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“Entra na cabeça, depois toma o corpo e acaba no pé”: a sintonia entre frevo e o futebol pernambucano

Inexiste uma identidade nacional homogênea, apesar de considerar relevante as tradições inventadas, conceito do historiador Eric Hobsbawm, que visam essa padronização. Essas tradições cumprem um importante papel simbólico dando forma não só ao Estado-nação, como também ao povo que nele habita. Mas ele também pode esconder outras identidades, como as regionais e estaduais, pegando o caso brasileiro. Falando em identidade regional, o Nordeste, assim como o Brasil, não pode ser considerado como um ente detentor de uma identidade única. Existem vários estados que compõem essa rica região que, apesar de terem pontos em comuns, apresentam diversas diferenças. E é respeitando essas diferenças que não podemos dizer que o frevo, importante e expressivo gênero musical, foi um produto regional. Surgido no século XIX, o frevo é um produto cultural exclusivo da cidade do Recife, capital pernambucana. Isso não significa que não possa ter repercussão em outros estados, rompendo barreiras meramente geográficas. Entretanto, sua origem e força maior se encontra em um dos estados que forma o chamado Nordeste.

É por isso que quando falamos em Pernambuco, pensamos em tradições que dão forma ao estado. O frevo é uma dessas tradições que dão identidade a cultura pernambucana, assim como o futebol. O estado é um dos mais tradicionais no país quando o assunto é futebol, tendo destaque o chamado Trio de Ferro, composto pelos três clubes fundados e residentes em Recife: Náutico (1901), Sport (1905) e Santa Cruz (1914). Sendo assim, o objetivo deste texto é analisar brevemente a íntima relação entre frevo e futebol, dois importantes aspectos da cultura pernambucana. Os clubes de futebol, de forma geral, apresentam características que lembram um Estado-nação. Assim como essas entidades, os clubes contém seu território (sede social e, principalmente, seu estádio), seus exércitos (compostos por suas massivas e apaixonadas torcidas, sempre dispostas a defender a instituição que representam), suas disputas, suas cores e seus hinos. A música cumpre uma função social nesses grupos, tendo os hinos o papel de mostrar a paixão e a força daquela instituição.

Frevo é destaque no pôster oficial do Recife para a Copa do Mundo 2014
Frevo é destaque no pôster oficial do Recife para a Copa do Mundo 2014.

Mas qual a relação entre frevo e o futebol pernambucano? As principais canções que embalaram e ainda embalam os clubes pernambucanos são, majoritamente, tradicionais frevos. Até o surgimento das torcidas organizadas, as músicas em torno do futebol pernambucano eram frevos de variados compositores. Nas rádios locais, são os frevos que marcam as transmissões dos jogos desses clubes. Desta forma, com ou sem letra, é quase impossível um torcedor pernambucano não reconhecer os frevos que marcam e identificam seu time de coração.

Fundado em 1901, o Náutico tem uma íntima relação com o frevo. Sua torcida, inclusive, é protagonista de um tradicional bloco carnavalesco: o Timbu Coroado, que desfila todo domingo de carnaval desde 1934. Timbu Coroado é também o nome do frevo-canção que homenageia o bloco, tendo composição de Nelson Ferreira e autoria Edvaldo Pessoa, Turco e Jair Barroso. A canção enaltece o bloco, brinca com o “cazá, cazá, cazá” do rival Sport e menciona aquele que é até hoje o grito de guerra do clube (a soletração da palavra Náutico, N-Á-U-T-I-C-O). Abaixo sua letra:

O nosso bloco é mesmo enfezado
É o Timbu, é o Timbu Coroado
Desde cedinho já está acordado
É o Timbu, é o Timbu Coroado

Entre no passo
Que o frevo é de amargar
Pois a turma é muito boa
E no frevo quer entrar
Não queira bancar o tatu
Conheço seu jeito, você é Timbu
Esse negócio de casá, casá, casá
É negócio pra maluco
Pois ninguém quer se amarrar
Timbu sabe isso de cor
Casá pode ser bom, não casá é melhor
N – Á – U – T – I – C – O
Todo mundo vai saber isso de cor

Timbu Coroado, 1951.
Em 1951 o Timbu Coroado era destacado no jornal Revista da Semana como bloco de rua de maior destaque no Recife.

Nelson Ferreira também foi responsável pela composição de Come e Dorme, frevo sem letra que embala as transmissões radiofônicas envolvendo o clube da Rosa e Silva. Esse frevo talvez seja a canção mais associada ao Náutico, sendo impossível seu desconhecimento pela torcida alvirrubra. No site oficial do clube, além do Come e Dorme e do Timbu Coroado, estão presentes outros frevo-canções como o Hino Oficial do Náutico, seu Antigo Hino e Campeão de Terra e Mar. Seu Hino Oficial, cantado pela torcida a pleno pulmões nos estádios, tem a seguinte letra:

Da união de duas cores mágicas
Nasceu a força e a raça
Vermelho de luta
Branco de paz
Quem olha não esquece jamais
Da união de sete letras mágicas
N-A-U-T-I-C-O
Nasceu um time que encanta
Que manda e desmanda
Que faz o nosso Carnaval
Náutico teu caminho é de luz
Tua força, tua garra
Fascina e seduz
No meu coração
Brotou o esplendor
De te adorar com emoção
No meu coração
Brotou o esplendor
De te adorar com muito amor
Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá
Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá
No meu coração
Brotou o esplendor
De te adorar com emoção
No meu coração
Brotou o esplendor
De te adorar com muito amor

Timbu Coroado 1942
Bloco Timbu Coroado, 1942.

Assim como seu rival, o Sport também tem seu hino oficial marcado por um frevo-canção. Segundo o próprio site oficial do clube, o hino trata-se de “Uma verdadeira declaração de amor ao Sport Club do Recife em ritmo de frevo”. Sua composição remonta do pernambucano Eunitônio Pereira que assim musicou seu amor ao clube rubro-negro:

Com o Sport eternamente estarei
Pois rubro-negras são as cores que abracei
E o abraço, de tão forte,
Não tem separação
Pra mim, o meu Sport é religião

A vida a gente vive pra vencer
Sport, Sport
Uma razão para viver

Treze de Maio
Mil novecentos e cinco
Dia divino em que Guilherme de Aquino
Reúne no Recife, ardentes seguidores
Fundando esta nação de vencedores
Que encanta, enobrece e dá prazer
Sport, Sport
Uma razão para viver

Eterno símbolo de orgulho
É o pavilhão
De listras pretas e vermelhas,
Com o Leão
Erguendo, imponente, o imortal escudo
Mostrando a gente que o Sport é tudo
Que a vida tem de belo a oferecer
Sport, Sport
Uma razão para viver

São gerações e corações
Fazendo a história
São campeões e emoções
Tecendo a glória
Do bravo Leão da Ilha, Sport obsessão
Que faz bater mais forte o coração
Torcida mais fiel não pode haver
Sport, Sport
Uma razão para viver
Sport! Sport! Sport!

Sub-12 e sub 13 do Sport no Paço do Frevo, Recife Antigo.
Sub-12 e sub-13 do Sport no Paço do Frevo.

No hino estão presentes termos que identificam a torcida leonina como a expressão “Sport, uma razão para viver”. Repetindo o que fez no Náutico, Nelson Ferreira também foi responsável por um frevo-canção que marcou as gerações de rubro-negros. Trata-se do frevo “Pelo Sport, tudo”, feito em parceria com Sebastião Lopes, e que leva em seu título um termo bastante utilizado pelos torcedores. O frevo-canção também foi responsável pelo grito de guerra do Sport, o famoso “Cazá, cazá, cazá”, entoado religiosamente todos os jogos do clube na Ilha do Retiro, assim como o N-Á-U-T-I-C-O dos alvirrubros. Conhecida também como “Moreninha”, a canção foi um pedido de Eunitônio Edir Pereira em 1955, ano do cinquentenário do Sport. Esse marcante frevo contém a seguinte letra:

Moreninha que estas dominando
Desacatando agora pelo entrudo (2x)
Chegou a hora de gritares loucamente
Hip, Hip, Hip, Hurra Pelo Sport Tudo!
Vejo no batom dos teus lábios
E no teu cabelo ondulado
As cores que dominam altaneira por morena
Do meu glorioso estado
Moreninha que estas dominando
desacatando agora pelo entrudo (2x)
Chegou a hora de gritares loucamente
Hip, Hip, Hip, Hurra Pelo Sport Tudo!
Ter passado o carnaval
Pra que não te falte a boa sorte
Tira da minha vida e te manter eternamente
Tudo, tudo pelo Sport
Cazá, cazá, cazá, cazá, cazá
A turma é mesmo boa… É mesmo da fuzarca!
Sport! Sport! Sport!

Além do hino oficial e de “Pelo Sport, tudo”, outro frevo-canção de relevância entre os rubro-negros é “Ninguém segura o Sport”, composição e autoria de Rogério Andrade. Esse frevo-canção é tradicionalmente cantado e tocado nas arquibancadas da Ilha do Retiro, com direito a batuta da Osquestra Treme-Terra, responsável por puxar esses tradicionais frevos.

Orquestra da Treme-Terra
Orquestra da Treme-Terra na Ilha do Retiro.

Por último, o caçula Santa Cruz também teve forte envolvimento com o frevo. Um dos principais representantes deste gênero musical, o pernambucano Capiba, era um fanático torcedor coral e é dele a autoria do frevo-canção que, mesmo não oficial, acabou se tornando o hino do clube. Falo de “O mais querido”, mais conhecida e cantada que o hino oficial do clube, então composta pelos Irmãos Valença. A canção diz o seguinte:

Santa Cruz, Santa Cruz
Junta mais essa vitória
Santa Cruz, Santa Cruz
Ao te passado de glória
És o querido do povo
O terror do Nordeste
No gramado
Tuas vitórias de hoje
Nos lembram vitórias
Do passado
Clube querido da multidão
Tu és o supercampeão.

Capiba, ilustre frevista e torcedor coral.
Capiba, ilustre frevista e torcedor coral.

Segundo o próprio Capiba, a música foi composta em 1948 para homenagear o tricampeonato do clube. Uma briga entre o Santa e a federação, adiou o lançamento do frevo “O Mais Querido”, que só seria lançado em 1957, ano do primeiro supercampeonato do Santa. O frevo foi um sucesso e tornou-se o hino oficial do clube. O título da canção, “O Mais Querido”, tornou-se o slogan mais conhecido do time do povo. Outro frevo-canção bastante conhecido da torcida tricolor é “Santa Cruz de corpo e alma” de 1942, sob composição de Sebastião Rosendo:

Eu sou Santa Cruz
De corpo e alma
E serei sempre de coração
Pois a cobrinha quando entra no gramado
Eu fico todo arrepiado e torço com satisfação (2x)
Sai, sai Timbu
Deixa de prosa,
O seu Leão
Periquito cuidado com lotação
Que matou pássaro preto
Tricolor é tradição

Revista Placar, 1979.
Revista Placar, 1979.

Ser Santa Cruz de corpo e alma, virou uma popular expressão para descrever os fiéis e fanáticos torcedores corais que não deixam de acompanhar o clube das multidões. E assim como seus rivais, o clube coral também dedica uma parte do seu site oficial para colocar letra e áudio dos frevos que marcam musicalmente a instituição, seja no rádio, televisão ou arquibancadas.

A descrição dessas canções provam a íntima relação entre frevo e futebol pernambucano, evidenciando o casamento entre dois importantes e populares aspectos culturais do estado. No dia a dia desses clubes, vale o registro do Sport que em 2018 levou atletas do sub-12 e 13 para uma visita especial ao Paço do Frevo, resgatando a relação frevo/futebol e proporcionando um interesse desses jovens não só pela prática esportiva em si, mas também por outros elementos que compõe o espetáculo. Além do mais, mostra as especificidades de uma cidade alimentada por frevo e futebol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Itamá do Nascimento

É graduado em Ciências Sociais/Licenciatura pela UFPE e mestrando em Sociologia pelo PPGS-UFPE. Na monografia, estudou os jingles produzidos durante a Copa do Mundo e suas influências sobre a identidade nacional brasileira. Atualmente, no mestrado, estuda os megaeventos esportivos sob uma perspectiva do capitalismo dependente com foco em Pernambuco; uma das cidades-sede da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de 2014.

Como citar

NASCIMENTO, Itamá do. “Entra na cabeça, depois toma o corpo e acaba no pé”: a sintonia entre frevo e o futebol pernambucano. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 32, 2021.
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