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Fuscas, Maluf e a seleção brasileira

Paulo Maluf presenteou jogadores e comissão técnica do tricampeonato da Copa do Mundo com Fuscas. Detalhe: todos comprados com dinheiro público, bem ao estilo ‘Maluf’ de ser.

O início dos anos 1970, foi um período bastante conturbado no Brasil. A Seleção Brasileira, como símbolo máximo da maior expressão popular do brasileiro, não passaria ilesa ou distante do caos. Antes da Copa do Mundo do México, o selecionado tupiniquim não era visto como favorito ao título, Pelé era questionado e ingratos torcedores ousavam chamar a realeza de “velho”, “lento” e até, não se assuste, “gordo”.

No Brasil, futebol e política não apenas se misturam como nunca se separam. Nesse sentido, João Saldanha no comando técnico da Seleção era mais uma generosa tentativa de apagar fogo com gasolina. Ora, um comunista declarado dirigindo o maior instrumento de marketing de uma ditadura militar de direita? Sim, mais uma anedota da série: coisas que só acontecem no Brasil.

Todos os Fuscas entregues à seleção eram da cor verde musgo. Foto: Divulgação.

O fato é que os milicos nunca aceitariam um comuna campeão do mundo, afinal era evidente que aquelas Feras conquistariam o mundo. Saldanha também não deixava por menos, mandando o ditador escalar o ministério enquanto ele, João, escalava a seleção.

Era a brecha que o regime queria. Saldanha demitido e caminho livre para a propaganda política usando o tricampeonato mundial como pano de fundo.

O jogo decisivo contra a Itália aconteceu em 21 de junho de 1970 e decretou a glória do futebol brasileiro como o maior vencedor da história do esporte. A conquista definitiva da Taça Jules Rimet e o sentimento de que o brasileiro, enfim, era o melhor do mundo em alguma coisa, o “complexo de vira-latas” estava morto e sepultado embaixo de três Copas do Mundo.

Para celebrar a Copa, a frota de Maluf

Para celebrar o fato de que “com o brasileiro não há quem possa”, Paulo Maluf, então prefeito de São Paulo, indicado pelo ditador Arthur Costa e Silva, em abril de 1969, e que anos mais tarde seria imortalizado por Leonel Brizola como o “filhote da ditadura”, decidiu presentear os 22 jogadores e a comissão técnica com 25 Fuscas.

O último presidente do Brasil durante a Ditadura Militar, general João Figueiredo, à esquerda da foto, reúne-se com o arenista Paulo Maluf, à direita. Especula-se que esta foto tenha sido tirada em torno de 1980. Foto: Wikipedia.

A cerimônia de entrega aconteceu no Parque do Ibirapuera, em 21 de julho, exatamente no aniversário de um mês da conquista, Maluf passou às mãos de cada tricampeão as chaves dos Fuscas zero quilômetro e, pasmem, comprados com dinheiro público.

Em uma sessão da Câmara Municipal, no dia 3 de julho, dias após o Brasil vencer a Copa, dez eufóricos torcedores/vereadores, dos 17 que a cidade de São Paulo tinha à época, aprovaram a lei pedida pelo prefeito que liberou os CR$ 315.000,00 para a compra dos carros. Na tampa do porta-malas, os jogadores podiam ver um buquê de rosas e no para-brisa traseiro o slogan do regime “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

O que Maluf não esperava aconteceu, um advogado percebeu, apesar de parecer óbvio, que os Fuscas foram pagos com dinheiro público e como aquilo em nada beneficiava a população, decidiu acionar a Justiça. Virgílio Egydio Lopes Enei foi o advogado que moveu a ação contra Maluf, acusando o prefeito de lesar o erário.

O processo

Em 1974, houve uma condenação em primeira instância que obrigava o político a ressarcir os cofres públicos. Por muito tempo esta foi a única condenação de Paulo Maluf que ficou famoso pelo bordão “rouba, mas faz”.

Como de costume, e quase como um talento nato de Maluf, o processo se arrastou escorado em recursos e mais recursos que prolongaram a disputa judicial por estarrecedores 36 anos.

José Virgílio, filho do advogado que processou Maluf, disse que seu pai moveu a ação como forma de protesto contra a ditadura e numa entrevista à BBC Brasil, em 2018, deu ideia do tempo absurdo que o processo levou até uma decisão final:

“Eu nem era nascido no início do processo, mas demorou tanto que, décadas depois, me formei advogado, e ainda trabalhei no caso, no início dos anos 2000”.

Finalmente em 2006, uma decisão definitiva, mas não com o final mais justo possível: Paulo Maluf foi absolvido. O STF considerou que a lei que autorizou o pagamento dos carros na época era constitucional e extinguiu o processo sem que o político precisasse devolver o dinheiro.

O que aconteceu com a frota?

Os jogadores são contundentes quando dizem que não sabiam que dinheiro público foi usado para pagar os carros. Apesar de no dia da cerimônia de entrega todos saírem com o Fusca dizendo que não se desfariam do prêmio porque “presente não se vende”, muitos jogadores acabaram vendendo o carro pelos mais variados motivos.

Baldochi, contou que vendeu por achar o carro pequeno, o zagueiro reserva no tri, tem 1,89 de altura. Já Piazza vendeu para investir em um posto de gasolina.

Mais de 50 anos depois do tri no México, praticamente não há registro de remanescentes dos fuscas do Maluf. A única prova material do que fez Paulo Maluf está em uma garagem no litoral paulista, é o fusquinha dado a Zé Maria – ou pelo menos algumas partes.

O Super Zé conta que na época nem sabia dirigir e foi seu pai quem saiu do Ibirapuera guiando o carro. Dois meses depois seu irmão Tuta, ex-ponta de Corinthians e Ponte Preta, capotou o fusquinha na rodovia Anhanguera e acabou com o prêmio.

Mesmo agindo errado, por interesses propagandistas do regime e com dinheiro público que deveria ser usado em prol da população, Paulo Maluf foi, durante muitos anos, o único homem público a reconhecer de alguma maneira o feito desses homens que levaram o nome Brasil mundo afora e trouxeram tantas alegrias ao povo brasileiro.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Pedro Henrique Brandão

Comentarista e repórter do Universidade do Esporte. Desde sempre apaixonado por esportes. Gosto da forma como o futebol se conecta com a sociedade de diversas maneiras e como ele é uma expressão popular, uma metáfora da vida. Não sou especialista em nada, mas escrevo daquilo que é especial pra mim.

Como citar

BRANDãO, Pedro Henrique. Fuscas, Maluf e a seleção brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 37, 2021.
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