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Futebol brasileiro na pós-modernidade: técnicos sofrem com a era do imediatismo

Gabriel Canuto Nogueira da Gama 25 de agosto de 2018

O primeiro turno do Campeonato Brasileiro de 2018 terminou no último final de semana com a incrível marca de 19 treinadores demitidos em 19 rodadas – uma média de um por cada jornada. Mais um dado estatístico que escancara uma série de fragilidades em torno de nosso futebol. Não bastasse o atraso tático dentro dos gramados, a violência e o vandalismo nas arquibancadas, os esquemas de corrupção dos “peixes grandes” da CBF, a má administração dos dirigentes, ainda vemos um esporte marcado fortemente pela cultura do imediatismo.

Como reitera o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu célebre livro Modernidade líquida, vivemos na era das relações fluidas, voláteis em meio a uma sociedade regida por padrões de consumo, pela concorrência, pelo máximo desempenho e alto nível de produtividade dentro de uma estrutura egoísta. Um tempo pós-moderno frenético aos olhos do pensador contemporâneo, regido pelo mundo virtual das redes sociais, onde se cria mais relações superficiais e frágeis do que conexões humanas face to face, sólidas e estáveis.

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Zygmunt Bauman foi um dos grandes pensadores da pós-modernidade. Faleceu em janeiro de 2017.

Diante desses ambientes provisórios, essa problemática naturalmente irá se refletir nos diversos meandros onde se constituem as relações de poder na sociedade, não obstante, o futebol sofre destes fenômenos do novo tempo. No cenário brasileiro, a “dança das cadeiras” dos técnicos não é novidade, mas vem se tornando cada vez mais sintomática no país. Por exemplo, se os clubes mantiverem as suas atitudes impulsivas até o final deste Brasileirão, demitindo técnicos na primeira sequência de derrotas, é bem provável que bateremos o recorde de trocas desde que se iniciou a era dos pontos corridos em 2003 – a temporada detentora do maior número de demissões foi a de 2015 com 32 trocas de treinadores nas 38 rodadas. Inclusive, naquele ano, entre os 20 clubes da primeira divisão, apenas o campeão Corinthians manteve o comandante até o final, no caso, Tite.

A cada temporada, os clubes vêm se superando em seus hábitos imediatistas na doce ilusão de que a mudança de uma só figura resolverá repentinamente todos os problemas técnicos e táticos apresentados pelo time. Como se a simples chegada de um novo treinador pendesse um clarão de luz e inspiração divina aos jogadores e, em apenas algumas rodadas, como um passe de mágica, tudo mudasse para melhor.

Porém, a culpa não deve recair apenas aos dirigentes e às suas decisões controversas. Penso que os treinadores também contribuem para essa ciranda à medida que abandonam projetos por contratos milionários em times desconhecidos do mundo árabe e chinês. Isso ocorre, sobretudo, com o primeiro escalão de treinadores do Brasil que recebem, em média, R$ 400 a 500 mil dos clubes – segundo informações do Globo Esporte, o salário médio de um treinador na Série A do Brasileirão é de R$ 70 mil, o que já é um vencimento muito acima da realidade de um trabalhador comum brasileiro.

Na ânsia de ganhar mais e mais dinheiro, técnicos “medalhões” largam os seus trabalhos já muito bem remunerados no meio do caminho, quando é do interesse deles, para receberem o dobro fora do país, seduzidos por clubes desconhecidos de “sheiks” e empresários milionários em mercados periféricos do futebol. E ainda tem aqueles casos de treinadores que saem de rompante de clubes durante a temporada, atraídos por propostas de outros brasileiros. Exemplos não faltam. O mais recente foi o de Jorginho, aquele mesmo ex-assistente técnico do contestável Dunga na Copa do Mundo de 2010, que assumiu o Ceará em maio deste ano e, com duas semanas no cargo, pediu demissão alegando “questões pessoais”. Uma passagem de quatro jogos com quatro derrotas e nenhum gol marcado sequer. Duas semanas depois foi anunciado como treinador do Vasco da Gama, cargo que exerceu por apenas dez partidas – quatro vitórias, um empate e cinco derrotas – até o time carioca mandá-lo embora.

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Jorginho, catorze partidas e menos de dois meses em dois clubes este ano: Ceará e Vasco. Foto: Carlos Gregório Júnior/Vasco.com.br.

A triste realidade do futebol brasileiro, em que dirigentes – parcela maior de culpa – e os próprios treinadores contribuem para tal cenário, tem ainda a participação determinante da imprensa esportiva no fomento à essa cultura imediatista. Por meio de matérias e reportagens sensacionalistas em jornais impressos e portais de notícias, além das opiniões evasivas e superficiais de comentaristas em bancadas de debate nos programas de televisão, a mídia planta crises nos clubes, apelando pela polaridade das emoções, ora elogiando o time e, dias depois, falando mal da mesma equipe. Opiniões que mudam da “água para o vinho” movidas por análises rasas e baseadas em resultados a curto prazo.

Muitos jornalistas esportivos que discursam em apoio a um futebol brasileiro mais organizado, estruturado, com projetos consistentes e respeitando o tempo de trabalho – ilustrando suas opiniões por meio do clássico vira-latismo ao enaltecer demasiadamente o futebol europeu – são os primeiros a criticarem os trabalhos de treinadores após uma sequência ruim de resultados. Para piorar, como são líderes de opinião e influentes nas redes sociais, suas críticas geram uma reação em cadeia, ao serem apoiadas por uma maioria de torcedores que, por sua vez, passa a exercer forte pressão sobre determinado técnico até o mesmo ser demitido pela diretoria.

Um exemplo recente foi de Jair Ventura, um dos treinadores da nova geração. Após surpreendente e positivo trabalho à frente do Botafogo na temporada passada, ele foi reconhecido pela mídia como um nome promissor no cenário brasileiro. No início deste ano, o jovem comandante decidiu trocar de alvinegro e assumiu o Santos. De fato, o desempenho no primeiro semestre foi aquém, o time não emplacou, mas, em pouco tempo, passou a ser duramente criticado, sobretudo pela imprensa paulista, até ser demitido após a pausa para a Copa do Mundo. Falavam recorrentemente mal das escolhas de Jair, mas poucos da imprensa citavam a incompetência da diretoria de anunciar reforços na época, sobretudo, para o setor de criação no meio de campo após a saída de Lucas Lima. Os resultados ruins também se passavam por aí.

Esta decisão da cúpula santista, inclusive, ratifica ainda mais o despreparo e a falta de planejamento das direções de nosso futebol. Por que seguraram as pressões da mídia e da torcida, ao manterem o Jair Ventura durante o intervalo de um mês da Copa, para resolverem demiti-lo dias depois do reinício do Brasileiro? Por que não o fizeram antes do início da pausa para que desse tempo de um outro treinador chegar, conhecer os jogadores e implantar a sua filosofia antes de recomeçar as competições?

Além disso, é de impressionar como as análises dos “especialistas” deste nosso esporte são viciadas e enviesadas. Parece que existe uma cultura imanente no futebol brasileiro de culpar apenas os técnicos pelos erros da equipe. De fato, eles têm uma grande parcela de responsabilidade ao implantarem as suas filosofias de jogo, ao escolherem os titulares, orientarem os atletas em campo no decorrer das partidas, mas a culpa pelas falhas não pode se concentrar apenas neles.

Vivemos em um cenário que os jogadores são sempre acobertados, protegidos pelas diretorias e, em muitos casos, pela mídia. Ninguém vê jogador sendo demitido por causa de uma sequência de derrotas do time ou devido à uma falha individual determinante. Agora, se o time perde um jogo, empata o seguinte e sai derrotado de um terceiro, o cargo do treinador já está seriamente ameaçado. A figura do técnico é uma espécie de bode expiatório de nosso futebol. É ora usado como blindagem, tampão para crises políticas, ora culpabilizado e sacrificado para cobrir as incompetências de terceiros.

Este é o retrato de nosso futebol: contratações feitas por impulso, por moda, por fama, mas não por filosofia de jogo, estilo, expectativas em consonância, planejamento de metas, objetivos alinhados.

Entretanto, é importante ressaltar que a falta de coerência está nos dois lados da moeda. Existem também aqueles treinadores que pedem demissão e já assumem outro time rapidamente como o caso recente de Claudinei Oliveira, que saiu do Sport por decisão pessoal e foi anunciado três dias depois pelo Paraná. Ele já havia feito o mesmo ao ser demitido do Avaí em abril e, em menos de uma semana, ter sido contratado pelo rubro-negro pernambucano. Será mesmo que ele teve tempo para ouvir um plano de metas – se é que teve alguma –, propostas, de analisar os jogadores, de entender as políticas do novo clube que o procurou?

Um outro fator que não contribui em nada para uma mudança de postura e mentalidade com relação à essa efemeridade dos trabalhos de treinadores é o calendário brasileiro. A logística dos jogos, as diversas competições disputadas ao mesmo tempo, todas essas particularidades inviabilizam um trabalho bem feito. Os clubes mais tradicionais, consequentemente, são os que sofrem maior pressão externa, costumam chegar no meio da temporada vivo em duas ou até três competições. Com partidas a cada três dias, eles não têm tempo para treinar suas equipes, se prepararem adequadamente para cada jogo em específico, implantarem as suas estratégias para cada duelo, pois precisam administrar o tempo de treino com os deslocamentos e as preparações físicas de pré e pós-jogo. O acúmulo de partidas acarreta em uma instabilidade nos resultados e na qualidade apresentada em campo do time podendo ocasionar em uma impaciência da torcida e em uma cobrança imediata por resultados. Se perde, são poucos os que lembram dessas dificuldades e já começam a apontar os culpados e pedirem cabeças.

A história se repete temporada após temporada, e as diretorias insistem em acreditar que seus times só voltam aos trilhos com mudanças repentinas no comando. Não lembro de trabalhos consistentes com mudanças constantes de técnicos. Praticamente todos os bons desempenhos vistos no futebol brasileiro são frutos de projetos a longo prazo. Muricy Ramalho com o tri brasileiro há dez anos com o São Paulo (2006, 2007 e 2008) e Tite ao ser campeão da Copa Libertadores e conquistar o histórico Mundial de Clubes com o Corinthians, após ser bancado pela diretoria mesmo com a vexatória eliminação pelo modesto Deportes Tolima no ano anterior pela Pré-Libertadores, são alguns exemplos mais emblemáticos.

Na atualidade, vemos o excelente trabalho de Renato Gaúcho à frente do Grêmio. Em dois anos, conquistou uma Copa do Brasil, um Campeonato Gaúcho – tirando o tricolor de um longo jejum estadual –, a Copa Libertadores e a Recopa Sul-Americana. O outro trabalho mais longevo entre os times da Série A é de Mano Menezes no Cruzeiro. Apesar do método controverso para muitos torcedores celestes, ao optar por um estilo de jogo reativo e pragmático, ele vem alcançando bons resultados em sua segunda passagem pela Raposa, que já dura desde meados de 2016. Se sagrou campeão da Copa do Brasil, do Campeonato Mineiro e, nesta temporada, já avançou, até a presente publicação deste texto, à semifinal da atual edição da Copa do Brasil e às oitavas da Libertadores, esta tendo boas chances de chegar às quartas.

Gremio x Barcelona RS - FUTEBOL/CONMEBOL LIBERTADORES BRIDGESTONE 2017 /GREMIO X BARCELONA - ESPORTES - Gremio e Barcelona disputada na noite desta quarta-feira, na Arena, valida pela semifinal da Conmebol Libertadores Bridgestone 2017. Jogadores e técnico Renato Gaúcho comemoram a classificação para a final. FOTO: LUCAS UEBEL/GREMIO FBPA
Renato Gaúcho é dos exemplos de trabalhos a longo prazo, para os parâmetros do futebol brasileiro, que vêm gerando bons resultados. Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

Fato é que não dá mais para vermos repetir treinadores contratados sem um menor critério e serem demitidos cinco jogos depois, como foi o caso de Marcos Paquetá há pouco tempo no Botafogo. Como uma competição nacional, com menos da metade de sua realização, tem apenas seis times que não mudaram de técnico? E, olha só, justamente estes mesmos seis clubes que mantiveram seus treinadores são os que estão bem na atual temporada. São Paulo, Internacional e Grêmio brigam pelo título brasileiro. Cruzeiro está vivo em duas competições mata-mata e o Atlético Mineiro surpreende com um elenco limitado em sua missão de se classificar para a próxima Copa Libertadores ou até mesmo brigar pelo título brasileiro.

É preciso encontrar soluções. Uma delas deve se passar pela revisão destes contratos entre treinadores e clubes. Estabelecer cláusulas que protejam os empregados, altas multas de rescisão, restrições outras. Além disso, os clubes precisam ter mais responsabilidade diante de suas escolhas. A torcida e a imprensa esportiva, mais paciência e empatia. E os treinadores acreditarem mais nos trabalhos que aceitam. A travessia é longa, tortuosa, mas deve acontecer. É preciso acontecer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Canuto Nogueira da Gama

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG (Teoria da Literatura e Literatura Comparada), Graduado em Bacharelado no curso de Letras da PUC-MG. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC-MG.Foi editor de seção da revista FuLiA / UFMG, periódico quadrimestral da Faculdade de Letras da UFMG, e membro do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.Tem ampla experiência na área de jornalismo esportivo. Foi co-fundador e editor-chefe do Observatório do Esporte, portal de notícias premiado em 2º lugar na versão online do programa "O aprendiz" da Rede Record de Televisão, em 2011. Exerceu a função de repórter do Grupo Estadão na Copa do Mundo de 2014 como correspondente em Belo Horizonte-MG. Tem experiência como editor de texto no programa "Globo Esporte", da TV Globo Minas.É autor dos livros de poesia: "Nós Dois: mais cedo que antes, mais tarde que depois" e "Para Não Desistir".

Como citar

GAMA, Gabriel Canuto Nogueira da. Futebol brasileiro na pós-modernidade: técnicos sofrem com a era do imediatismo. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 26, 2018.
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