalta que devemos ensinar bem esporte, logo compreender e atuar com base em sua natureza tático-técnica torna-se de suma importância para o processo. Entretanto, o mesmo autor aponta que devemos ensinar esporte a todos, ensinar a gostar de esporte e ensinar mais que esporte. Isso de fato é visualizar a formação de forma ampliada, complexa e não linear. Ou seja, a especialização de conteúdos específicos de forma precoce parece ser um indicativo positivo circunstancialmente, mas se não tratado com cuidado pode trazer consequências negativas no futuro.

Diversos estudos ligados ao estresse na infância (CUPERTINO et al., 2006; KOVALENKO et al., 2014; MILER; CHEN; PARKER, 2011; SHAPERO; STEINBERG, 2013) indicam possíveis consequências negativas que podem ocasionar na vida adulta. Em uma matéria na Revista Crescer foi revelado pela Organização Mundial da Saúde que o transtorno depressivo é a principal causa de incapacidade na realização das tarefas do dia a dia entre jovens de 10 a 19 anos. Mesmo não sendo uma predição de causa-efeito, as ações realizadas no desenvolvimento do jogador de futebol na infância e adolescência podem trazer efeitos negativos posteriormente e isso de fato necessita ser considerado e pensado para o processo de ensino-treino do futebol.

Em entrevista para um site português, o Professor Carlos Neto da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa ressalta que o treino de futebol na infância passou a ser muito organizado, muito estruturado, muito limitado e isso tende a dificultar o percurso até o esporte de elite. A otimização momentânea da performance de crianças na prática do futebol é algo recorrente, a dimensão física é por vezes pensada somente durante uma competição ou uma temporada e os pais em algumas situações ainda buscam treinamentos complementares para potencializar as valências físicas e motoras. Esse tipo de situação geralmente é pensada de forma linear e acumulativa, como se as crianças fossem acumulando competências e potencializando o desempenho até a idade adulta. As crianças devem praticar o futebol a partir de seus gostos, aspirações e possibilidades, sendo o papel dos pais e familiares na proposição de oportunidades e no suporte psicossocial.

 

Garotos durante sessão de treinamento. Foto: Enrico Spaggiari.

Esse acúmulo de desempenho e pressões é capaz de trazer prejuízos durante a fase adulta ou até mesmo na adolescência. A elevada carga de treinamento poderá causar lesões musculares e ósseas, agudas e crônicas, sendo que as constantes pressões pelo resultado poderão levar a desistência da prática esportiva, bem como a ocorrência de estresse e depressão. Desse modo, torna-se necessário compreender as etapas de desenvolvimento dos indivíduos, considerando suas características, necessidades e potencialidades atreladas as disposições do contexto.

O processo é não linear e complexo, necessita ser pensado circunstancialmente e em longo prazo. A infância, geralmente a etapa da iniciação esportiva precisa ser diversificada como apontam muitos estudos, com muita prática espontânea e jogo deliberado, gerando aprendizagem informal e criativa (CÔTÉ, 2014). Nesse sentido, reitero a importância de a criança brincar, se divertir e participar de treinamentos e competições condizentes a sua etapa de desenvolvimento.

Assim, visualizar crianças como “mini adultos” e criar ambientes de treinamentos próximos ao esporte de elite poderão até trazer “resultados” momentâneos positivos, mas em longo prazo são capazes de acarretar efeitos negativos para a vida do indivíduo. Ou seja, a precocidade do presente poderá transbordar no futuro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Otávio Baggiotto Bettega

Doutorando do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas

Como citar

BETTEGA, Otávio Baggiotto. A formação do jogador de futebol: a precocidade do presente pode transbordar no futuro. Ludopédio, São Paulo, v. 93, n. 13, 2017.
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