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Futebol, bola de pé em pé: contra as cabeçadas e a favor da beleza e dos bem-estar

Para o meu pai, cujo único gol que vi marcar, foi de cabeça.

“Cabecear com a testa e de olhos abertos”, é o que eu lia no livro Jogando com Pelé (Livraria José Olympio Editora, 1974), enquanto admirava uma sequência de fotos do Rei fazendo o movimento perfeito, corpo no ar, braços dando o impulso, tronco projetando a cabeça para a bola que, certeira, encontrava seu destino certo: o gol. Entre as muitas qualidades do maior jogador, estava o domínio técnico do cabeceio, destacando-se o posicionamento, o tempo de bola e a capacidade de coloca-la fora do alcance do goleiro. Claro que houve exceções, mas elas só reafirmam o talento do supercraque, como na Copa de 1970, no México. O golpe perfeito parou em Gordon Banks na partida contra a seleção da Inglaterra, naquela que foi a defesa mais espetacular já realizada em mundiais. De tão bem construído o arremate, o locutor mexicano já começava a gritar gol, assim como Pelé, que temos a impressão, inicia o gesto de comemoração. Mesmo sem a consecução do tento, foi uma jogada magistral, e a defesa do goleiro britânico só acentua a beleza do lance.

Pelé Gordon Banks
Fonte: Reprodução
Pelé Gordon Banks
Fonte: Reprodução

A cabeçada também é recurso da defesa, ainda que nem sempre ele seja bem aplicado. Na disputa pelo terceiro lugar na Copa de 2014, o bom zagueiro David Luiz, em sua segunda jornada infeliz e tresloucada naquele torneio, cabeceou uma bola para o meio da área, ao invés de deslocá-la para longe, permitindo que o lateral-esquerdo holandês Daley Blind fuzilasse, sem dó, o goleiro Júlio César. No entanto, outro defensor brasileiro, contavam os mais velhos, era um mestre em proteger a própria área com a cabeça: Hideraldo Luiz Bellini, capitão do selecionado na primeira Copa conquistada, da de 1958, na Suécia.

Segundo o jornalista e escritor Ruy Castro – em seu onírico Os garotos do Brasil: um passeio pela alma dos craques (Editora Foz, 2014) –, além de excelente zagueiro e cidadão, Bellini entraria em qualquer lista que no final dos anos 1950 se fizesse com os três homens mais bonitos do mundo. Junto dele estaria, ademais, Antônio Carlos Jobim. Lembrei-me daquele que por primeira vez na história teria alçado a Copa Jules Rimet sobre a cabeça, a pedido dos fotógrafos em Estocolmo, ao ler uma ótima reportagem no Tageszeitung, um diário berlinense, escrita por Alina Schwermer[1].

Como tem sido constatado há algum tempo, jogadores de futebol, em especial os que atuam na defesa, apresentam mais chances de desenvolver doenças neurodegenerativas, o que foi o caso de cinco dos componentes da seleção inglesa campeã mundial em 1966, e também de Bellini, acometido por um dos vários tipos de demência, morto em 2004. Segundo se lê na imprensa, a família do futebolista teria doado seu cérebro para que fosse objeto de estudos. Schwermer comenta as partidas experimentais que têm sido realizadas na Inglaterra como exemplo de sucesso – nelas se proíbe o cabeceio. Ademais, pergunta ela, por que deveríamos hoje jogar futebol tal como ele foi prescrito no século dezenove? Depois do fumo e da bebida, agora a condenação recai sobre as cabeçadas. Mas há uma diferença, lembra a jornalista: estas últimas não têm por motivação o prazer hedonista. Trata-se, finalmente, de colocar o ser humano e seu bem-estar em primeiro lugar.

Há gols de cabeça muito bonitos, assim como também pode ser prazeroso observar uma cabeçada tecnicamente bem executada por um zagueiro, mas o futebol pode muito bem viver sem uma coisa e outra. Pelé cabeceou como poucos, mas disso não dependeu sua genialidade; o gol de cabeça mais importante de Diego Maradona foi, na verdade, com a mão esquerda; Zinedine Zidane fez dois na seleção brasileira na final da Copa de 1998, mas nunca foi bom cabeceador; Ronaldo Nazário detestava cabecear, ainda que tenha feito seu tento de estreia no Timão, vindo do banco e empatando a partida contra o Palmeiras, pelo Paulistão de 2009 – foi uma testada perfeita, acertando o tempo de bola com exatidão, depois da precisa cobrança de escanteio de Douglas.

“Um jogo sem o uso da cabeça não será, de forma alguma, um jogo em que se perdeu a cabeça” escreve Schwermer. Estou de acordo. Coloco-me desde já a favor do fim das cabeçadas. Atletas serão preservados, não só em relação ao cérebro, mas a músculos, tendões e ligamentos, já que os tantos saltos durante os jogos e, principalmente, os treinamentos, serão dispensáveis. Além disso, uma nova dinâmica estética deverá surgir, valorizando-se a habilidade com os pés, assim como a construção de desenhos táticos que privilegiem a técnica, não a força.

Os nomes não enganam e por ele nos orientamos: football, futebol; ludopédio. Para isso precisamos de bons gramados, jogadores habilidosos e bem treinados e, claro, um tanto de gosto pelo jogo bonito. Então, bola rolando no chão.

Notas

[1] https://taz.de/Moegliches-Kopfballverbot-in-England/!5802990&s=Kopfball/ 25.09.2021

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Futebol, bola de pé em pé: contra as cabeçadas e a favor da beleza e dos bem-estar. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 14, 2021.
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