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Futebol brasileiro: desenraizamento e desafios econômicos

Eduardo Bastian 14 de outubro de 2021

O brasileiro é apaixonado por futebol. Mas será o jovem brasileiro apaixonado pelo futebol do país? Não é raro ver a garotada hoje em dia exibindo camisas de times estrangeiros. Muitos declaram-se torcedores unicamente destas equipes. Falam com orgulho sobre o “seu Barcelona”, o “seu Liverpool”, o “seu PSG”. A lista é extensa. Em casos extremos, chegam mesmo a acumular diversas camisas, flâmulas e pôsteres de sua equipe europeia de predileção, sem talvez nunca terem visto um jogo ao vivo do time em questão.

Podemos culpá-los? A realidade é que a qualidade do futebol jogado nas principais ligas da Europa é muito superior ao praticado por aqui, sendo a Premier League inglesa talvez o caso mais emblemático de futebol de alto nível hoje em dia. Numa escala de qualidade, talvez seja possível falar que a Premier League é um “produto premium”, enquanto o nosso Brasileirão é, juntamente com outras ligas periféricas, um “produto subprime”. Um desastre para um futebol pentacampeão mundial e que exporta tantos talentos.

Em suma, o futebol brasileiro passa por um processo de desenraizamento. Associado a este fenômeno, ocorre também o encolhimento de alguns clubes tradicionalíssimos. Este processo cria a tentação pela adoção de modelos que aparentemente deram certo lá fora. Torcedores do América do Rio ou mesmo do Botafogo provavelmente adorariam ter um sheik ou bilionário russo disposto a investir pesadamente e devolver o clube às glórias passadas. Mas iria durar? Se este modelo der certo em um clube tradicional em baixa, será rapidamente copiado por outros clubes brasileiros e a tendência é que, em pouco tempo, aqueles de maior torcida passem a ter os investidores mais ricos. Na Premier League, todos ou quase todos os clubes têm um dono bilionário, mas ninguém espera que o Crystal Palace ou o Burnley ganhe o campeonato. Alguns bilionários são mais bilionários que outros ou, ao menos, estão mais dispostos a abrir a carteira. Se ter um dono bilionário bastasse para ganhar jogo, a Premier League acabaria sempre empatada.

No fundo, todo mundo acredita que será o novo Manchester City, Chelsea ou PSG, porém há sempre o perigo de virar o Bordeaux, tradicional clube francês que trocou de dono algumas vezes nos últimos anos e que, agora em 2021, quase caiu para a quinta divisão pela falta de um comprador. Na verdade, o fato é que o desenraizamento também ocorre alhures, ainda que com uma outra roupagem. O caso mais notável foi a recente tentativa de criar uma Superliga Europeia, a qual alienaria os torcedores locais dos clubes em nome de explorar novos mercados na Ásia ou outras localidades. Outro exemplo é o projeto da Red Bull que cria times padronizados mundo afora, os quais têm símbolo, camisa e até esquema tático iguais.

Red Bull Leipzig
Centro de Treinamento do Red Bull Leipzig. Fonte Wikipédia

O que fazer diante deste quadro? Não se pretende resgatar coisas superadas do passado, como gramados de várzea e estádios desconfortáveis. Quem assistiu recentemente um jogo no quase-centenário Estádio Centenário de Montevidéu, sabe que é bem mais agradável ver um jogo no Novo Maracanã do que a experiência raiz no histórico estádio uruguaio. Houve, portanto, avanços. Além disso, os tempos mudaram e o futebol é hoje parte da indústria do entretenimento, negócio que move muito dinheiro. Há atualmente no mundo da bola toda uma cadeia produtiva e algumas mudanças são inescapáveis e irreversíveis. Por outro lado, o crescente peso do dinheiro altera e ameaça alguns pilares da cultura do futebol, como demonstra, por exemplo, o processo de gentrificação nos estádios.

O desafio é, portanto, encontrar um modelo que garanta o direito à voz dos torcedores nos seus clubes e que não exclua o torcedor mais humilde dos estádios, mas que, ao mesmo tempo, produza campeonatos interessantes e clubes sustentáveis economicamente. Não é desafio trivial.

No recente artigo Ódio eterno ao futebol moderno é ótima palavra de ordem, mas tem um porém” de 28 de agosto de 2021, o jornalista Juca Kfouri chamou a atenção para o modelo alemão. Parece-me, em princípio, um modelo interessante para o Brasil, dado que a chamada regra 50+1 impõe um limite de 49% à propriedade acionária de clubes por parte de investidores. Todavia, o modelo está ameaçado na própria Alemanha, em função de abalos recentes como os casos Hoffenheim e RB Leipzig. Ademais, os críticos ao modelo alemão pontuam, por exemplo, que ele pode nivelar o campeonato por baixo e não raro comparam a Bundesliga à Premier League, argumentando que o campeonato e os clubes da competição inglesa seriam bem superiores.

Borussia Dortmund
A Bundesliga tem a maior média de público de futebol do mundo sendo o Borussia Dortmund o clube que mais contribui para isso. Foto: Wikipedia

O futebol brasileiro das antigas deixou belas memórias de craques e estádios cheios. Temos direito – ou talvez mesmo a obrigação – a um certo atavismo. Contudo, este atavismo não pode se transformar em “ludismo futebolístico”. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Talvez este pedido de comedimento seja uma demanda demasiadamente difícil em tempos de extremos. Mas, em todo caso, precisamos falar sobre o futebol brasileiro.

* Eduardo Bastian é Professor Associado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ) e adora futebol. O texto é fruto do bate-papo com o jornalista Juca Kfouri e o médico e ex-jogador Afonsinho no Parangolé da Cultura da UFRJ do dia 26 de agosto de 2021. O autor agradece a Afonsinho e Juca Kfouri pelas ideias trocadas no evento, bem como a Alexandre Brasil, Antonio Licha, Daniel Bueno, Mariana Vantine e Numa Mazat por conversas sobre o tema ou comentários ao texto. Erros remanescentes são de minha responsabilidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

BASTIAN, Eduardo. Futebol brasileiro: desenraizamento e desafios econômicos. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 24, 2021.
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