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Futbolera: mulher e esporte na América Latina

Sobrevoando o espaço aéreo francês, em julho de 2019. Estou voando de volta para casa após a mais incrível das Copas do Mundo Feminina da FIFA de todos os tempos. Começo a ler Futbolera, enquanto não paro de pensar no profundo impacto que a comemoração de gol da Marta, quando ela mostrou a chuteira reivindicando igualdade de gênero, teve nos sonhos futebolísticos de milhares de meninas e mulheres em todo o mundo.

Ao mesmo tempo em que Futbolera me apresenta a centenas de mulheres sul-americanas – professoras de educação física, educadoras, treinadoras e atletas que lutaram por muitas décadas pelo direito de praticar esportes -, vejo que as chuteiras da Marta carregam uma história longa, profunda e ainda a ser contada sobre as mulheres latino-americanas e sua relação com o esporte.

Enquanto minha aeronave sobrevoa a América do Sul, não olho pelas janelas do avião para tentar ver esta história: fico imerso nas páginas de Futbolera para descobrir as formas históricas em que a “representação corporal das diferenças de gênero” (p. 23) foi profundamente arraigada na história das esportistas e do esporte para mulheres na América Latina.

Os autores reconhecem, com razão, que “América Latina” é um conceito problemático, pois representa um espaço geográfico, político, cultural e socialmente diverso. Portanto, eles não pretendem cobrir todo o continente em seu livro, mas apresentam estudos de caso aprofundados do desenvolvimento do esporte feminino em países como Argentina, Chile, Brasil, México e também na América Central.

Tanto os paralelos históricos que podem ser traçados a partir desses estudos de caso, mas também os contrastes aqui apresentados, constroem uma narrativa poderosa da diversidade das questões de gênero que surgem em cada país retratado, ao mesmo tempo em que revelam as estruturas patriarcais entre as quais as mulheres tinham que encontrar espaços alternativos para desenvolver suas atividades esportivas.

Esse feminismo inicial incorporado nos esportes é detalhado pelos autores, que apontam como em diferentes países – por exemplo na Argentina e no Chile – as professoras de Educação Física estavam na vanguarda das atividades esportivas e físicas das meninas. O leitor pode até traçar um paralelo com a história das mulheres e do esporte nos EUA, onde o papel das professoras solteiras de Educação Física também foi fundamental nos estágios iniciais do desenvolvimento das atividades físicas para as meninas.

Apesar das muitas variações entre o desenvolvimento social e histórico do esporte nos diferentes países aqui analisados, um traço é comum a todos: assim que a arena esportiva das mulheres começava a ter uma presença maior em suas comunidades e na mídia, os homens tentavam assumir o controle. Em toda a região, a interferência de homens que impunham seus conhecimentos “científicos” sobre os corpos e atividades físicas das mulheres foi assustadora.

Ao mostrar como esses campos de batalha de gênero custaram às mulheres muitos anos de esquecimento na arena esportiva da América Latina, os autores também descrevem o conjunto de estratégias e a ampla gama de esportes que meninas e mulheres praticavam para resistir às tentativas generificadas de minar sua participação no esporte. Ao apresentar as evidências históricas para sustentar suas afirmações, Elsey e Nadel revelam detalhes que mesmo para a leitora especialista representam novidades e certamente abrirão novos caminhos para futuras investigações deste campo.

 Futbolera é um livro muito bem ilustrado. As imagens em preto e branco nas páginas foram cuidadosamente selecionadas para fornecer ao leitor a noção exata da energia e paixão que as esportistas brasileiras, chilenas, mexicanas, argentinas e latino-americanas colocavam em seus jogos; olhamos para os rostos das jogadoras e, por trás dos sorrisos para a câmera, elas sussurram “estamos aqui para ficar”.

Além disso, algumas fotos também demonstram o impacto social e político do esporte feminino na região: minhas fotos favoritas são a do presidente populista argentino Juan Peron, aparentemente fazendo um arremesso de bola para cima no início de um jogo de basquete feminino de 1952 (p. 30); e uma partida de futebol em Recife em 1970, em um campo de várzea (p. 131) cercado por uma multidão de crianças, homens e mulheres das classes trabalhadoras se divertindo enquanto assistem a peleja. Essas fotos demonstram claramente como as atletas e o esporte feminino já eram importantes para o povo da América do Sul ao longo do século XX – e para seus políticos também.

Clique na capa para ver as informações sobre o livro.

Além de mostrar retratos históricos relevantes das equipes esportivas femininas na América do Sul, essas imagens também evidenciam o tipo de fontes que os autores acessaram para dar vida as muitas histórias que eles apresentam em seu manuscrito.

Cabe um grande elogio a Elsey e Nadel por terem procurado, tanto quanto possível, fontes primárias absolutamente relevantes para os contextos pesquisados, sempre em espanhol e português; ao recuperarem os significados históricos e sociais desses materiais, eles foram capazes de traduzi-los de maneira significativa para o ‘English reader’, transmitindo com clareza a extensão da participação das mulheres no esporte na América do Sul desde as primeiras décadas do século XX.

O que realmente me intriga no livro é seu título. A primeira parte deste, a palavra ‘Futbolera’ é definida pelos autores como uma ‘maneira um tanto capciosa mas direta de se referir a uma garota ou uma mulher que joga futebol’ (p. 1). Já a segunda parte do título reconhece corretamente que o livro é ‘uma história das mulheres Latino Americanas e os esportes’.

Os autores reconhecem posteriormente que usaram a palavra ‘futbolera’ em virtude do papel especial que o futebol ocupa ‘na compreensão das ideologias de gênero, classe, raça e sexualidade na América do Sul’ (p. 2). Apesar dessa explicação sucinta, eu não consigo parar de pensar nas ‘basketboleras’ ou nas ‘tennisboleras’ ou em muitas outras mulheres latino-americanas que praticavam um esporte que não o futebol, e são evocadas no livro.

Além disso, o uso da ‘futbolera’ pode induzir o leitor a pensar que está colocando as mãos em um ‘livro de futebol’ puramente, em vez de uma história abrangente de mulheres e esportes. Fiquei imaginando que esse título deve ter sido uma questão bastante discutida entre os escritores e os editores, e se esse uso também pode ser considerado como uma ‘maneira capciosa’ de chamar a atenção dos potenciais leitores do livro, dada a relevância do futebol na América Latina.

No entanto, esse detalhe não interfere em nada na qualidade do livro e na validade da extensa pesquisa que Elsey e Nadel apresentam neste manuscrito. Como acima mencionado, eles usaram diversas fontes primárias que conferem autenticidade histórica as suas narrativas. No final do livro, o leitor também encontra notas detalhadas para cada capítulo, complementadas por uma lista de fontes primárias e secundárias empregadas na pesquisa, além de um índice bem organizado para cada palavra-chave empregada no texto.

A Copa do Mundo Feminina da FIFA de 2019 bateu todos os recordes de audiência da televisão. Não só atraiu milhões de novos espectadores para o esporte e estendeu seu conhecimento para as mulheres que jogam em alto nível; a Copa da França definitivamente ratificou a relevância do futebol para a luta feminista em todas as culturas e comunidades.

Já Futbolera, por sua vez, abre caminho para novas pesquisas sociais e históricas sobre o incrível, mas muitas vezes negligenciado, mundo do esporte feminino na América Latina. Além disso, confirma os papéis significativos e contínuos que as mulheres em todo o continente exerceram no campo esportivo desde os primeiros dias das atividades esportivas organizadas.

Futbolera é uma leitura agradável para o público em geral e é uma ferramenta essencial para estudiosos que, em qualquer estágio de suas carreiras, procuram entender as complexas relações entre gênero, esportes e estruturas políticas nos mais variados contextos latino-americanos.

Esta resenha já tem uma versão em inglês que pode ser acessada aqui: agora, aguardamos o lançamento das versões em português e em espanhol do LIVRO!  mas já ficaríamos felizes com a edição em Portunhol.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Jorge Dorfman Knijnik

Nasci em Porto Alegre, cresci em São Paulo e brinquei carnaval em Pernambuco. Filhos, Frevo e Futebol. Tardes com meu pai assistindo o Pele jogar no Pacaembu. Recentemente publiquei o livro "The World Cup Chronicles: 31 days that Rocked Brazil", um passeio histórico e etnográfico sobre o Brasil antes, durante e depois da Copa de 2014 (https://amzn.to/2An9bWS). Atualmente moro em Sydney, na Austrália, onde sou professor da Western Sydney University - venha fazer doutorado comigo! Mas já aviso: continuo São Paulino! e um pouco gremista também.

Como citar

KNIJNIK, Jorge Dorfman. Futbolera: mulher e esporte na América Latina. Ludopédio, São Paulo, v. 132, n. 35, 2020.
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